terça-feira, 5 de agosto de 2014

BES: O NEOLIBERALISMO FINANCEIRO ABRE CAMINHO À "SOLUÇÃO IDEAL"


 


A PROPÓSITO DE UMA OCORRÊNCIA NA BANCA PORTUGUESA OU A HISTÓRIA DO “pide BOM E DO pide MAU”

 

Depois do Outono de 2007 e da crise aberta pelo capitalismo financeiro, primeiramente na América e depois propagada à Europa quer como consequência dos activos tóxicos adquiridos na banca americana ou cá fabricados quer como consequência da já famosa “arquitectura político-monetária do euro”, falsamente denominada “crise da dívida soberana”, a América e depois a Europa reagiram ao colapso do sistema financeiro e suas associadas a dois tempos. Numa primeira fase, que durou pouco, a América optou, ainda no tempo de Bush, por uma solução à Hoover (1929) – deixar falir o que está podre, de que o exemplo mais emblemático foi o Lehman Brothers – mas cedo arrepiou caminho e, ainda no estertor de Bush, e depois inequivocamente sob a gestão Obama, optou claramente pela solução que ficou mundialmente conhecida pela máxima “too big to fail”.

Em poucas palavras: a Reserva Federal emprestava, a custo zero, aos bancos falidos biliões de dólares para garantir, como então se dizia, a sua “liquidez” (o que na verdade se estava a garantir era a sua solvabilidade – activos que pudessem fazer face ao passivo) e assim impedir o colapso do sistema financeiro no seu conjunto por força da existência de “ratios” baixíssimos na totalidade dos bancos, em consequência da desregulamentação permitida por Clinton e da existência generalizada da não mesmo famosa “alavancagem”, que mais não é do que uma forma legalmente admitida de fabricar dinheiro falso. Em pouco tempo, numa economia como a americana, primeiramente em crise e depois com uma recuperação titubeante, embora constante, os bancos assistidos, cujo negócio como se sabe consiste em fazer dinheiro com dinheiro, não tiveram dificuldade em ir pagando o que lhes havia sido emprestado a custo zero. Não só pagaram como ainda fizeram grandes lucros.

Na Europa Comunitária (é mais adequado este termo que o de União Europeia), os primeiros a sofrer as consequências da crise americana foram os anglo-saxónicos (Reino Unido e Irlanda) e depois a Holanda e mais tarde, já como consequência da “crise do euro”, os países da zona euro – primeiro os do centro, ainda contaminados pela crise americana, e seguidamente os da periferia, claramente “contaminados” pela avalanche de crédito barato concedido a partir do centro em consequência dos extraordinários superávides comerciais (Alemanha) que o a introdução do euro lhe tinha permitido acumular.

Nos países que não pertenciam à zona euro, a solução adoptada para fazer face à crise oscilou entre a nacionalização com vista à futura venda do banco depois de relativamente saneado ou a entrada de capital do Estado nos bancos, quer sob a forma de empréstimos a baixíssimo custo, quer sob a forma de participação no capital social, embora numa posição diferente e mais desvantajosa que a dos restantes accionistas. Fosse qual fosse a solução, o que importava era assegurar a entrada de “dinheiro fresco” no banco que garantisse a sua solvabilidade. Obviamente, esta actuação dos Estados tinha como consequência o aumento correspondente da dívida pública e do seu serviço. Ou seja, eram os contribuintes que em primeira linha eram chamados a responder pela falência do sistema financeiro não para o reformar e alterar a sua lógica de funcionamento, mas pura e simplesmente para o salvar e restaurar de modo a que, o mais rapidamente possível, os bancos afectados pudessem regressar em plenitude ao mercado para continuarem a fazer o que faziam antes. Durante este processo foi inevitável também assistir-se a uma maior concentração do capital financeiro, já que o mais “saudável” ou que mais depressa recuperou aproveitou a onda para absorver o mais fraco, entretanto parcialmente recuperado à custa do contribuinte ou pura e simplesmente vendido sem qualquer passivo, que ficava a cargo do Estado.

Neste processo muito complexo quanto às explicações que iam sendo dadas ao grande público, mas muito fácil de compreender nos seus objectivos, assume particular relevância a situação dos bancos da zona euro cuja crise se desencadeou juntamente com a chamada crise da dívida. Aqui é preciso encarar a situação numa dupla perspectiva: primeiro, a dos bancos dos países excedentários ou daqueles que, não o sendo, mas cuja dívida era financeiramente sustentável, e que estavam, uns e outros, muito expostos à dívida dos países periféricos (pública e privada). Depois de múltiplas hesitações iniciais, aqueles países acabaram por aceitar no quadro da zona euro uma solução que permitisse resgatar os países endividados à custa de pesadíssimos programas de austeridade, mediante a concessão de verbas, da responsabilidade dos Estados, devidamente remuneradas, no essencial destinadas a assegurar o regular cumprimento do serviço da dívida e a recapitalizar o respectivo sistema financeiro. Através desta dupla via se impedia o que mais preocupava os Estados do centro – a bancarrota dos Estados periféricos e a falência dos seus bancos com as inevitáveis consequências para os credores, que entretanto, por força deste mesmo processo, através de vários expedientes que não vem agora ao caso pormenorizar, foram diminuindo a sua exposição à dívida dos países periféricos e dos seus bancos.

Sem fazer qualquer juízo de valor, que de resto está ao alcance de todos, sobre as consequências deste processo quanto aos Estados que a ele ficaram submetidos, as soluções inicialmente encontradas para acudir à falência dos bancos dos Estados periféricos revelaram-se insuficientes e incapazes de resolver o assunto. Por outro lado, estas soluções eram exageradamente onerosas para os respectivos Estados já que eram eles que, em primeira linha, respondiam pelo reembolso do dinheiro emprestado. Também a este respeito a zona euro foi hesitando, seguindo um caminho aos zigzagues, acabando por adoptar uma solução que verdadeiramente ainda não foi posta em prática em consequência dos múltiplos equívocos que acompanharam a sua criação – a União Bancária. Esta solução permitia que fossem os próprios bancos a endividar-se junto de um fundo expressamente criado para o efeito, mediante a aceitação de um conjunto de imposições.

Nesse caminho aos zigzagues a União Europeia chegou mesmo a fazer pagar aos grandes depositantes a recuperação dos bancos falidos, embora esta via só tivesse sido seguida relativamente a um dos países com menor peso na zona euro (Chipre)m, o que aliás também demonstra bem o nível de covardia e de perversidade com que a dita organização é capaz de actuar sempre que não encontra opositor à altura.

Antes do Chipre, a Irlanda teve de assumir a dívida dos bancos para os salvar, subindo para números elevadíssimos o montante do défice e a Espanha teve de recorrer a um empréstimo de 30 mil milhões de euros para salvar La Bankia, com os consequentes aumentos da dívida e do défice.

É neste contexto confuso, caótico, do salve-se o mais forte e afunde-se o mais fraco, que foi encontrada a solução para a falência do BES – Banco Espírito Santo. É uma solução original, completamente arbitrária nos seus contornos e efeitos, de cuja concepção e execução o Governo se alheou, como se o Estado que ele tem por missão governar pudesse à revelia de tudo e de todos delegar as suas consequências nos representantes internacionais e nacionais do capital financeiro, aqui protagonizados pelo BCE, Comissão Europeia e Banco de Portugal. Tudo isto aconteceu não apenas com a demissão do Governo mas também com a proverbial covardia do Presidente da República que nunca intervém contra os poderosos nem contra os poderes fácticos ou institucionais estrangeiros numa estranha submissão que empequenece o país e desprestigia mortalmente a função. Todavia, tanto um como outro estão na primeira linha da responsabilização do Estado português pelo cumprimento do dinheiro que foi necessário, cerca de quatro mil e quinhentos milhões de euros, para salvar o banco falido.

Sim, porque o que se trata é de, com base numa gigantesca arbitrariedade em que se descrimina o que é igual, em que se obscurecem dolosamente os efeitos do procedimento adoptado, restituir ao capital financeiro e à sua prática desregrada um banco salvo com o dinheiro dos contribuintes. É falso, é completamente falso, afirmar que cabe, em última instância, aos bancos que fazem parte do Fundo de Recuperação a responsabilidade pelo reembolso do dinheiro que o Estado lá pôs. Como é igualmente falso (por flagrante ilegalidade) que os representares do capital financeiro, com a passividade cúmplice do Governo e do Presidente da República, possam arbitrariamente distribuir pelas duas instituições criadas – o “Banco Bom” e o “Banco Mau”- os respectivos activos e passivos do BES.

O que realmente está em curso é uma gigantesca mistificação tendente a fazer crer que o Governo não onera os contribuintes nem o erário público com os desmandos da gestão privada e simultaneamente é capaz de se erigir em justiceiro feroz dos culpados, aliados siameses de véspera.

Não, as coisas não vão ser como o Governo as pinta. O Governo cedeu a custo zero, isto é sem qualquer oneração, o dinheiro que os portugueses estão a pagar à Troika com as suas reformas, com os despedimentos na função pública, com os cortes de vencimento, com o aumento colossal de impostos e com as constantes restrições de todas as despesas sociais. Os bancos que não foram ouvidos nem chamados para participar no resgate do BES não vão ser responsáveis por uma dívida que não contraíram, se a coisa der para o torto.

E quanto ao outro lado da questão, ao “Banco Mau”, ainda é cedo para se saber o que realmente vai acontecer, para além daquilo que já se conhece: a gigantesca arbitrariedade que presidiu à sua formação, cuja composição realmente se desconhece, salvo a que em linhas gerais  consta da propaganda governamental.

Em conclusão, esta história tem dois lados. Um lado mau, que faz lembrar a história do “pide bom” e do “pide mau”, que necessariamente vai terminar com uma solução onerosa de ambos os lados para os portugueses. E um outro lado que encerra algumas virtualidades: todos aqueles – e são muitos – que advogam uma radical mudança de política em Portugal, nomeadamente, mas não só, um verdadeiro domínio do capital financeiro pelo Estado, como sangue arterial indispensável à vida saudável de qualquer economia, estão dispensados, a partir da noite do último domingo, de responder à pergunta que insidiosamente lhe faziam os opositores dessa solução e que era a seguinte: “Onde vão vocês arranjar o dinheiro para pagar as nacionalizações e os encargos das instituições nacionalizadas?” ….É muito simples, é só copiar…

 

 

 

2 comentários:

AMCD disse...

Gostei de ler. Só um reparo: o resgate do Bankia foi de 30 mil milhões e não de 30 milhões.

30 milhões é pouco. É que nestes casos já nos habituámos a raciocinar em milhares de milhões, tal a quantidade de "buracos" já encontrados nos bancos falidos...

E enquanto para a banca se arranjam, num fim de semana (!), uns milhares de milhõezitos - coisa pouca - para a saúde e para a educação, só para dar um exemplo, há falta de dinheiro, dizem eles.

É revoltante.

JM Correia Pinto disse...

Não perca mais tempo. É óbvio que são 30 mil milhões. Foi um erro de escita que passou na revisão. 30 milhões para a Espanha é menos do que 300 euros para mim...Vou corrigir. Obrigado