sexta-feira, 11 de setembro de 2015

ANTÓNIO COSTA E A EUROPA





AS PALAVRAS E OS ACTOS

António Costa, entrevistado na RTP, quando perguntado sobre a formação do Governo, caso vença as eleições, disse, como não poderia deixar de dizer, que tinha ideias muito claras sobre a sua composição. Mas disse mais. Disse também que tinha plena consciência da importância que deveria atribuir às várias áreas de acção do executivo. Entre essas estava a diplomacia na sua vertente europeia – à importância que necessariamente tinha de ser atribuída à Europa, à luta por uma nova Europa.

De facto, tanto agora que é candidato, como quando era comentador, sempre Costa tem pugnado, pelo menos em palavras, por uma Europa institucionalmente diferente da que existe, seja no plano da coesão económico-social, seja no plano da política monetária por serem estas as duas áreas onde são mais gritantes as consequências resultantes da Europa que efectivamente temos.

Pondo de parte a questão de saber se a Europa é reformável num sentido contrário ao que hoje existe – e a nossa opinião é de que a Europa não é reformável; aliás nenhuma entidade desta natureza seja ela nacional ou supranacional é reformável sem ser num contexto de profundas convulsões sociais já que ninguém prescinde voluntariamente das vantagens entretanto consolidadas – e aceitando como exequível a pretensão de Costa (exequível no sentido de haver quem na Europa esteja realmente disposto a lutar por essa mudança), faltaria ainda demonstrar que razões nos podem levar a supor que um partido como o Partido Socialista estaria capacitado para esse desempenho.

De facto, a história da acção diplomática dos governos socialistas não aponta nesse sentido. Bem pelo contrário. O que ela nos ensina é que o PS tanto na chamada relação transatlântica, como na relação com a Europa sempre se deixou guiar por interesses que não eram definidos em função do interesse nacional se não mesmo por interesses verdadeiramente contrários ao interesse nacional. O que sempre prevaleceu foi o alinhamento disciplinado e às vezes até entusiástico com interesses que se vieram a revelar altamente nocivos ao futuro do país. A lógica do bom aluno, com este ou com outro nome, como o do aliado fiável e bem comportado, sempre prevaleceu sobre tudo o resto na esperança vã de que os amos acabassem por deixar cair umas migalhas a título de recompensa por esse bom comportamento, ficando a consciência razoavelmente apaziguada com ideia de que se não fosse assim tudo seria ainda pior.

Digamos até de uma maneira mais clara algo que quem anda na política teria muita dificuldade em dizer: com excepção do breve período revolucionário posterior ao 25 de Abril, e mesmo neste período com os boicotes que se conhecem, nunca mais houve em Portugal desde Salazar uma política externa defendida em função dos interesses nacionais.


Bem gostaríamos de estar enganados relativamente ao próximo futuro, mas como, felizmente ou infelizmente, conhecemos bem os possíveis (ou prováveis) protagonistas não vemos nenhuma razão para alterar as nossas previsões.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

AINDA RANGEL


SOBRE O CONCEITO DE ESTADO



Vitorino desculpa Rangel – foi um momento de infelicidade – e mostra-se mais compreensivo (conhece-o bem, é o argumento) do que o próprio Santana Lopes que aconselha a coligação a não enveredar pelo caminho de Rangel.

A verdade é que Rangel, ao contrário do que afirmaram estes dois comentadores, saiu-se bem. Muito bem, até.

O que Rangel quis dizer – e disse-o com a autoridade de quem já exerceu funções governativas na área da justiça – é que quem governa tem a possibilidade de influenciar a justiça. Daí que a afirmação de que com o PS no Governo Sócrates não estaria na cadeia, nem Salgado falido seja compaginável com a constatação de que com a coligação de direita no governo e Cavaco na presidência da República ninguém do BPN é verdadeiramente incomodado e muito menos julgado.

Com estas consequências e não tanto com as palavras de Paulo Rangel é que a Justiça se deveria preocupar.

A questão que Rangel levantou é muito complexa, apesar da ligeireza com que ele a tratou. No fundo, no fundo, tem a ver com o conceito de Estado. Durante décadas o pensamento marxista influenciou, quase diríamos hegemonicamente, a natureza do conceito de Estado. Todavia, em consequência, por um lado, do pensamento cristão, da doutrina social da Igreja, e, por outro, da própria ideologia burguesa do conceito de Estado, uma e outra alicerçadas em exemplos que não poderiam deixar de ser tidos em conta, nomeadamente nos países desenvolvidos do mundo ocidental, o próprio pensamento marxista foi obrigado a reconhecer que o Estado, embora determinado pelas relações sociais de produção dominantes da sociedade em que estrava inserido, podia actuar com relativa autonomia.

E aceitava então que em alguns Estados capitalistas, em consequência da própria da correlação de forças existente na sociedade, o Estado pudesse actuar em determinados domínios com relativa autonomia face às forças sociais dominantes.

Daí dizer-se que o Estado prossegue o bem comum, é imparcial nas suas actuações, cria ou esforça-se por criar as condições destinadas a garantir a igualdade de todos os cidadãos perante aa lei, etc, etc. seja tida como uma verdade apodítica.

E isto, depois de mil vezes repetido e durante décadas inquestionado, tende a enraizar na consciência das pessoas como verdade indiscutível a ideia de que o Estado é uma entidade verdadeiramente independente que está acima e por cima dos interesses sociais em confronto, actuando, em defesa do bem comum e do interesse público. Apesar de o Estado nunca ter sido aquilo que a ideologia fazia dele, a verdade é que as pessoas em geral o encaravam nesta perspectiva e aceitavam estas ideias como verdades absolutas. E isto tem muita força. Isto é o cimento das relações sociais, ou seja, a ideologia.

Pois bem, quem logo que pôde começou questionar este entendimento das coisas foi o neoliberalismo. Para o neoliberalismo um Estado com estas características era um Estado que manifestamente não servia os seus interesses. O neoliberalismo exigia um Estado completamente ao serviço dos seus interesses.

A primeira grande “machadada” na ideologia tradicional do conceito de Estado foi retirar-lhe o direito de emitir moeda. Atribuição que passou a ficar a cargo de uma entidade “independente”, o Banco Central. Obviamente que esta profundíssima alteração foi antecedida de uma “eficaz demonstração” nas universidades, nos media, enfim, em todos os meios de constrangimento e de conformação social, dos malefícios resultantes de esse poder continuar na titularidade dos representantes executivos do Estado – o Governo. Depois passou-se para a ideia de que o Estado deveria intervir nas suas relações com os interesses privados em “pé de igualdade” com estes, ou seja, o interesse geral, o interesse público que  o Estado era suposto representar e defender deixou de ter primazia sobre o interesse particular, e então criaram-se os “reguladores”, entidades ditas imparciais encarregadas de dirimirem os conflitos entre o interesse público e o interesse privado.

O Estado foi sendo assim aparentemente despojado dos seus principais atributos, cuja “ausência” determinou uma alteração substantiva da sua natureza. Realmente o Estado não foi despojado dos seus principais atributos. O que aconteceu foi que esses atributos passaram a ser exercidos por quem aparentemente não pertence ao Estado para contornar a dificuldade resultante de, em virtude de uma crença já muito enraizada sobre a sua natureza, se colocar o Estado a defender abertamente os interesses privados.

Assim, como as coisas são agora apresentadas tudo se torna mais simples: o Estado, aparentemente despojado de alguns dos seus atributos e realmente das funções que por meio deles eram exercidas, representa como há muito o não fazia, ou porventura como nunca o terá feito antes, os grandes interesses particulares, criando-lhes ideológica, jurídica e socialmente as condições para eles poderem ser prevalecentes no confronto com o interesse geral.

Há todavia domínios que resistem mais do que outros ainda e sempre por força do papel desempenhado pela ideologia do conceito de Estado. Um desses domínios é a Justiça. Está muito enraizada a ideia de que o poder judicial é independente e que dirime os conflitos com autonomia relativamente às forças sociais dominantes.

A separação vertical de poderes preconizada ou talvez mais correctamente descrita por Montesquieu nunca foi garantia de imparcialidade. Ela foi quando muito, ou para não sermos tão assertivos, prevalecentemente impeditiva do despotismo, o que sendo importante está muito longe de garantir a imparcialidade. Muito mais importante teria sido a consagração de uma divisão horizontal de poderes (e era para esta que Montesquieu francamente se inclinava, apesar de ser então contrária aos ventos da história) mediante o reforço do papel desempenhado pelos corpos intermédios. Ideia que encontra profundo eco no pensamento filosófico clássico do “governo misto” – um governo representativo das formas de governo então conhecidas e simultaneamente defensor dos diferentes interesses em presença. De que o exemplo mais emblemático teria sido a República Romana – na qual o Senado consistiria na expressão do poder aristocrático; os tribunos da plebe, do poder do povo; e os cônsules, da ideia da realeza.


Voltando à actualidade: a bravata política em que Rangel se meteu representa apenas a caricatura no plano partidário desta luta pelo que resta do anterior conceito de Estado, não havendo porém quaisquer dúvidas de que o neoliberalismo, se não for parado e derrotado na sua essência, atacará abertamente o tradicional papel da função judicial para a pôr ao serviço exclusivo dos grandes interesses privados à semelhança do que já fez com outras funções do Estado.