quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

A ILUSÃO DO REGRESSO AOS MERCADOS


 

O QUE REALMENTE SE ESTÁ A PASSAR

Depois da propaganda da semana passada sobre o “regresso aos mercados” mantém-se para o português comum a triste realidade em que o Governo o mergulhou com uma política exclusivamente orientada para satisfazer o interesse dos credores e a voracidade dos banqueiros.

E a triste realidade é esta: aumenta todos os dias o número de desempregados, cresce continuamente o número de falências, subsiste a recessão económica ou pode mesmo agravar-se se o Governo levar à prática apenas algumas das várias medidas que se propõe concretizar no quadro da pretensa reforma do Estado e, finalmente, aumenta para números insustentáveis a dívida pública.

A dívida pública já ultrapassa os duzentos mil milhões de euros e o próprio PIB em mais de vinte por cento. Esta situação, que nunca seria confortável, e em caso algum dispensaria a análise das causas que lhe deram origem, não seria tão grave quanto está sendo nas suas consequências imediatas nem nos seus desenvolvimentos futuros se o país estivesse a crescer, se houvesse alguma inflação (moderada) e se os juros fossem idênticos aos praticados até à crise financeira de 2008.

Mas nenhuma destas condições se verifica, nem está em vias de se verificar por mais optimistas que sejam as previsões daqueles que vêem sinais de mudança no panorama europeu.

De facto, a imposição de políticas altamente restritivas da procura interna, a deflação salarial e a forte restrição do crédito, o controlo da inflação pelo BCE como primeira prioridade em detrimento do crescimento e do emprego bem como a ausência de uma política monetária e de crédito verdadeiramente virada para as necessidades dos cidadãos e das empresas produtivas impedem que o país cresça agora e nos tempos mais próximos.

Diz a propaganda do Governo que a situação mudou positivamente nos últimos meses e que a partir de agora estão criadas as condições para relançamento de um crescimento “sustentado”. Nada na política do Governo aponta nesse sentido, podendo apenas dizer-se que a única diferença relativamente à situação vivida há uns meses atrás consiste numa certa estabilização dos “mercados financeiros”, não por terem voltado a ser o que foram nos anos subsequentes ao nascimento do euro, mas por ter sido estancada a espiral especulativa que assolou os mercados a partir da crise grega e da indisponibilidade da Alemanha para, no quadro da zona euro, colaborar eficazmente na adopção de medidas que rapidamente a solucionassem.

Portanto, a mudança que existe é apenas esta e nenhuma outra. Nada no panorama da política europeia e da política monetária e creditícia do BCE aponta para o regresso a uma situação anterior à crise. Pelo contrário, consolida-se cada vez mais a ideia de que o Euro deixou de ser uma moeda comum para se tornar uma moeda a “várias velocidades” num jogo de resto zero. O que uns ganham contraindo empréstimos a juros baixíssimos ou até negativos é o que outros perdem no seu famoso regresso aos mercados com juros várias vezes superiores às possibilidades das suas economias.

 E se esta situação que agora existe pode parecer aceitável, por ocorrer na sequência de uma escalada especulativa absolutamente insustentável, aparentemente ou transitoriamente estancada, ela revelar-se-á a igualmente a breve trecho incomportável pelas diferenças que potencia e pelas desigualdades que gera.

Dito de uma forma mais clara: uma união monetária entre territórios economicamente muito desiguais, deixados na sua actividade económica ao puro jogo do mercado, não integra com equidade as respectivas economias, antes as afasta aprofundando diferenças de competitividade e de riqueza quer entre as partes que a compõem quer dentro de cada uma das unidades individualmente consideradas. Estas desigualdades tendem a consolidar-se e a profundar-se tanto mais depressa quanto mais distante era o ponto de partida entre as partes integrantes dessa união monetária.

E ainda sobre a cessação (ver-se-á dentro de pouco tempo se temporária ou com alguma consistência) da escalada especulativa convém dizer que ela abrandou por duas razões: primeiro porque o BCE deu a entender que agiria como garante de última instância se os países que estavam a ser vítimas dessa escalada especulativa continuassem a tomar as medidas necessárias ao cumprimento dos programas de ajustamento e em segundo lugar porque a Troika tem velado e continuará a velar para que por via daqueles programas se transfiram regularmente para os credores as somas em dívida.

Ou seja, a Troika e as instâncias com responsabilidades na condução da política europeia têm todas as razões para se sentirem satisfeitas com o Governo português porque o Governo tem sabido pôr os interesses dos credores e do capital financeiro acima, muito acima, dos interesses dos portugueses. E é isso o que realmente está a acontecer: os bancos estão a regressar aos grandes lucros com ajudas quase gratuitas do Estado e do BCE e os credores vão tendo a garantia da Troika de que o Estado português se propõe cortar nas despesas sociais, nos salários e nas pensões para lhes continuar a assegurar o pagamento da dívida.  

Esse tem sido o “mérito” do Governo português. Mas não haja ilusões, esta política de progressivo empobrecimento não tornará a dívida sustentável. A espiral recessiva em que está mergulhada a economia portuguesa agrava progressivamente a dívida cujo peso se vai tornando mais insustentável a cada dia que passa. Basta olhar para o seu crescimento exponencial em termos absolutos e em relação ao PIB bem como atentar no seu serviço nos próximos oito anos para imediatamente se perceber como são falaciosas e completamente destituídas de fundamento as “vitórias” do Governo.

Nem mesmo a crença do Governo no surgimento de um novo modelo económico gerado pelas políticas que estão sendo levadas a cabo alteraria minimamente a actual situação dos portugueses em geral. Esse modelo, a implantar-se, assente em baixos salários, desregulamentação laboral e ausência de direitos sociais universais, pontualmente substituídos por um assistencialismo de circunstância, geraria uma distribuição de rendimentos muito mais desigual do que aquela que hoje já existe e somente mediante uma super exploração do trabalho permitiria continuar a pagar nos prazos previstos o serviço da dívida. Ou seja, a situação dos portugueses degradar-se-ia ainda mais em benefício dos mesmos de sempre – credores e capital financeiro.

Esta via não tem qualquer hipótese de concretização nem pode ter qualquer sucesso, apesar do banqueiro Ulrich admitir com toda a franqueza que se os sem-abrigo aguentam a situação em que estão também o português comum aguentará a austeridade mesmo que reduzido a um ordenado de miséria. Ulrich tem o mérito de dizer com clareza o que Passos e Gaspar escondem. Mas a sua bestialidade é também ilustrativa da situação a que já se chegou a Portugal. Uma situação na qual o capital financeiro arrogante e poderoso já se permite tratar os portugueses com um desprezo de tipo colonial certo de que nada impedirá no futuro a sua marcha ascensional com vista ao completo domínio da economia.

 Mas para contrariar esse futuro que os “Ulrichs” deste país e da Europa têm por certo é preciso que se saiba que também não terão sucesso aqueles que propõem uma via pretensamente alternativa, assente na base matricial da política do Governo, muito centrada na esperança de que os desenvolvimentos subsequentes das “palavras de Draghi” acabarão por levar o BCE, e por via dele da própria União Europeia, ao desempenho de um papel salvífico das economias em crise. Esta ideia que às vezes parece estar subjacente a certas propostas políticas, aparentemente alternativas à política do governo, não tem fundamento nem resiste à análise dos factos. A actuação do BCE na crise da dívida e do euro, mesmo quando aparentemente se afastou do seu papel estatutário de controlador do nível geral dos preços, nunca se orientou, quer sob a direcção de Jean-Claude Trichet, quer sob a direcção de Draghi, no sentido de defender o crescimento e do emprego. A sua exclusiva preocupação foi a de salvar os bancos e o sistema financeiro sem prejuízo de as medidas tomadas para este efeito acabarem, reflexamente, por ter efeitos na escalada especulativa sobre a dívida pública.

O comportamento dos principais bancos centrais dos países desenvolvidos na crise financeira de 2008 e nos seus desenvolvimentos posteriores, principalmente na Europa, sejam eles a Reserva Federal americana, o Banco de Inglaterra ou o Banco Central Europeu, orientou-se prioritariamente para a defesa dos bancos e do capital financeiro. A famosa independência dos bancos centrais apenas é verdadeira no sentido de que eles são cada vez mais independentes da democracia e do escrutínio dos eleitores, apesar de as medidas que diariamente tomam condicionarem a vida dos cidadãos tanto ou mais do que as medidas dos governos. Mas de forma alguma é verdade que eles sejam independentes do capital financeiro já que a sua própria composição e acção, como, aliás, a dos restantes reguladores, é impensável sem o prévio assentimento ou uma actuação consonante com a defesa dos grandes interesses que, teoricamente, têm por missão regular. 

É isso o que demonstra por toda a parte, e não apenas na Europa, a história da escolha das equipas que constituem as direcções das entidades reguladoras bem como a enumeração e análise das medidas que vão tomando no desempenho das suas funções. E é isso que igualmente se passa, porventura com mais zelo ainda, nos bancos centrais cuja missão fundamental é defender o capital financeiro.

Hoje no moderno capitalismo financeiro globalizado podem garantir-se lucros fabulosos sem qualquer preocupação de democraticidade na distribuição dos rendimentos. A evolução da situação americana que desembocou na crise financeira de 2008, bem como a crise europeia demonstram isso mesmo. E a situação portuguesa já é um bom exemplo do que se caba de afirmar. Maior desigualdade do país relativamente aos mais ricos, maior desigualdade internamente na distribuição dos rendimentos, mais pobreza, perda acentuada de rendimentos das classes médias e lucros muito maiores do capital financeiro.  

 

 

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

O DESLIZE DE LOBO XAVIER




 
UM EPISÓDIO DA QUADRATURA DO CÍRCULO
 
Ontem, na Quadratura do Círculo, António Costa e Pacheco Pereira não tinham dúvidas de que o famoso “regresso aos mercados” tinha sido feito com muitos apoios e devidamente apadrinhado pelo BCE sem a garantia do qual ninguém teria comprado os títulos.
Lobo Xavier que durante todo o programa se não cansou de fazer a propaganda do Governo sempre naquele estilo de quem não está a fazer a defesa por encomenda mas a explicar aos néscios o que eles não conseguem ver, apesar de ser evidente, disse, embora não necessariamente  pelas palavras a seguir transcritas, o seguinte:  
A garantia do BCE só serve para os credores "institucionais" (na gíria dos "mercados" os “institucionais” são os bancos e as demais empresas financeiras), não para os outros credores. Ora, o que se sabe é que o empréstimo que Portugal pôs no mercado só numa pequeníssima parcela foi subscrito pelos bancos. A maior parte foi subscrita por credores não institucionais de vários continentes! E estes não podem ir ao BCE reclamar o pagamento dos títulos.
Os outros dois calaram-se, apesar da natureza pueril do argumento. Como é que as coisas realmente se passam? É assim: Se tudo estiver a correr bem, os credores vão recebendo os juros e mais tarde o capital na data prevista. Se as coisas correrem mal, ou se eles suspeitarem que poderão correr mal ou ainda se precisarem do dinheiro antes do vencimento, o que obviamente vão fazer é vender esses títulos aos “institucionais”, ou seja, aos bancos. Por que preço? Certamente pelo preço do mercado que será naquelas circunstâncias um preço inferior ou até muito inferior ao valor nominal dos títulos. E os bancos não terão qualquer problema em fazer este negócio com o qual ganharão seguramente muito dinheiro. Porque como o BCE garante esses títulos, os bancos quando pedem dinheiro emprestado ao Banco Central, ao juro que todos conhecemos (cerca de 1%), poderão dar como garantia do empréstimo concedido  esses títulos da dívida pública portuguesa que compraram no mercado secundário.
E como os compraram por um preço inferior ou muito inferior ao seu valor nominal acabam por  receber um juro muito superior  àquele por que foram postos no mercado primário, e além disso terão a certeza de que no vencimento o Estado Português terá dinheiro para os amortizar…ou não estivesse lá o BCE a garantir esse pagamento.
E assim se vê como são pueris e falaciosos os argumentos daqueles que pretendem fazer crer que a confiamça dos "mercados" é tanta que a maior parte dos títulos até foi comprada por quem os não pode descontar no BCE. De facto, quer os títulos sejam comprados no mercado primário por investidores "não institucionais", quer sejam comprados por instituções financeiras é sempre muitíssimo importante para o "sucesso" da operação saber que o BCE está por trás, apesar de os "não institucionais" não poderem descontar os títulos directamente no Banco Central. Poderá o banco que a seguir os comprar e ..fará certamente um bom negócio.
E este simples exemplo serve também para demonstar que, tal como as coisas estão hoje, quem no fim acaba sempre por ganhar é o capital financeiro!


QUAL É A PRESSA?


 

SUBSTITUIR-TE, PÁ!

António José Seguro foi ontem surpreendido com um pedido de convocação de um congresso antes das autárquicas, feito por Silva Pereira em nome da oposição interna do PS. É claro que Silva Pereira apresentou a questão de outra maneira como não poderia deixar de ser. Disse que tendo o Secretário Geral reconhecido a grande probabilidade de emergência de uma crise política e simultaneamente assegurado estar o PS à altura de assumir as suas responsabilidades (e até pediu uma maioria absoluta na “coligação” que pretende fazer com os portugueses) seria de todo o interesse que o PS se preparasse com tempo, convocando um congresso antes das autárquicas para pôr à discussão dos militantes as grandes linhas da sua futura governação.

Silva Pereira deixaria a “cauda de fora” qualquer que fosse o seu pedido, mas aquela de ter frisado com tanta insistência o “antes das autárquicas” deixou-a, por assim dizer, à vista de toda a gente.

A probabilidade de o PS ganhar as autárquicas quem quer que seja o seu Secretário Geral é muito alta. E se o Secretário Geral à época ainda for Seguro, é também óbvio para toda a gente que já ninguém mais tem legitimidade para o tirar de lá até às legislativas, ocorram elas no fim da legislatura ou antes. Portanto, como o que Silva Pereira e os seus amigos querem é substituir Seguro, impõe-se que o façam o mais rapidamente possível.

E toda a gente igualmente percebeu que o candidato de Silva Pereira é António Costa o qual, como também é óbvio, deixou a marcação da data do congresso à consideração do Secretário Geral.

Dito isto, impõe-se em primeiro lugar analisar a probabilidade de vitória desta “manobra” e em segundo lugar tentar perceber por que razão o PS quer substituir Seguro.

A probabilidade de vitória da proposta de Silva Pereira é muito escassa mesmo que Seguro aceitasse realizar o Congresso antes das autárquicas (e muito provavelmente não aceitará). Primeiro, porque Seguro tem o aparelho consigo. Aquele aparelho hoje constituído por pessoas que fora do PS ninguém conhece, mas que partidariamente têm muito poder. E em segundo lugar, porque, como se tem visto, tem havido uma renovação acentuada dos dirigentes do PS. As pessoas que hoje aparecem a falar institucionalmente em nome do partido pertencem a uma nova geração que anda entre os 35 e os 45 anos e que, salvo raras excepções, ainda não tinha tido até agora oportunidade de ocupar lugares de relevo. Toda essa gente preferirá ficar com Seguro do que alinhar com um membro de uma geração mais velha (António Costa) onde tudo para eles será mais incerto por a concorrência ser muitíssimo maior.

Apesar de com esta resposta ficar eliminada a necessidade de responder à segunda questão, sempre se dirá a razão fundamental por que existe agora toda esta movimentação no PS para substituir Seguro. Muito simplesmente por não o considerarem suficientemente credível perante o eleitorado. De facto, eles vêem aquilo que toda a gente vê: Seguro esforça-se muito, ultimamente até parece que ameaça…mas não convence. E não convencendo não só corre o risco de perder, como, pior ainda, não concorre para a eclosão de uma crise política que a simples existência de um líder forte à frente do PS poderia potenciar e acelerar.

E não concorrendo para este efeito também não dá à oposição interna do PSD, constituída por notáveis muito influentes junto da opinião pública, a segurança suficiente para, pelo seu lado, acelerar a crise.

Sim, porque ninguém tenha ilusões. Esta manobra que certos sectores do PS estão levando a cabo não tem em vista fazer chegar o Partido Socialista ao governo para governar sozinho nem tão pouco cortar radicalmente com as políticas de ajustamento impostas pela troika. Tem em vista uma coligação com os sectores oposicionistas do PSD e eventualmente com o CDS ou com gente da área do CDS, consoante essa coligação ocorra antes ou depois de eleições. É isto o que se depreende das teorizações dos principais opositores a Seguro - António Costa, Francisco Assis, Silva Pereira, Vieira da Silva, entre outros.

E já agora que dizer disto, desta tentativa? Embora à esquerda toda a gente reconheça sem dificuldade que era preciso muito mais do que isto – era necessário uma mudança radical de política, também todos nós sabemos que isto está tão mau, tão mau e a continuação no poder deste bando de fundamentalistas é capaz de causar tanto sofrimento a tanta gente, de destruir tantas vidas, de afundar o país por muitos e muitos anos que qualquer coisa que venha em sua substituição será sempre melhor do que aquilo que agora existe. Estamos a pensar nas dezenas e dezenas de milhares de funcionários públicos e de trabalhadores das empresas públicas que vão ser mandados para o desemprego; estamos a pensar nas centenas de milhares de reformados que vão passar o resto da vida que lhes resta na angústia de perderem a reforma ou de a verem drasticamente diminuída; estamos a pensar nos milhares de empresas que vão continuar a falir e do cortejo de desempregados que isso acarreta; estamos a pensar nos milhares de jovens preparados que vão deixar o seu país em busca de trabalho no estrangeiro ou que por cá vão ficar na expectativa de arranjar um emprego que os fará mergulhar para sempre na espiral da precariedade, da insegurança e da exploração. Estamos a pensar no sofrimento de milhões de pessoas.

E será que tudo isto vai ser resolvido? E será que esse sofrimento vai desaparecer completamente?Claro que não. Mas se houver uma mudança será impossível continuar tudo na mesma. Alguma coisa necessariamente mudará.

Não se trata de apoiar, nem nada que se assemelhe, esta hipotética coligação. Trata-se apenas e só de ver as diferenças…

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

O REGRESSO AOS MERCADOS


 

A CHANTAGEM DOS BANQUEIROS

 

O Governo festejou com tal entusiasmo o “regresso aos mercados”, ou seja, aos empréstimos, que quem estivesse menos atento até era capaz de supor que o país alcançou uma vitória capaz de alterar do dia para a noite a vida dos portugueses. E, todavia, não é nada disso o que se passa. Nada de muito diferente vai acontecer -  e o que acontecer até será para pior -  se a actual política não for radicalmente alterada.

Este “regresso aos mercados” de um país mergulhado numa espiral recessiva, com quase um milhão de desempregados, com milhares de falências anunciadas para juntar aos milhares que já tiveram lugar e com taxas de decrescimento económico cada vez mais assustadoras, tanto no ano que passou como no que agora começa, também serve para demonstrar quão irracionais são esses ditos “mercados”. É certo que eles têm o lamiré deixado pelo BCE de que aceita, mediante o cumprimento de certas condições, garantir, em última instância, os títulos da dívida pública dos Estados da zona euro. E é também óbvio que a quantia hoje arrecadada constitui uma gotícula quando comparada com a capacidade de “absorção” do BCE, mas nem por isso deixa de ser óbvio que um país que está a decrescer economicamente e que praticamente não cresceu nos últimos doze anos jamais terá capacidade para pagar uma dívida que atingirá durante os próximos dez anos números incomportáveis.

E esse é que é o grave problema de Portugal. Ir aos “mercados” mas continuar a agravar as condições de vida dos portugueses pode ser muito sedutor para os bancos mas não será certamente a solução que o país espera.

Dizem os apoiantes do Governo que este é o primeiro passo para uma inversão da situação. Nada na política do Governo aponta nesse sentido. Pelo contrário, tudo vai no sentido de um maior agravamento das condições de vida dos portugueses resultante de milhares de despendimentos anunciados na função pública, de novos cortes nos salários e nas pensões, de drásticas reduções no serviço nacional de saúde e no ensino, bem como nas prestações sociais. Ora nada disto constitui uma vitória dos portugueses, como eles agora dizem. É uma derrota, uma grande derrota, que exige uma desforra à altura. 

Esta política é a política dos banqueiros e dos credores. Não é seguramente a política que interessa ao comum das pessoas. Prova disso é o entusiasmo que o FMI não é capaz de disfarçar ao analisar o que se passa em Portugal e nos demais países em crise quando, apesar do desemprego, da recessão e das suas graves repercussões sobre a generalidade das pessoas comuns, deixa escapar o seu contentamento dizendo que o optimismo paira no ar como o demonstram os mercados financeiros. Sim, é isso mesmo: foram os “mercados” que geraram a crise e foram esses mesmos mercados financeiros que mais lucraram com ela, ficando em consequência dela numa situação nunca antes acontecida na história do capitalismo - mais ricos, mais poderosos, mais dominadores do que antes. Antes, as crises do capitalismo arrastavam para a falência as empresas que as causavam ou obrigavam-nas um a um longo período de recuperação. Hoje, dada a hegemonia do capital financeiro e o seu completo domínio sobre o aparelho de Estado, acabam por ser os contribuintes a restaurar e a fortalecer ainda mais as empresas financeiras mediante transferências brutais de rendimentos do trabalho para o capital financeiro. 

Depois da satisfação que o FMI não conseguiu esconder, nada melhor para avaliar o contentamento deste “regresso aos mercados” do que as declarações sincronizadas dos banqueiros portugueses. Desde Mira Amaral, cujo banco que dirige foi recentemente prendado pelo Estado com um negócio de favor, passando pelo BANIF e pelo BCP, até ao Espírito Santo de Salgado todos eles vieram pôr “o povo em guarda” contra qualquer hipótese de crise política. Ou seja, vieram chantagear os portugueses deixando pairar a ideia de que uma crise política acarretaria consequências terríveis para o seu futuro.

Esta crise e este tempo que vivemos são muito diferentes de todos os demais. É uma crise que não se resolverá com pequenas medidas nem com retoques de circunstância. Este constante aprofundamento do fosso entre uma ínfima minoria que arrecada a maior parte do produto e a esmagadora maioria que vê, a todos os níveis, continuamente degradada a sua situação só se resolve com mudanças profundas que atinjam o centro do poder económico. Impossível? Também era impossível acabar com o absolutismo real na Europa e acabou-se. Também era impossível acabar com o nazismo na Alemanha ou, mais impossível ainda, derrotar Hitler e derrotou-se. E os exemplos poderiam multiplicar-se.

Esta crescente desigualdade que o moderno capitalismo financeiro e o neoliberalismo vêm consolidando desde há mais de trinta anos encerra em si e nas suas múltiplas consequências todas as condições para gerar profundas convulsões sociais nos países desenvolvidos. A situação económica da imensa maioria está continuamente a agravar-se na América, tem-se agravado imenso nos países periféricos da Europa e acabará também por atingir os mais ricos, como já está a acontecer no Reino Unido. A “machadada” que, de uma forma ou de outra, todos eles se preparam para dar no Estado Social – que é o essencial do pacto que tem assegurado a paz interna e evitado a confrontação entre os países – vai necessariamente gerar consequências que "eles" supõem estar em condições de evitar. Mas não estarão. É certo que tudo isto leva tempo a interiorizar, mas depois de a mecha pegar fogo ninguém mais o vai conseguir extinguir.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

DIÁRIO DA GUINÉ



 
UM LIVRO DE ANTÓNIO GRAÇA DE ABREU
 
 
Vem a propósito do quadragésimo aniversário da morte de Amílcar Cabral falar num livro publicado há cerca de seis anos mas de que somente há dias tive conhecimento – Diário da Guiné, escrito por António Abreu, entre Junho de 1972 e Abril de 1974, quase dia por dia o tempo da minha comissão de serviço na Guiné, em Bissau, na secção de Justiça do Comando da Defesa Marítima.
Para além da enorme diferença que à época representava ser colocado em Bissau ou no mato, há ainda uma outra porventura não menos negligenciável: fazer o serviço militar na Marinha ou no Exército. A diferença era sob todos os aspectos abissal.
 
António Abreu foi mobilizado para a Guiné com 23 meses de tropa cumpridos em Portugal, tendo sido sucessivamente colocado em Canchungo (antiga Teixeira Pinto), Mansoa e Cufar. Ou seja, quanto mais a comissão se aproximava do seu termo mais perigoso era o local para onde o mandavam.
 
Tendo muito presente as grandes datas dos dois últimos anos de guerra e as ocorrências que tragicamente as assinalam, segui, como se estivesse a reviver esses mesmos tempos, esta narrativa contada por quem viveu de muito perto esses mesmos acontecimentos.
O livro de António Abreu é, a vários títulos, um testemunho notável do que foram os dois últimos anos de guerra na Guiné não apenas no plano militar, mas também no plano das relações entre os milicianos e os soldados, do comportamento das chefias militares mais próximas, do estado de espírito dos combatentes, do relacionamento dos soldados com a população, das dificuldades correntes do quotidiano que se agravavam dramaticamente quanto mais perigoso era o teatro de operações, da filosofia de vida com que se encarava a inevitabilidade de uma comissão de 22 ou 24 meses, da incerteza sobre o dia seguinte, a partir de certa altura, do minuto seguinte…
Tudo isto António Abreu conta numa prosa elegante, sempre com muita grandeza de espírito e notável humanismo. O modo como salpica a narrativa com alguns episódios burlescos acontecidos no dia-a-dia da guerra e a fina ironia com que os trata fazem lembrar alguns dos melhores gags de Chaplin. Por outro lado, o equilíbrio das suas apreciações e o sentido de justiça sempre presente, mesmo nas condições mais difíceis, fazem com que ele seja capaz de apreciar as qualidades e até as virtudes daqueles de cuja acção discorda. A suposta ingenuidade com que aceita o inevitável, mantendo-se sempre íntegro e igual a si próprio, e a sua vasta cultura contribuíram certamente para que tenha saído sem traumatismos de uma guerra que se ia tornado mais violenta à medida que se ia aproximando fim.
Das muitas leituras sobre a Guerra Colonial, desde as narrativas de militares até à obra de ficcionistas consagrados, passando pela obra dos historiadores, tenho na minha modesta capacidade de apreciação literária o “Diário de Guerra” de António Abreu como uma das obras mais interessantes que sobre o tema já li.


AMÍLCAR CABRAL


 

A GUINÉ DEPOIS DE 1973

 

Há quarenta anos foi notícia no mundo inteiro – e por maioria de razão na Guiné – a morte de Amílcar Cabral, assassinado na véspera, à noite, em Conacri.  

Seria interessante a esta distância reler o modo como a imprensa portuguesa deu a notícia, nomeadamente a ligada ao regime fascista. Como alguns se recordarão imediatamente se insinuou a existência de uma grande divisão no seio do PAIGC, entre guineenses e cabo-verdianos, que teria estado na origem da morte do grande nacionalista e revolucionário africano. Chegou inclusive a apontar-se o nome do sucessor, Dr. Vítor Monteiro, ex-quadro da CUF, como então foi identificado.

O contexto em que a notícia foi inserida não tinha nada de novo quando comparada com as notícias das mortes de Humberto Delgado e de Eduardo Mondlane. Também nestes dois casos os assassínios de Delagado e de Mondlane eram atribuídos a divergências internas dos que lutavam contra a ditadura ou mais genericamente contra o colonialismo.

A quem então cumpria serviço militar na Guiné a notícia causou profunda apreensão. Admitiam-se retaliações em grande escala ou talvez pior do que isso a condução da guerra por parte do PAIGC em moldes diferentes dos que até então tinham ocorrido. De facto, havia a convicção generalizada entre os que cumpriam o serviço militar na Guiné, como uma inevitabilidade a que somente com uma alteração radical dos planos de vida se poderia escapar, que Cabral conduzia a guerra com ética.

Tanto assim que mesmo depois da falhada operação “Mar Verde”, o PAIGC continuou a fazer a guerra do mesmo modo sem retaliações específicas.

A morte de Cabral, ao contrário do que admitiam os que dela, secretamente, se vangloriaram, não enfraqueceu o PAIGC, nem alterou o rumo da guerra de libertação. Pelo contrário, desde então até ao colapso do colonialismo o PAIGC não deixou de somar vitórias na Guiné.

A primeira vitória do PAIGC foi a substituição pacífica e consensual do líder morto. Depois foi a declaração da Independência em Madina do Boé em 23 de Setembro de 1973 da nova República da Guiné-Bissau, reconhecida pouco depois por várias dezenas de países. Mais do que aqueles com que Portugal mantinha relações diplomáticas.

As grandes vitórias militares ocorreram, porém, antes. Primeiro com introdução dos mísseis terra-ar SAM-7, conhecidos como Strela, que abateram dois jactos bombardeiros FIAT G 91 e dois Dornier (DO) – um terceiro foi atingido mas conseguiu regressar à base - que praticamente neutralizaram a acção da Força Aérea na Guiné ; e depois com as violentas ofensivas no Norte contra Guidage e no sul contra Guileje e Gadamael, cujas regiões, principalmente a sul, passaram a ser um verdadeiro calvário para a tropa portuguesa.

As derrotas do PAIGC e da Guiné-Bissau ocorreram, infelizmente, muito mais tarde, depois da independência. Embora os primeiros grandes responsáveis pelo descalabro a que a Guiné-Bissau chegou sejam antes de mais os seus dirigentes que não souberam estar à altura da herança de Cabral, a verdade é que Portugal poderia ter feito mais, muito mais, para impedir que a Guiné-Bissau caísse no atoleiro em que agora está mergulhada.  

Sobre a morte de Amílcar Cabral escreveram entre outros Oleg Ygnatiev – “Três tiros da PIDE, quem, porquê e como mataram Amílcar Cabral” e José Pedro Castanheira – “Quem mandou matar Amílcar Cabral”.

No início de Janeiro de 1973 esteve na Guiné Alpoim Galvão, comandante da Operação Mar Verde (1970), entretanto colocado em Lisboa, salvo o erro no início de 1972. Alguns dos que à época prestavam serviço militar na Guiné, na Marinha, ou no Comando Chefe (Amura), terão conhecimento deste facto. Há relativamente poucos anos, já neste século, Otelo referiu-se a esta estadia… apesar de ela não figurar nos anais da guerra colonial portuguesa.

Na recente biografia de Alpoim Calvão – “Uma Quase Biografia – Alpoim Calvão, Honra e Dever” - de Rui Hortelão, Luís Sanches de Baena e Abel Melo e Sousa, não consta qualquer referência desta viagem de Alpoim Calvão à Guiné, embora nela se reconheça que Calvão continuava empenhado na guerra da Guiné, no quadro de um plano por ele denominado “Dragão Marinho”, o qual implicaria conversações com altos dirigentes da guerrilha, Cabral e irmão, entre outros – factos nunca confirmados pelo PAIGC nem sequer alguma vez referidos onde quer que fosse. O que terá havido, bastante mais tarde, mas dessas diligências Calvão estava completamente à margem, foram diligências exploratórias em Londres, conduzidas por diplomatas portugueses, com vista ao estabelecimento de negociações com o PAIGC. Isto, porém, numa altura em que a guerra já estava completamente perdida.

Nesse mesmo mês de Janeiro de 1973 o que a biografia refere é uma guerra de Alecrim e Manjerona entre Alpoim Calvão, então Comandante da Polícia Marítima do Porto de Lisboa e o Comandante da Guarda Fiscal para saber qual das duas instituições (ou ainda a PIDE) deveria ficar com uns caixotes com livros que a bordo de um cargueiro dinamarquês seguiam para o MPLA. Os ofícios ou notas de Alpoim Calvão transcritos no livro estão datados (2 e 12 de Janeiro); os da Guarda Fiscal não estão. Enfim…

 

sábado, 19 de janeiro de 2013

O DEBATE SOBRE A REFORMA DO ESTADO

 "REFUNDAR O ESTADO" OU RENEGOCIAR A DÍVIDA?
 
Com as esperadas participações de conhecidos representantes do “Bloco Central” e de outros que no Outono da vida se têm aproximado das posições de direita numa trajectória que acima de tudo os envergonha e lhes deixa uma mácula que o tempo já não está em condições de limpar, a direita encenou um simulacro de debate sobre a “Refundação do Estado” no seio da sociedade civil, representada pelos “Bentos” e pelos “Nabos” do costume, mais os tais que agora se acolheram na trincheira do colaboracionismo, supondo que assim asseguraria a legitimidade para as conclusões que o Moedas já trazia debaixo do braço quando abriu a conferência.
 
Puro engano. Ninguém de boa-fé poderá aceitar as conclusões de um falso debate fundado num Relatório elaborado pelo FMI com a colaboração do Governo, representado por Portas e Gaspar, mais os seus jovens turcos, em que o Fundo para além dos muitos epítetos com que tem sido mimoseado no seu papel de impulsionador e depois guardião do neoliberalismo desempenhou agora o de barriga de aluguer, apondo, a troco de dinheiro, a sua chancela num documento cujas grandes linhas o Governo havia previamente definido.
 
Se esta actuação do Governo – a tal tentativa de adesão da “sociedade civil” ao Relatório e a sua pretensa elaboração por uma entidade internacional - serve para ilustrar a falta de legitimidade que os factos demonstram o Governo já não ter, ela serve também, ou acima de tudo, para pôr a claro até onde o Governo está disposto a ir no louco fundamentalismo que anima a sua actuação. Desemprego de milhares de pessoas a juntar ao quase um milhão de desempregados, cortes brutais nos salários e nas pensões, aumento desmedido das taxas moderadoras na saúde, propinas mais caras são apenas alguns exemplos de medidas que o Governo se propõe de ânimo leve pôr em prática sem a menor preocupação pelos efeitos socialmente devastadores resultantes da sua aplicação.
 
Dizem os representantes bem-pensantes da direita plutocrática que o facto de Governo revelar falta de jeito para tratar destes assuntos nos não deve impedir de discutir um problema sério que existe na nossa sociedade, a saber: a existência de um Estado exagerado incomportável pela nossa economia que urge reajustar ao tamanho das nossas possibilidades.
 
Esta é como se sabe a conversa sobre o “vivermos acima das nossas possibilidades”. Primeiro, começou por aplicar-se a nós, aos cidadãos, impondo-nos cortes nos salários e nas pensões, desemprego em massa e aumento de impostos, para justificar a recapitalização dos bancos, mas também para pagar as rendas escandalosas concedidas às empresas energéticas, bem como as não menos escandalosas prestações das parcerias público-privadas tanto no domínio das obras públicas como no da saúde, além de todos os escandalosos negócios que o capital financeiro e as grandes empresas de construção civil pressionaram o Estado a fazer, para já não falar na vigarice dos banqueiros do BPN e nas múltiplas asneiras de política económica que os diversos governos foram cometendo depois da adesão à “Europa” quase sempre a troco de vantagens oportunistas que em regra se esvaziavam mal se produzia o efeito eleitoral que tinham em vista alcançar.
 
Agora é essa mesma conversa aplicada ao Estado. Também o “Estado vive acima das suas possibilidades”, gastando mais do que aquilo que recebe. Sem esquecer que, nesta conversa, somente os lucros das grandes empresas, os salários e os prémios dos executivos e os honorários dos grandes escritórios de advogados “amigos do Relvas”, como outrora já foram amigos de outros, “vivem dentro das nossas possibilidades” e convivem bem com centenas de milhares de desempregados, pensionistas de miséria e o empobrecimento imparável de uma frágil classe média, é bom que se perceba que não se pode participar num debate falseado à partida por assentar em pressupostos criados, ou fortemente amplificados, por uma política que visa exactamente a situação a que se chegou para assim ter uma base material pretensamente objectiva que lhe permita completar a execução do programa que o PSD e o CDS esconderam dos portugueses durante a campanha eleitoral, ludibriando-os com falsas promessas.
 
 
A recusa de participar discussão da “Refundação do Estado” nas bases e no contexto fixados pelo Governo não resulta tanto da falência técnica do Relatório manifestamente assente em alguns dados de facto errados ou de uma errada e tendenciosa interpretação dos factos que lhe servem de base, nem sequer de as suas conclusões terem sido previamente encomendadas pelo Governo. Resulta fundamentalmente do facto de não se poder participar numa discussão que já tirou as conclusões antes da discussão se iniciar e que assenta num contexto propositadamente criado para propiciar e favorecer as conclusões cuja execução o Governo encara como única saída possível para a superação da crise em que o país está mergulhado.
 
Trata-se, portanto, de uma discussão assente em pressupostos tidos por inalteráveis quando o que está em causa é exactamente o questionamento desses pressupostos e a necessidade urgente da sua alteração. Ou seja, o que interessa ao país é antes de mais inverter a actual política, fomentando uma política de crescimento que rapidamente o permita regressar a um patamar de riqueza, no mínimo, equivalente àquele que existia antes da imposição das políticas de austeridade. E em segundo lugar, o que interessa a Portugal e aos portugueses não é o aprofundamento das desigualdades que desde há uns anos a esta parte se tem acentuado na sociedade portuguesa quer por via da deflação salarial e do desemprego quer em consequência da redução ou mesmo da eliminação dos direitos sociais. O que interessa aos portugueses é exactamente o contrário. E é nesse sentido que tem de ser orientada qualquer discussão que tenha por objecto a saída da crise. Essa saída terá de passar não com uma diminuição das despesas com o Estado social mas por um substancial embaratecimento do serviço da dívida. A dívida e o seu custo, que tiveram uma subida exponencial com a crise e, principalmente, com as políticas recessivas impostas pela Troika, serão a curto prazo insustentáveis. E a única forma de tornar a dívida sustentável sustentável no interesse de todos, dos portugueses e dos credores, é renegociá-la, cancelando-a parcialmente e indexando o pagamento da parte restante ao crescimento da procura externa.
 
Ora este relatório como tantos outras acções da Troika e do Governo visa exactamente o contrário e insere-se numa ofensiva contra o Estado social, deixando em sua substituição um Estado assistencial com o cortejo de misérias, de desigualdades e da ausência de direitos que lhe andam associados, bem como contra os direitos do trabalho e contra partes significativas da procura interna com vista a criar um Estado neoliberal “bacteriologicamente puro”.
 
A “Refundação do Estado” que o Governo e o FMI têm em vista consiste, portanto, na substituição do actual Estado por um Estado mínimo que deixe ao capital privado campo livre no plano económico e social de modo a que as funções antes exercidas pelo Estado nestes domínios se transformem agora numa fonte de lucro, quer sob a forma de apropriação dos respectivos meios de produção, quer sob a forma, porventura mais grave, de contratos de gestão ou concessão por via dos quais o Estado se obrigue a pagar ao capital as funções que este passará a desempenhar em sua substituição.
E isto os portugueses não podem aceitar.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

AINDA O RELATÓRIO DO FMI


 
O MAIS PREOCUPANTE

 

Preocupante é antes de mais o conteúdo do “relatório do FMI”. Mas ainda mais preocupante que o seu conteúdo é a possibilidade da sua execução. E esta possibilidade existe - é essa como se sabe a vontade do Governo -, apesar da rejeição com que foi recebido por larguíssimos sectores da sociedade portuguesa.

O relatório encerra um programa de governo, pronto a executar no curto prazo, que Passos Coelho e Gaspar se preparam para pôr em prática, se a oposição a este atentado contra o Estado social se limitar à oposição parlamentar e aos meios institucionais que as forças políticas orgânicas consigam ou queiram mobilizar.

De facto, há fundadas razões para temer que, com base na estafada, mas sempre eficaz, argumentação da ausência de alternativa e com a concordância implícita dos que no fundo a reconhecem, embora publicamente queiram dar a impressão que a negam, o Governo e as forças ultra-reaccionárias que o apoiam consigam desde logo paralisar o Presidente da República e a UGT/João Proença (o que, diga-se, nem sequer é um feito de registo), bem como, no quadro de uma retórica enganadora, o próprio PS. E o que sobra, sendo politicamente muito importante, é orgânica e institucionalmente insuficiente para impedir a concretização daquele programa.

Por outro lado, não pode esperar-se, nem tal facto deve ser minimamente valorizado na luta política, que os atritos no seio da coligação levem ao colapso do Governo. Isso não acontecerá, pelo menos tão cedo, e se porventura, mais tarde, vier a acontecer as razões que poderão estar na base da dissolução da aliança nada tem a ver com divergências de fundo quanto ao sentido da governação mas prender-se-ão antes com razões de natureza puramente eleitoral e de oportunismo político.

Na verdade, o CDS, com excepção do agravamento dos impostos (na medida em que esse agravamento possa atingir os mais ricos), está substancialmente de acordo com as medidas constantes do relatório, nomeadamente com as relacionadas com o corte da despesa, sendo mesmo um dos grandes inspiradores desse programa. Aliás, são da sua responsabilidade principal algumas das medidas já em vigor que mais afectam os portugueses de menores recursos, de modo que com a falsa atitude que vem mantendo perante a comunicação social apenas pretende tirar vantagens políticas da interpretação que os comentadores e o próprio PS têm feito da farsa que tem sabido representar de oposição interna ao Governo.

Como aqui já foi dito e tem de se repetir uma vez mais, Paulo Portas apenas estava interessado em estancar uma corrente noticiosa prejudicial relacionada com a sua anterior passagem pelo governo que ele sabe ter origem em Relvas. Uma vez alcançado esse objectivo, a farsa baixou de tom e o CDS passou a alinhar cada vez com mais convicção no “combate pela diminuição da despesa”, ou seja, como parceiro privilegiado do FMI.

Outro dos equívocos deste debate político que tem claramente confundido o PS e até, às vezes, as forças políticas de esquerda, detectável em certos deslizes de linguagem, tem a ver com o papel do FMI. Se já não vale a pena falar no inacreditável Proença que se faz de muito ofendido mas que na realidade somente espera um pequenino sinal do Governo para concordar com ele, sinal que o Governo vai adiando para que seja cada vez mais pequena a cedência que acabará por lhe fazer, já vale a pena insistir no desconhecimento profundo que os políticos do PS mais em evidência nesta liderança de Seguro têm revelado acerca comportamento do FMI enquanto guardião e aplicador implacável da ortodoxia neoliberal.

O que na Europa há de relativamente novo quanto a anteriores actuações do FMI noutros continentes como representante e defensor dos credores são as consequências económico-financeiras da existência de uma moeda única, bem como os específicos problemas que esse facto levanta. Mas vistas bem as coisas nem sequer isto é completamente novo já que na América Latina na década de noventa (parte final) e começo do novo milénio o Fundo teve de se defrontar com uma situação sensivelmente idêntica como foi o caso da dolarização de algumas economias, nomeadamente as do Equador e da Argentina.

É certo que as situações são diferentes e a prova disso é que esses países puderam unilateralmente resolver os seus problemas de outra maneira, como aconteceu no Equador, e como poderia também ter acontecido com sucesso na Argentina, não fosse dar-se o caso de a Argentina continuar a ser, infelizmente sempre, um caso muito especial.  

Mas o que com esta digressão por anteriores experiências do FMI se pretende dizer é que num quadro monetário relativamente semelhante ou num quadro de autonomia da moeda nacional o comportamento do FMI foi sempre o mesmo: impor a aplicação de medidas recessivas, privilegiar as exportações, de preferência de matérias-primas, com vista a assegurar o pagamento integral dos credores mesmo que à custa do empobrecimento global do país e do desemprego em massa, principalmente dos sectores que não contribuam directamente para aquele objectivo. Na última década do século passado durante a crise asiática, da Rússia e da América Latina foram cometidas nos países que se sujeitaram às "receitas" do FMI autênticas barbaridades que Stiglitz (mas não só) nos vários livros que escreveu sobre o assunto relata com a acutilância crítica que tais situações merecem.

Outro factor de profunda preocupação, embora as duas questões estejam intimamente ligadas, tem a ver com a ausência de uma firme rejeição, por parte de sectores da oposição, da transformação de Portugal num protectorado de organizações internacionais representativas dos credores e do capital financeiro. É uma situação tão escandalosa a que se vive em Portugal neste domínio e há uma tal promiscuidade entre aquelas organizações e o governo-fantoche do Estado português que causa espanto como tal situação pode ser encarada como relativamente normal por uma parte muito significativa da oposição institucional. Governo-fantoche do ponto de vista da soberania nacional, entenda-se, mas não fantoche no zelo e na extrema eficiência com que sujeita o povo português à disciplina imposta do exterior!

Perante estas graves questões o PS de Seguro – e será só o de Seguro? – mantem-se cautelosamente nas franjas de uma oposição que na realidade não impedirá que a execução do programa do programa do Governo se venha a consumar. De facto, parece tratar-se de uma oposição que visa apenas e só assegurar, no tempo certo, a transferência do poder agora na posse do PSD/CDS para o Partido Socialista. E o tempo certo é aquele que permita ao actual Governo fazer tudo o que de mais importante tem a fazer na execução daquele programa – destruição do Estado social e desmantelamento do actual modelo económico com vista ao ressurgimento de um modelo que, dadas as condições económicas portuguesas, só poderá ser de tipo terceiro-mundista.

E por que é que isto acontece? Por que razão não faz o PS uma oposição à altura da gravidade da situação? Por que razão se mantém relativamente às questões essenciais numa oposição de meias-tintas? Porque o PS não é portador de uma verdadeira alternativa. O PS transporta na sua oposição uma pequena mala de cosméticos que, à parte a crença numa salvífica solução vinda da Europa, nada alteraria de muito significativo relativamente ao que de mais grave Passos Coelho tem feito. Esta é que é a terrível verdade.

Uma verdade que não corresponde aos interesses nem à vontade da esmagadora maioria do seu eleitorado, mas que o PS se recusa a rever porventura mais por uma questão de identidade partidária, como aqui já foi explicado, do que propriamente por convicção política.

De facto, só um ataque à questão central da despesa do Estado permitiria enveredar por um caminho capaz de relançar o crescimento. E a questão central da despesa do Estado é a dívida, ou mais correctamente: o serviço da dívida. Portugal não pode hipotecar o seu futuro nem o dos portugueses de hoje e de amanhã ao pagamento de uma dívida que quanto mais se ataca com medidas de austeridade mais cresce.

Portugal tem de eliminar uma parte significativa da sua dívida externa (a dívida interna terá de ter outro tratamento) e condicionar o pagamento da dívida sobrante a uma percentagem do crescimento das exportações. Se isto se não fizer e enquanto se não fizer o empobrecimento adquirirá uma dinâmica imparável.

Este programa inevitável pressupõe repensar a Europa, o Euro e as alianças. Mas não se pense que o que se passa com Portugal é caso único. No ano em curso a Espanha vai ter de pedir, em média, para cima de 600 milhões de euros por dia assegurar o serviço da dívida, aumentando esta de várias dezenas de milhares de milhões de euros no fim do ano!

Assim sendo, o que sobra para impedir que a tragédia se consume é um levantamento nacional, como de certo modo já aconteceu a 15 de Setembro contra a TSU. Só que os levantamentos inorgânicos ou insusceptíveis de serem enquadrados por forças organizadas correm sempre o risco de tornar efémeras as vitórias alcançadas, como se viu com levantamento de 15 de Setembro. O Governo recuou na TSU, mas replicou com um ataque fortíssimo nos demais domínios como o actual Orçamento sobejamente comprova, assegurando uma das maiores transferências de sempre de rendimentos do trabalho para o capital. Portanto, esse levantamento é indispensável mas tem de ser subsequentemente institucionalizado pelas forças que lhe saibam dar expressão política…

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A GRANDE ESCALADA MAL COMEÇOU



 
SE NADA FIZERMOS O PIOR ESTARÁ PARA VIR
 
 
Só mesmos os ingénuos e, digamo-lo abertamente, os ignorantes poderiam supor que o FMI representaria no seio da Troika o parceiro mais estimável daquela famigerada tríade. O FMI, pelo contrário, é o líder ideológico da escalada neoliberal em curso desde meados da década de oitenta do século passado e que somente estabilizará quando destruir não apenas o Estado social, bem como os direitos laborais, culturais e sociais que lhe estão associados, mas também o Estado de direito na concepção com que hoje é entendido nas democracias representativas de tipo ocidental.
Pelas razões que a seguir se desenvolverão, em épocas de crise – e é sempre em épocas de crise que o FMI desfere os seus pérfidos e letais ataques - o ataque ao Estado social é mais fácil de levar a cabo do que o ataque descarado ao Estado de direito, embora seja neste duplo sentido que já se caminha, mais ou menos abertamente, nos países menos desenvolvidos do grupo dos mais desenvolvidos, afectados pelas crise, como é o caso da Grécia, de Portugal e da Irlanda, que estão desempenhando relativamente àquele grande objectivo um papel de cobaias muito semelhante (no sentido de equivalente) ao que, no século passado, os países subdesenvolvidos da África e da Ásia e mais tarde da América Latina desempenharam no lançamento da sociedade neoliberal globalizada dos nossos dias. Também nestes o FMI actuou, sob a direcção do capital financeiro, com o apoio das grandes organizações internacionais, não apenas as de natureza económica, a partir de uma situação de crise – crise da dívida criada, tal como a actual, pelo capital financeiro.
O ataque ao Estado social, com o objectivo único de transferir para a empresa privada, isto é, para o lucro, as funções agora desempenhadas pelo Estado nos domínios da educação, da saúde e da segurança social, vem sendo feito com recurso a argumentos demagógicos que a situação de crise torna susceptíveis de colher o apoio, se não mesmo o aplauso, de camadas da população cujos interesses, aparentemente, não estão cobertos por aquela acção protectora ou que se julgam perdedoras por lhes ser exigida uma contribuição superior às vantagens e benefícios que dela retiram. Simultaneamente, e com o mesmo objectivo, ao desferimento deste ataque contra as funções do Estado assiste-se a uma escalada contra os direitos laborais, sociais, económicos e culturais das classes trabalhadoras, ou mais genericamente, dos trabalhadores por conta de outrem, com vista a desonerar o Estado do pagamento de despesas cujos recursos serão integralmente transferidos para o capital privado, principalmente para o capital financeiro.
Em poucas palavras é este, para começar, o projecto que o FMI tentará pôr em prática em Portugal para “refundar o Estado”.
Mas o ataque neoliberal não se fica por aqui. É preciso também destruir o Estado de direito nalgumas das manifestações mais eminentes dos princípios que dele decorrem. É neste sentido que devem ser interpretadas as intervenções dos “novos fascistas” (terminologia que doravante utilizaremos para caracterizar os corifeus deste ataque bem como os seus apaniguados e que um dia tentaremos fundamentar teoricamente para que o termo não pareça uma simples aberração retórica) contra a Constituição, relativamente a questões que nada tem a ver com o Estado social, nomeadamente a propósito da eventual ou hipotética declaração de inconstitucionalidade de normas orçamentais.
Quando se ataca a previsível fundamentação do Tribunal Constitucional e simultaneamente se afirma que o país não pode viver com esta Constituição, o que no fundo se quer dizer é que o princípio da igualdade, o princípio da protecção da confiança dos cidadãos e da segurança jurídica, o princípio da proibição do excesso e o princípio da proporcionalidade, entre outros, devem ser banidos da Constituição. O que os novos fascistas pretendem é que, sob a sua égide, haja um poder sem barreiras, prepotente e incontrolável.
Claro que isto não pode ser feito nem defendido com a boçalidade com que os novos fascistas têm atacado a Constituição neste plano. Primeiramente há-de alguém começar por dizer que o conceito de Estado de direito não é um conceito estático nem pode ficar cristalizado no tempo. Que foi um conceito elaborado pela doutrina numa época em que o Estado desempenhava funções muito distintas das que desempenha hoje (supondo que entretanto já foi mandado para o caixote do lixo o Estado social) e que, portanto, os princípios que o enformam embora continuem os mesmos têm de ser adaptados na sua interpretação e aplicação aos novos tempos. E mais isto e mais aquilo e depois lá estarão, como sempre, os juristas para fazer o resto ou não fossem eles historicamente os grandes sacerdotes do poder ideológico – o poder que dá consistência e confere estabilidade aos poderes económico e político.
É isto uma fatalidade? Seguramente não, apesar de esse ser o programa em vias de concretização do poder económico. A luta vai ser muita dura e muito vai depender da posição que o PS assumir. Se o PS/UGT do Proença e de tantos outros dirigentes socialistas mantiver o posicionamento político que têm tido desde que começou a crise tudo será mais difícil. Infelizmente, a experiência diz-nos que só marginalmente se poderá contar com o PS para este combate. Mas isso não significa que ele esteja à partida perdido.
A vitória dos novos fascistas vai depender muito de nós, da maior parte de nós...