quinta-feira, 26 de julho de 2012

A RESPONSABILIDADE DE PRIVATIZAR COM O EURO EM VIAS DE IMPLOSÃO



QUEM SABE O QUE VAI ACONTECER A ESPANHA?

Sobre as privatizações da TAP, da REN e da RTP há mais a dizer para além de tudo o que já foi dito aqui e noutros lados em múltiplas ocasiões. Tendo em conta a situação em que se encontra a zona euro, com três países intervencionados, todos eles mergulhados em recessão, com dois à beira de não poderem financiar-se no mercado pelo exorbitante preço dos empréstimos de que necessitam para continuar a honrar os seus compromissos, com o euro muito próximo do colapso, que sentido tem as nacionalizações que o Governo quer fazer? O que se pretende com elas? Obter dinheiro, dirá Gaspar, para abater à dívida. Pura ilusão: se o euro terminar, hipótese mais provável, ou se, na hipótese menos provável, a Grécia, Portugal, a Espanha e a Itália tiverem de abandonar o euro e este continuar, aquelas privatizações vão ficar muito caras ao povo português e a Portugal, pois numa altura em que se fará necessariamente a renacionalização das políticas económicas e financeiras a perda daqueles sectores estratégicos para mãos estrangeiras, importantíssimos para a economia nacional, deixará o país numa situação gravíssima.

Com o colapso do euro ou com o abandono do euro por um grupo de países, a União Europeia não mais existirá como hoje a conhecemos. O mais provável é que ela se desfaça, mas mesmo que isso não acontecesse cada país passaria a tratar da sua própria vida de acordo com as necessidades impostas pela situação de emergência em que se encontraria. Se aqueles sectores estratégicos estiverem privatizados nem sequer se pode pôr de parte a hipóteses de eles virem a ser novamente nacionalizados, porventura em clima de hostilidade, com todas as consequências que daí adviriam.

Se outras razões não houvesse, e há muitas, a mais elementar prudência levaria a que o Governo suspendesse de imediato estes processos, qualquer que fosse a justificação apresentada, até poder ver com mais nitidez como vão evoluir as coisas na Europa. Actuando como parece que está disposto a actuar, o Governo não está apenas a ser imprudente, está a cometer um crime de lesa-pátria pelo qual não pode deixar de ser responsabilizado.

Mas não é só o governo que está a actuar contra o interesse nacional. Não é apenas Passos Coelho, Gaspar e Portas que terão de ser responsabilizados pelo que estão a fazer. Há mais: pela calada, ou seja sem qualquer discussão prévia, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa facilitou ou até se pode mesmo dizer possibilitou a privatização da ANA, uma empresa altamente lucrativa que o Estado Português está em vias de perder.

Havia uma disputa de décadas sobre a propriedade dos terrenos em que está situado o aeroporto de Lisboa. A propriedade era simultaneamente reclamada pelo Estado e pela Câmara. Havia mesmo ao que parece um processo judicial instaurado há muitos anos que nenhum juiz “se atrevia” a resolver. A Câmara aparentemente mantinha sobre o assunto uma posição firme, tanto mais firme quanto mais perto esteve de se concretizar o projecto de construção do novo aeroporto de Lisboa. Diversas vezes João Soares, enquanto presidente da Câmara de Lisboa, falou publicamente do assunto, deixando claro que os terrenos eram da Câmara, dos quais nunca abdicaria. O actual presidente da Câmara chegou mesmo a dizer nas campanhas eleitorais que esses terrenos se destinariam à construção de um grande parque, de uma enorme zona verde, caso o aeroporto viesse a sair de Lisboa.  

Tudo conversa, tudo mentira. O presidente da Câmara, António Costa, acaba de vender ao Estado os tais terrenos ao que parece por baixo preço. Mas isso não é necessariamente o mais importante. O mais importante é ele ter resolvido em poucos dias uma disputa que durava há décadas para facilitar a privatização.

Portanto, se amanhã ouvirem dizer a alguém do PS que é ou que o partido é contra estas privatizações, por favor, não acreditem. Não se deixem enganar. São iguais aos que lá estão. Porventura ainda pior. É que os que lá estão só enganam quem se quer deixar enganar enquanto estes fazem da duplicidade do discurso a sua verdadeira profissão.


AS PRIVATIZAÇÕES E O MINISTÉRIO PÚBLICO

É MESMO PARA INVESTIGAR?




Há dias os jornais davam conta de que o Ministério Público estava a investigar as privatizações da EDP e da REN, ou com mais rigor, “estava a investigar a intervenção e conduta de alguns assessores financeiros do Estado nos processos de privatização da EDP e da REN”.

Muito provavelmente, como é hábito em Portugal em circunstâncias idênticas, esta investigação não vai dar em nada por maiores que tenham sido as irregularidades. Além de que há males que já estão feitos e que nenhuma investigação pode agora reparar.

Mas se o MP está realmente interessado na investigação dos processos de privatização que aproveite o facto de estarem neste momento a correr três - TAP, ANA e RTP -, todos eles muito importantes, e tente perceber o que se passa nestes processos exactamente nas mesmas matérias que ditaram as investigações em curso nas privatizações já concluídas. Que a investigação se faça enquanto o ovo ainda está no ninho e não mais tarde quando já se encontrar “cá fora” a cantar de galo.

Ainda ontem o Presidente do BCI protestava contra os milhões que o seu banco tem pago a consultores estrangeiros escolhidos pelo Ministério das Finanças e pelo Banco de Portugal para assessorar o processo de recapitalização da banca. E até se queixou de as reuniões para tratar desses assuntos, ou seja, de assuntos exclusivamente portugueses, do Governo português, serem todas em inglês, porque é essa a língua que os senhores consultores falam. 
Pois bem, sabe-se pelos jornais que nos processos de privatização em curso há várias entidades a assessorar o Ministério das Finanças e as empresas a privatizar, mas da leitura dessas mesmas notícias depreende-se que a informação é escassa. Veio a lume o nome de um ou outro consultório de advogados, mas percebe-se que haverá mais gente envolvida, porventura muito mais. Assim sendo, o racicínio é simples: se se está a averiguar as asssessorias às privatizações da EDP e da REN, se se sabe como essas assessorias foram escolhidas, se se suspeita de terem permitido o acesso a informação privilegiada ou de ter havido abuso de acesso a essa informação, então que se investigue também o que se está a passar  nos actuais processos de privatização, pois mais vale que depois da investigação feita não restem dúvidas sobre a lisura dos processos utilizados do que  no fim sobrem as incertezas ou mesmo as suspeitas de graves irregularidades que já não podem ser evitadas.

Se a privatização da RTP levanta à partida todas as suspeitas, qualquer que seja o ponto de vista de quem suspeita, por estar a ser conduzida por um ministro que perdeu politicamente credibilidade, as outras duas não levantam menos. Há muitos interesses e muito dinheiro em jogo. Perceber-se-ia muito mal que tais privatizações estivessem a ser conduzidas por consultores estrangeiros, sabendo-se, como se sabe, a teia de ligações que esses gabinetes mantêm com o capital financeiro e os hipotéticos compradores. Se for esse o caso, e cabe ao MP investigar, a história recente noutros países (e, ao que parece, também em Portugal) demonstra que os consultores desempenham frequentemente o papel de pontas de lança de outros interesses, como se tem visto nos Estados Unidos e na Inglaterra onde os conluios têm sido frequentes. Claro que se os consultores forem portugueses poder-se-ia passar exactamente o mesmo, mas há apesar de tudo limitações objectivas que uma empresa de projecção internacional, por exemplo, um banco, obviamente não tem.

O Ministério Público tem de partir do princípio que não está a investigar um negócio do equivalente sr. Relvas ou de Vítor Gaspar, mas um negócio do Estado português. E que os negócios do Estado têm regras que têm de ser respeitadas por mais que os liberais suponham que podem actuar nos negócios públicos nos mesmos termos em que actuam nos negócios privados.
Além disso, o Ministério Público também não pode esquecer-se que há em Portugal um responsável oculto pelas privatizações, cujas funções estão revestidas da maior opacidade, que teve ligações muito estreitas com um potentado financeiro, acusado de ter praticado todo o tipo de tropelias pelo mundo fora, obviamente interessado, directa ou indirectamente, em todos os processos de privatização. Ainda há pouco tempo num estudo muito fundamentado um jornalista do Monde demonstrava a rede de ligações ocultas que esse potentado financeiro mantém por todo o lado, nomeadamente com ex-empregados e outros que contrata para actuar por sua conta, com vista a colocá-lo numa posição privilegiada nos negócios em que está interessado.

Que o MP investigue enquanto é tempo…

quarta-feira, 25 de julho de 2012

A MEDIOCRIDADE NA TV




MAIS UM EXEMPLO


Nunca tinha visto um programa da SIC no qual participam António Barreto e Ferreira Leite e, ao que me dizem, outros parecidos com eles mas que por qualquer razão que desconheço hoje não estavam presentes.

Para estar regularmente presente frente ao grande público, seja na TV, seja nos jornais, seja em qualquer outro lado, é preciso ter qualidade, alguma qualidade, dizer ou escrever coisas que possam captar minimamente a atenção dos outros, sob pena essa presença se transformar numa “seca” monumental para quem os ouve ou lê. Pois, é claro, há sempre a possibilidade de mudar de canal ou de fazer o que eu em 99,9% dos casos faço. Desconheço-os; é como se não existissem.

Mas a verdade é que eles existem, estão lá e a probabilidade de noutros lados estarem outros exactamente como eles é muito grande.

Hoje falaram sobre incêndios, sobre o Crato e sobre a Espanha. Sobre os incêndios a Ferreira Leite diz que é o tema recorrente e que quando está calor arde sempre muita coisa. Ora aí está um conjunto de ideias importante. Daquelas que fazem reflectir e nos ensinam a pensar. O Barreto é mais modesto nas suas apreciações: o que é preciso é saber se aqui arde mais ou menos do que nos países semelhantes ao nosso. É preciso ter um cadastro e mais isto e mais aquilo…

Sobre o Crato, Barreto é muito animador: gosta muito do Crato como amigo, como professor, como homem e mais outras coisas que o Crato tem e que eu agora não me lembro. Sobre essa coisa de as turmas passarem a ter mais alunos e haver muitos professores com horário zero, Barreto só fala com números na mesa. Se há muitos de ginástica e poucos de matemática que é que tem a ver uma coisa com a outra. Afinal, fala. Mas só fala com o contexto que ele próprio cria sem os tais números na mesa. E há outra coisa de que o Barreto gosta muito: é da tal escola que o Crato quer fazer. Da escola que não dependa do Ministério. Da escola autónoma regulada pelos paizinhos dos alunos do bairro da Boavista, do Casal Ventoso, da Lapa e da Quinta da Marinha, obviamente. Ora ai está mais uma ideia brilhante. E muito avançada…

A Ferreira Leite, essa não conhece o Crato de lado nenhum, ou seja, conhece-o tanto como ele a conhece a ela, mas acha que ele é um ministro que quer melhorar o ensino. Fantástico, mas mais fantástica ainda foi a objecção do comentador: Então, a Senhora acha que é isso que o distingue dos seus antecessores? Essa terá sido naturalmente uma preocupação comum a todos os que por lá passaram, não acha? perguntou. E ela que já por lá passou como contabilista, respondeu. Nem sempre. Por exemplo, a seguir ao 25 de Abril a preocupação era mais a quantidade. E foi desse mal que sofremos durante muitos anos.

Que mais dizer? Com cavernícolas destes não há mesmo mais nada para dizer. Mas ainda há. Há a questão da Espanha. Barreto põe o ar mais inteligente e respeitável que é possível ensaiar para a televisão e responde com modéstia extrema: se é inevitável ou não o resgate é assunto sobre que não tenho opinião.

Já Ferreira Leite segue nessa matéria a profunda sabedoria popular do ignorante: se eles se lixarem é capaz de ser bom para nós, porque quanto maiores forem os que se vão lixando maior é a probabilidade de eles (o eles só podem ser os “homens de negro”) olharem para nós de outra maneira.

Declaração de plágio: o “lixarem” aprendi eu ontem com o Primeiro Ministro. A senhora disse o mesmo por outras palavras…é que uma senhora é uma senhora, como dizia o O’Neill.


terça-feira, 24 de julho de 2012

A ENTREVISTA DE FELIPE GONZÁLEZ A "EL PAÍS"



AS CULPAS SÃO SEMPRE DOS OUTROS



A extensa entrevista a Felipe González que El País ontem publicou não tem sobre a natureza da crise verdadeiramente nada de novo. Ou melhor, como diria um espanhol bem humorado, ajuda a perceber por que razão Rubalcaba (Secretário Geral do PSOE) à segunda está contemporizador, à terça cabreado e à quarta dialogante. Mas serve também para compreender quão assustador é para os “felipistas” a hipótese de a actual direcção do partido, por pressão das bases, passar a fazer uma oposição dura e corajosa às políticas de austeridade postas em prática por Rajoy por decisão da Troika. No caso uma troika mais informal, até talvez mais inorgânica que a nossa, mas nem por isso menos complacente. Pelo contrário.

O que no fundo González advoga é um grande pacto com o PP no qual se acorde o que há a fazer para que a Espanha passe a ter condições para negociar com a Europa as  medidas indispensáveis para combater a crise. Ou seja, o que é preciso é que sob a visão iluminada do PSOE, tal como González a entende, a Espanha seja capaz de fazer uma verdadeira negociação com a Europa, coisa que até hoje segundo ele não aconteceu. Mais: González considera que as imposições que já fizeram a Espanha para lhe concederem essa ridicularia de 30 mil milhões de euros deixa o governo sem margem de manobra para negociar o verdadeiro resgate, que andará pelos 300 mil milhões de euros.

Para González as culpas da presente situação são dos que se lhe seguiram. De Aznar e de Zapatero, que, segundo ele, deitou muita gasolina no fogo. González nunca perdoou a Zapatero a sua ascensão a Secretário Geral do PSOE contra o seu próprio voto e os candidatos por ele escolhidos. É verdade que a bolha imobiliária espanhola começa a inchar com a liberalização dos solos decretada por Aznar, mas ela tem a sua causa, em Espanha como na Irlanda, na concepção do euro, ou se se quiser ser mais preciso, no modo como esta Europa foi construída a partir de Maastricht. Se antes de Maastricht o modelo de construção já era antidemocrático e relativamente indefinido também não é menos verdade que por essa altura ele não estava em condições de causar tantos danos às partes que o compunham como passou a estar depois de Maastricht, com a agravante de ainda se ter tornado mais antidemocrático.

Sobre este “pecado original” e sobre o modelo de desenvolvimento económico construído em Espanha com os fundos comunitários entrados às catadupas, González não diz uma palavra. As asneiras vieram todas depois e são tanto da responsabilidade de quem as cometeu como de quem emprestou o dinheiro para que fossem cometidas.

Por outro lado, há passos da sua argumentação, toda ela no sentido de pressionar a Alemanha a transformar o BCE numa verdadeira Reserva Federal ao serviço dos Estados insustentavelmente endividados, que se baseiam em factos que ele contesta quando isoladamente analisados, mas que rapidamente perdem essa conotação quando funcionam como simples contexto da conclusão a que quer chegar. Exemplifiquemos: argumentar com base na situação orçamental espanhola e no endividamento do Estado anterior ao desencadeamento da crise para justificar um tratamento preferencial ou pelo menos muito diferente do BCE, tanto mais que ela (a situação espanhola) até era melhor do que a alemã, é um argumento que exactamente se baseia no enaltecimento do que à frente se critica. Então González não percebe que o superávide orçamental espanhol e a baixa dívida pública foram conseguidos à custa das extraordinárias taxas de crescimento que a bolha imobiliária proporcionava e do gigantesco endividamento privado da economia espanhola?

Queixa-se, por fim, González de que, apesar de existir na zona euro uma moeda única, ela não tem em todos os países o mesmo valor. Infelizmente, é verdade. A causa desse estranho fenómeno está na sua concepção e não no uso que dela se fez. Quem pode em capitalismo impedir o lucro? Quem pode impedir o capital de buscar o lucro nas actividades mais lucrativas mesmo que para isso tenha de refugiar-se nas menos sustentáveis? Aliás, que não são sustentáveis sabe-o o capital depois, nunca antes. Basta ler Alan Greenspan para perceber isto. Quando se está na alta, seja ela baseada no que for, ninguém actua partindo do pressuposto de que à alta se segue a baixa. A lógica do capital é outra: aproveitar ao máximo o que está a dar e quando deixar de dar passar para outra.

E como pretende Gonzalez resolver o problema dos países endividados? Pondo o BCE a comprar ilimitadamente dívida pública sempre que o chamado “prémio de risco” ultrapasse os 200 pontos percentuais. Ou seja, sempre que a diferença da taxa de juro entre a do país que se endivida à taxa mais baixa e a do país em questão ultrapassar os 2%, o BCE interviria comprando dívida ilimitadamernte.

Mas como conseguir semelhante coisa se o BCE é exactamente o contrário disto? Mas mesmo que isso acontecesse o problema não ficaria resolvido. Ficaria atenuado, aliviado, mas agravar-se-ia novamente lá mais à frente. Não pode haver em capitalismo dinheiro ao mesmo preço para economias diferentes. A comparação com os Estados Unidos e o Reino Unido não vale. Nos Estados Unidos e no Reino Unido há uma economia – a economia americana e a economia do Reino Unido. Na União Europeia há várias economias!


segunda-feira, 23 de julho de 2012

O MEXIA DA EDP – QUE DESAVERGONHADO

NINGUÉM PODERÁ GARANTIR A IMPUNIDADE DESTA GENTE

O telejornal da RTP desta noite abriu com uma declaração do presidente da EDP: “A decisão do Tribunal Constitucional foi um enorme erro”. A própria forma como este tipo se manifesta, a sobranceria com que emite a sua sentença sobre a decisão do Tribunal, o desprezo que este gajo manifesta pelo Estado de Direito, é o exemplo acabado da gente que nos governa, dos sacanas a quem o país está entregue, do despudor com que vivem à nossa custa e se riem das nossas dificuldades ou da nossa miséria.

Como é possível que um gajo que está à frente da empresa mais endividada de Portugal, que recebe prémios milionários pelos famigerados objectivos que diz atingir à custa de endividamentos e de negócios que não geram qualquer proveito para o país; como é possível que um gajo que está à frente de uma empresa que vive à custa de rendas milionárias extorquidas aos contribuintes portugueses, aos trabalhadores que são obviamente os únicos que contribuem; como é possível que um gajo que actua empresarialmente em regime de monopólio, ou de oligopólio relativamente a certas actividades, ganhando salários obscenos; como é possível que este gajo venha criticar a decisão do Tribunal Constitucional por ter impedido (parcialmente) um confisco?  

Como é possível que este gajo e outros como ele possam ficar impunes? Ah, não podem ficar. Se isto mudar, quando isto mudar – e isto há-de mudar – eles vão ter de prestar trabalho comunitário em quantidade suficiente e em regime de “grande concentração intelectual” que compense o povo de todo o mal que lhe fizeram!


A ESPANHA NO LIMITE E O EURO PERTO DO FIM


AS PIORES PERSPECTIVAS SOBRE PORTUGAL




Que o euro está perto do fim parece não haver dúvidas. Ninguém vai arriscar mais um cêntimo do seu dinheiro para salvar a Espanha, nem a Alemanha parece minimamente disposta a permitir que o BCE injecte biliões de euros na economia. Não é que uma ou outra no actual contexto resolvesse o problema de fundo, mas sempre permitiria algum alívio e atenuaria por mais uns tempos a pressão, sempre na esperança de que algo de positivo pudesse suceder depois, embora não se saiba bem como, nem por que meios.

De facto, o que a Espanha espera e quer não é um resgate verdadeiro e próprio, aliás quase impossível dada a dimensão do “buraco” espanhol; o que a Espanha quer é uma intervenção massiva do BCE no mercado secundário da dívida, facto que, mesmo a verificar-se, não resolveria substancialmente nada dentro da lógica de funcionamento do euro. Apenas adiaria por mais um tempo um problema que aumenta tanto mais quanto mais adiamentos desta natureza vai tendo. E é por isso que a Merkel diz que a crise actual é uma crise para ser resolvida numa década e não em meses. Ou seja, é uma crise sem solução como qualquer pessoa minimamente esclarecida já percebeu há muito tempo.

Na Espanha a situação é dramática. É objectivamente dramática e é subjectivamente agravada por um governo que perdeu completamente o rumo e já não sabe o que mais há-de fazer para inverter ou, no mínimo, suster a situação. É óbvio que com os juros acima de sete por cento em empréstimos a dez anos para pagar dívidas contraídas com juros inferiores a 2% por cento ao ano não há finanças que se aguentem para mais num contexto francamente recessivo em que todos os dias decresce a receita esperada, se multiplicam as falências e se vai instalando inelutavelmente a bancarrota de entes públicos de grande envergadura como é o caso de várias regiões autónomas.

O ministro das Relações Exteriores, referindo-se ao BCE, diz que na Europa há um banco clandestino que não actua; a jovem vice-presidente do Conselho, que ainda há meses transpirava optimismo por todos os poros, fala regularmente sem dizer nada, lamenta-se em público e “dá graxa a Schäubler três vezes por dia” na esperança de que da Alemanha possa finalmente chegar a notícia redentora; o ministro da Fazenda diz que não há dinheiro nos cofres públicos e que se as coisas continuam assim nem os ordenados poderá pagar; o ministro da Economia participa nas múltiplas reuniões do euro grupo e “encosta-se” a Jean Claude Junker convencido de que da sua influência junto dos “ortodoxos” poderá resultar a salvação de Espanha; enquanto Rajoy, deprimido e envergonhado, se esconde sempre que pode e participa publicamente no mínimo possível para dar a ideia de que está 24 por dia afanosamente em busca de uma solução que há-de chegar.

Entretanto, a Espanha vai-se extremando. A deputada Andrea Fabra, filha de um influente político do PP em Valência, para sublinhar a situação em que vão ficar os desempregados depois do corte no subsídio de desemprego que Rajoy acabava de anunciar, soltou nas Cortes um sonoro “que se jodan!”. Simultaneamente, o povo em manifestações com forte presença sindical mas onde é também possível descortinar um profundo sentimento anti-políticos vai tomando conta das ruas e das praças das principais cidades de Espanha com palavras de ordem cada vez mais contundentes.

A crise espanhola é tão grave que muito provavelmente já não contagiará mais ninguém. Acaba ali o contágio e um outro tempo começará. Qual seja, é difícil dizê-lo, mas se o povo mantiver a presença na rua e intensificar a luta por todos os meios ao seu alcance a probabilidade de conseguir um resultado mais próximo dos seus interesses será incomparavelmente maior do que se deixar a solução do problema àqueles que o causaram.

 E é exactamente por este lado que pairam sobre Portugal as piores perspectivas. Malandros de todos os matizes debitam diariamente nas televisões e nos jornais as soluções que o povo deve seguir para que os seus interesses - os dos grandes responsáveis por tudo isto – continuem totalmente salvaguardados durante a catástrofe à custa do sacrifício dos demais. E o povo na sua maioria continua infelizmente a dar-lhes ouvidos.

Alguns exemplos para além daqueles que resultam das intervenções políticas dos que exercem funções representativas, como Cavaco, Passos Coelho, Álvaro, Portas  C.ª. Regularmente Medina Carreira através da TVI e com a colaboração da Madame Judite de Sousa, agoirando sobre o país, intoxica e assusta os portugueses com toda a espécie de patranhas. Franzindo o olho esquerdo e dando ao fácies um ar facínora, diz com toda a naturalidade a propósito do acórdão do TC contra o qual obviamente está: o Tribunal ainda não percebeu que o que consta desta Constituição não tem valor. Ela foi feita numa altura em que fazíamos moeda, agora não fazemos. Mas não se fica por aí, se lhe perguntam pelas rendas do sector energético ou pelas parcerias volta a franzir o sobrolho, diz que foram negócios mal feitos, mas que o Estado português tem de manter a sua credibilidade na ordem jurídica interna e internacional. E se em vez deste se ouve um outro “pardalão” muito solicitado nestas ocasiões a dificuldade está em perceber como é possível ter lata para dizer coisas como esta: Nós envidámo-nos, entre outras razões, porque as pessoas se puseram a comprar casas num frenesim sem sentido, toda a gente queria ter uma casa e o resultado agora é este. Ou ainda: o Estado não está a endividar-se para apoiar ou salvar os bancos; os accionistas estão com as acções nos mínimos e assim vão continuar. O dinheiro é para garantir o reembolso dos depositantes; é para salvar os depósitos. Quem assim fala é o sr. João Salgueiro, ex-membro de um governo de Marcelo Caetano; ex-ministro das Finanças, ex-presidente do Banco de Fomento; ex-presidente da CGD, ex-presidente da Associação de Bancos, um dos grandes responsáveis pelo estado a que o país chegou, sempre pago com salários e reformas milionárias porque o “sector financeiro é muito rentável”, como disse com toda a convicção aqui há cerca de dois anos, para justificar porque uns eram atingidos mais do que outros, quando Sócrates decretou as primeiras medidas de austeridade sobre a função pública e as pensões.

São apenas dois das dezenas de exemplos que semanalmente se poderiam colher nas televisões, rádios e jornais.

Uma coisa parece certa: não obstante a relativa e aparente calma da sociedade portuguesa perante o que se está a passar, isto vai mudar, e muito, dentro de relativamente pouco tempo. Como vai mudar na Grécia e em Espanha. A questão está em saber para que lado. Mas também é óbvio que só mudará para o lado deles se nós deixarmos. É que nós somos incomparavelmente mais. Portanto….

domingo, 22 de julho de 2012

JOSÉ HERMANO SARAIVA



ESBOÇO DE UM PERCURSO

Convidado no estertor do salazarismo, em 1968, para substituir Galvão Telles, Hermano Saraiva viveu já com Marcelo Caetano, de quem continuou ministro até Janeiro de 1970, um dos períodos mais conturbados da ditadura portuguesa na “Educação Nacional” e seguramente o de mais graves consequências para a sobrevivência do regime. Saraiva apesar de já ter desempenhado cargos de algum relevo na ditadura, deputado e procurador à Câmara Corporativa, era por essa altura mais conhecido como irmão de António José Saraiva, o grande vulto da crítica literária e da história da cultura portuguesa, do que propriamente pelo seu percurso político. Mas tudo mudou depois daquela crítica passagem pelo último governo de Salazar e pelos cerca de quinze meses em que integrou o primeiro governo de Marcelo Caetano.

Nostálgico de Salazar de quem se manteve fiel admirador até aos finais dos seus dias, Saraiva não compreendia os ziguezagues políticos de Marcelo, a sua indecisão, as promessas que não poderia cumprir sem que o regime se desmoronasse nem a dúbia intenção com que eram feitas e que acabavam sempre por trazer ao regime mais prejuízos do que vantagens. E é neste contexto de desmistificação à esquerda do marcelismo como algo de substancialmente diferente do salazarismo e de ansiedade e preocupação à direita pela manifesta incapacidade de Marcelo desempenhar o papel de verdadeiro continuador, que Saraiva julga chegada a hora de, a propósito da rebelião estudantil de Coimbra, dar uma prova inequívoca de firmeza e decisão fazendo frente à revolta dos estudantes sem meias palavras.

Num discurso que ficou famoso, proferido cerca de um mês depois de Thomaz ter sido vaiado em Coimbra na inauguração do novo edifício das Matemáticas, mas numa altura em que os “dados ainda não estavam completamente lançados”, Saraiva, tomando por referência os movimentos estudantis da Europa, principalmente em França, proferiu, com a solenidade ameaçadora que o regime ditatorial sabia conferir aos graves momentos, a frase que ficou célebre: “Isto não acontecerá em Portugal”.

Foi o fim de Saraiva como ministro e o rastilho para uma luta que atingiu tais proporções que ainda hoje são apontados a dedo aqueles, pouquíssimos (andam por aí quase todos...bem recompensados), que desobedeceram à palavra de ordem do movimento estudantil – greve aos exames! Ridicularizado pela banda desenhada do imaginativo Carlinhos Santarém, Saraiva era então o alvo de todas as chacotas.

Aguentou-se penosamente no Ministério por mais uns meses na tentativa quase impossivel de, sem perder a face, manter o perfil autoritário tão pomposamente proclamado e abrir uma pequena brecha por onde pudesse passar a negociação por que todos (ou quase todos) ansiavam. Não o conseguiu, nem a sua actuação recente o permitiria, tendo então Marcelo chamado para lhe suceder esse todo o terreno da política nacional – Veiga Simão – que vinha com a incumbência de apaziguar e reformar…mas essa já é uma história que não é para aqui chamada…

Um ano depois de ter saído do Governo, Saraiva que até então se tinha dedicado fundamentalmente ao direito, como advogado, apesar de também ser professor, estreia-se na sombria RTP com um programa chamado “O Tempo e a Alma”. Aguardado com todas as reservas e muita desconfiança não apenas pelos estudantes, mas também pelos meios oposicionistas cada vez mais numerosos, o programa vai gradualmente cativando a simpatia dos portugueses. E, surpresa das surpresas, o saudoso e implacável Mário Castrim, crítico televisivo do Diário de Lisboa, faz-lhe referências elogiosas que constituíam à época uma espécie de salvo conduto que quase permitia a Saraiva apresentar-se doravante ao grande público sem a “mancha” do seu passado recente.

O que fascinou Castrim, como a todos nós, para além da capacidade comunicativa que Saraiva dava provas num contexto muito diferente daquele que o tinha tristemente celebrizado, foi a extraordinária descrição da Revolução de 1383-85 que consta da “1.ª parte da Crónica de El- Rei D. João I”, de Fernão Lopes. Saraiva juntou à empolgante narrativa de Fernão Lopes um dramatismo tal que era impossível não ver naquelas palavras a revolução popular por que todos ansiávamos.

Marcelo, assustado com o que se estava a passar, terá achado francamente contraproducente a narração pública em clima de grande audiência de uma das mais extraordinárias descrições da literatura portuguesa – a morte do bispo de Lisboa lançado do alto de uma das torres da Sé e o que a seguir se passou: “E logo nesse dia algumas pessoas refeces lançaram ao Bispo, onde jazia nu, um baraço nas pernas, e havendo chamado muitos cachopos para que o arrastassem, ia um rústico bradando adiante: justiça que manda fazer nosso Senhor o Papa neste traidor cismático castelhano, porque não tinha com a santa Igreja. E assim o arrastaram pela cidade, com as vergonhosas partes descobertas, e o levaram ao Rossio onde o começaram a comer os cães, que nenhum o ousava soterrar. E sendo já deles muito comido, soterraram-no ao outro dia ali no Rossio, e os outros dois foram depois soterrados, para tirarem o fedor diante de suas vistas”.

Saraiva convidado para Embaixador de Portugal no Brasil por lá iria ficar até à Revolução. Sem admiração por Marcelo, o regime para ele tinha acabado com a morte de Salazar – “o ditador que morreu na miséria, um justo”, como ele não deixou de o qualificar até ao fim dos seus dias…

Saraiva passou bem pela Revolução. Pouco tempo depois de “normalizado” o novo regime consolidou um papel de divulgador cultural quase único na sociedade portuguesa iniciado com o já referido “O Tempo e a Alma” e continuado durante cerca de quatro décadas  com programas de grande audiência sobre Portugal, as suas terras, o seu povo e a sua história.

Apesar de depreciado por certos meios académicos convencionais, às vezes com comentários verdadeiramente ridículos, Saraiva teve o inexcedível mérito de ser um patriota que enalteceu sem nacionalismos agressivos o papel do povo na História de Portugal.

Num tempo em que a direita perdeu a noção de Pátria, em que um núcleo cada vez mais numeroso de governantes, de responsáveis políticos, de executivos públicos e privados, de técnicos qualificados, ou assim tidos, das mais diversas especialidades é capaz de tudo sacrificar em troca de dinheiro, desde o mais simbólico ao patrimonialmente mais valioso, não pode deixar de enaltecer-se a voz daqueles que não sucumbem à voracidade dos tempos e que pautam pelos seus valores de sempre uma conduta de vida.  
Saraiva foi um desses homens e por isso merece o nosso respeito por maior que seja a nossa discordância ideológica.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

A UNIÃO EUROPEIA SEM SOLUÇÕES



TUDO A PIORAR




Depois da “cimeira decisiva” do fim do mês de Junho, em que se tomaram “decisões históricas para salvar o euro”, continua tudo na mesma com tendência para piorar.

Enquanto a Grécia se mantém em entreacto, com uns dinheiritos que devem dar até ao fim do mês de Julho, até parece que a crise deixou de existir. Mas não deixou. Dentro de muito pouco tempo agravar-se-á dramaticamente e mesmo que a Troika lhe conceda um alargamento do prazo para alcançar as metas fixadas no Memorandum nada disso alterará num milímetro que seja a gravidade da situação grega.

Quanto a Espanha as coisas também são muito claras. Tal como já se sabia, enquanto não houver um supervisor bancário único, o FEEF, e mais tarde o MEDE – e esse mais tarde não se sabe quando será uma vez que o assunto está pendente de decisão do tribunal constitucional alemão -, não emprestará directamente dinheiro aos bancos, devendo o Estado espanhol endividar-se se quer recapitalizar o sector financeiro falido. De facto, esse supervisor bancário não existe, nem existirá tão cedo, como Schäuble já teve oportunidade de “explicar” aos espanhóis. Mas mesmo que essa possibilidade existisse, a situação da Espanha não melhoraria já que não há nenhuma razão para supor que os juros da dívida pública se atenuariam por esse motivo assim como não se atenuarão com as drásticas medidas que acabam de ser tomadas para “amansar” os mercados. Pura ilusão, tal como aconteceu na Grécia e em Portugal essas medidas agravarão a crise e arrastarão a economia espanhola para uma situação cada vez mais difícil.

Bem vistas as coisas, o que há de mais racional no capitalismo financeiro do nosso tempo é o papel dos especuladores. São os únicos que actuam com inteligência e racionalmente, com total desprezo pelas múltiplas balelas a que os economistas e os políticos frequentemente atendem para tomar as decisões e fazer as previsões.

Eles sabem que mais importante do que a percentagem da dívida pública espanhola relativamente ao PIB (neste momento ainda inferior à da dívida alemã) é a capacidade da economia para pagar os compromissos assumidos. E é exactamente por a Espanha não ter essa capacidade tão cedo que os juros continuam a subir tornando inviável o refinanciamento da dívida e empurrando a Espanha para um resgate do próprio Estado. De resto já existe do ponto de vista prático um programa económico imposto pela  Troika (ver aqui as 32 medidas "recomendadas" por Bruxelas) como contrapartida do empréstimo concedido para o resgate dos bancos. E como o resgate dos bancos vai acelerar o resgate do próprio Estado, a situação espanhola só poderá piorar nos próximos tempo. Aliás, a situação espanhola é mais grave do que a portuguesa. Desde que bem entendido pode até dizer-se que Portugal teve a “sorte” de praticamente não ter tido (com este modelo económico) crescimento durante os anos de moeda única. E mesmo assim é o que se vê… Em Espanha, onde as coisas se passaram de modo relativamente diferente, e em grande, está a pagar-se  e vai ter de se  continuar a pagar a falsa prosperidade vivida durante aqueles anos.

E é esta situação por que os Estados periféricos já intervencionados ou em vias de o serem estão a passar que arrasta a zona euro para um beco sem saída, ou melhor, para o fim do euro.

O euro como tem sido dito à saciedade foi mal concebido e isso vê-se muito melhor nos tempos de crise. Prescindindo das causas da situação a que se chegou, que também têm sido analisadas de múltiplas perspectivas, o ponto em que se está é mais ou menos este: a Europa (ou seja, o BCE) empresta dinheiro aos bancos (Passos Coelho diz que não empresta, mas embora o acto possa tecnicamente qualificar-se de outro modo é na realidade de um empréstimo que se trata) para que estes salvem os Estados comprando dívida pública (que aumenta, às vezes até exponencialmente, em consequência da crise) e os Estados endividam-se junto dos fundos de resgate europeus para salvar os bancos. Como a União Europeia constitui um mercado livre composto por economias desiguais – desigualdade que a crise vem acentuando gravemente – ninguém poderá impedir que os capitais, inclusive (ou principalmente) os dos países em crise, afluam para os países economicamente mais fortes. E quanto mais afluem (como aconteceu e está a acontecer com a Grécia, a Espanha e também com Portugal, embora em menor grau) mais debilitadas ficam as economias de onde saem e mais fortes as economias para onde migram.

E como com o agravamento da situação não há nenhuma possibilidade de restabelecer o status quo ante, que era de crise encoberta, também não vai haver nenhuma hipótese de os juros baixarem para níveis sustentáveis. E sem dinheiro não se sairá da crise…

E não vai ser com as políticas de austeridade cujos resultados estão à vista - recessão, desemprego em massa, quebra substancial dos salários nominais, juros proibitivos, mais endividamento – que se sairá da crise. Tão pouco terão algum efeito positivo as medidas que têm vindo ou vão ser a ser adoptadas com o nome de “pacote para o crescimento” ou as que estão sendo propostas como as de unificação e controlo das políticas fiscais (orçamentais) já que nenhuma delas ataca verdadeiramente os problemas que estão na origem da crise estrutural do euro.

Nesta Europa muito desigual, sujeita a regras iguais para todos, as desigualdades tenderão a aumentar e não a esbater-se. E quanto mais aumentam mais a crise se agrava. Não é por acaso que múltiplas personalidade da vida económica que até há pouco tempo tinham mantido uma posição reservada quanto ao futuro do euro dão hoje a entender claramente que não acreditam na sua sobrevivência.  


segunda-feira, 9 de julho de 2012

AINDA UMA BREVE ANOTAÇÃO SOBRE O ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL


O QUE NINGUÉM (APARENTEMENTE) QUER VER

Estará tudo dito sobre o acórdão do Tribunal Constitucional que declarou inconstitucionais as normas do Orçamento de Estado para 2012 que “cortam” os subsídios de férias e de natal do sector publico e dos pensionistas? Talvez não.

Na intervenção de ontem à noite na TVI Marcelo Rebelo de Sousa confirmou, no essencial, o que aqui se disse sobre a interpretação do acórdão. Há, porém, uma questão quer o ilustre Professor não tratou apesar de a ela ter aludido ao de leve. É a questão da natureza dos subsídios de férias e de natal e das consequências que dela decorrem. Como já tínhamos dito em post anterior, o TC considerou sem margem para qualquer dúvida que aqueles subsídios fazem parte do salário dos trabalhadores do sector público ou da reforma dos pensionistas. São, portanto, salário ou pensão de reforma, logo um direito, e não um qualquer bónus que possa ser retirado por lei de acordo com os critérios políticos de quem decide.

O reconhecimento dos subsídios como salário ou pensão implica que eles estejam juridicamente tão protegidos como o próprio salário ou pensão de que fazem parte integrante.

Acontece que deste reconhecimento decorrem várias consequências que não têm sido levadas em conta na discussão deste assunto. A primeira, aliás óbvia, foi também ontem apontada por Rebelo de Sousa. Depois da decisão do Tribunal Constitucional não mais poderá dizer-se que o governo vai eliminar os subsídios. A verdade é que daquele reconhecimento não decorre somente esta conclusão. Há mais. Pondo a questão na forma interrogativa: pode uma medida que incida sobre a totalidade ou sobre parte dos subsídios ser tomada pela forma que para o efeito foi adotada na lei de aprovação do Orçamento para 2012? Poderá o Parlamento pura e simplesmente adoptar relativamente àqueles salários e pensões uma medida de natureza semelhante à que adopta para alcançar uma qualquer outra diminuição de despesa?

De facto, os salários dos funcionários públicos e as pensões dos reformados são despesa do Estado da mesma forma que constituiu despesa do Estado a manutenção em funcionamento do tribunal de Castro Daire, da Maternidade Alfredo da Costa ou da Escola Afonso Benevides. Mas terão estas despesas todas elas mesma natureza? Se o Estado (no caso, o Governo) pretender fechar aquelas instalações para diminuir a despesa pública poderá certamente fazê-lo contanto que continuem no essencial assegurados os serviços que através delas se prestavam. Porventura em condições mais incómodas para os utentes mas desde que o direito destes à saúde, ao ensino ou à justiça não fique de tal modo afectado na sua consistência prática que equivalha à sua denegação não há meio, por mais que politicamente se discorde, de impedir o governo de o fazer. E poderá o Estado, neste caso o Parlamento, fazer o mesmo relativamente aos subsídios de férias e de natal? Poderá pura e simplesmente o Parlamento decretar que aqueles subsídios ficam suspensos enquanto durar o Programa de Assistência Financeira? Ou terá antes o Estado, se quiser recuperar aquelas verbas, que usar uma outra via, como necessariamente teria de usar relativamente a qualquer outro direito da mesma natureza cuja efectividade não dependesse dele?

Essa a grande questão. Então, o direito ao salário ou à pensão de reforma têm a mesma natureza do direito ao ensino, do direito à saúde ou do direito à justiça? Ou dito de uma forma mais precisa: a suspensão dos subsídios de férias e de Natal dos funcionários públicos e dos pensionistas afecta o direito ao salário e à pensão da mesma forma que o encerramento daquelas instalações afecta o direito à justilça, à saúde ou ao ensino? Não terá o governo se quiser neutralizar a despesa com os subsídios de férias e de Natal, nos termos decididos pelo Tribunal Constitucional – isto é, com respeito pelo princípio da igualdade – que operar essa neutralização pela via de um imposto extraordinário, aprovado pelo Parlamento, exactamente nos mesmos termos em que teria de o fazer se decidisse atingir os subsídios correspondentes do sector privado?  

Ninguém até hoje, que seja do nosso conhecimento, se pronunciou sobre este assunto. Nem o Tribunal Constitucional abordou o assunto, nem tão-pouco ele foi tratado desta forma política ou juridicamente em termos que sejam do conhecimento público ou do conhecimento técnico especializado. É, porém, nossa profunda convicção que somente por esta via se assegurará o princípio da igualdade e se defenderá integralmente a conclusão a que o Tribunal chegou de que os subsídios fazem parte integrante do salário ou das pensões e são, como tal, um direito da mesma natureza destes.


domingo, 8 de julho de 2012

O ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL



UMA DECISÃO SINGULAR



O acórdão n.º 353/2012 do Tribunal Constitucional que declarou inconstitucionais com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2013 as normas do Orçamento de 2012 que suspendiam o pagamento dos subsídios de férias e de Natal aos trabalhadores do sector público e aos reformados tem um “pecado original”. Esse "pecado original" é o acórdão n.º 356/2011 de 21 de Novembro que considerou conforme à Constituição as reduções remuneratórias impostas aos funcionários públicos pelo Governo Sócrates.

Este acórdão, hoje quase esquecido pela hecatombe que se lhe seguiu com o Governo Passos Coelho, considerou que aquelas reduções, apenas incidentes sobre os funcionários públicos, não feriam o princípio da igualdade nem atingiam outros princípios do Estado de Direito por se situarem dentro dos limites do sacrifício suportável e também por não estarem em condições de igualdade com os restantes cidadãos aqueles que recebem de verbas públicas, não consubstanciando, por isso, o sacrifício adicional que lhes foi exigido um tratamento injustificadamente desigual. Além de, dizia-se também, haver certas metas a atingir em consequência de compromissos internacionais assumidos pelo governo que são mais fáceis de alcançar a curto prazo através de meios apenas incidentes sobre a despesa.

Explicando as coisas para que se percebam bem: este acórdão é, como se diz na gíria, um “frete” ao Governo Sócrates. É evidente que o princípio da igualdade foi violado pela norma que permitiu as reduções remuneratórias não sendo juridicamente sustentáveis as conclusões a que nele se chegou. De facto, não faz sentido nenhum valorar juridicamente a eventual eficiência de certos meios para a obtenção da certas metas, consistindo no caso essa eficiência no facto de aquelas verbas se poderem alcançar mais facilmente a partir de um simples corte na despesa, quando se está a tratar de direitos fundamentais e de princípios estruturantes do Estado de Direito. Então um princípio constitucional pode ser postergado pelo facto de por essa via se alcançar mais rapidamente uma meta a que o Governo se comprometeu? E se o meio fosse menos eficiente já não poderia? Não, a questão não se pode colocar assim. A meta a que o governo se comprometeu tem de ser alcançada nos termos do Direito e não contra ele ou à sua margem. E, neste caso, respeitar o Direito era respeitar o princípio da igualdade. E se para se respeitar o princípio da igualdade se tivesse de actuar pelo lado da receita ou da receita e da despesa era essa a via que o governo deveria ter seguido já que não há nenhum princípio constitucional que erija a eficiência em valor superior susceptível de fazer precludir os demais princípios e valores que informam a Constituição. Além de que a eficiência é ou pode ser a mesma actuando apenas de um só lado ou de ambos os lados do orçamento.

Por outro lado, também não faz nenhum sentido, absolutamente nenhum, afirmar que quem recebe por verbas públicas não está em posição de igualdade com os restantes cidadãos se com isso se pretender dizer que há outros deveres ou direitos para além daqueles que constam das leis gerais, do estatuto dos funcionários ou da Constituição. E acaso nos tais "sacrifícios" pelo lado da receita há algum de que os trabalhadores do sector público estejam isentos? Onde fundamentar então a aceitação dessa tendencial desigualdade?

Finalmente, a invocação dos “limites do sacrifício” ou dos “limites do sacrifício suportável” é uma novidade dificilmente compreensível quando se está a falar da relação do cidadão com a sua Pátria. Como estabelecer limites para o sacrifício de cada cidadão se até a própria vida lhe pode ser exigida em determinadas circunstâncias? O que há, por maior que seja a gravidade da situação ou a emergência nacional, é a obrigação de respeitar o princípio da igualdade na distribuição dos sacrifícios por todos. E isso foi o que se não fez na Lei que aprovou o Orçamento de Estado para 2011!

Com estes antecedentes compreende-se melhor o Acórdão n.º 353/2012 ontem tornado público.

Para poder declarar inconstitucionais as normas do Orçamento para 2012 que “cortaram” os subsídios de férias e de Natal com base na violação do princípio da igualdade o Tribunal, para manter um mínimo de coerência, teria, por um lado, que considerar ultrapassados os tais “limites do sacrifício” e, por outro, reconhecer que, embora haja razões para diferenciar quem recebe por dinheiros públicos de quem não recebe, essa diferença de tratamento se for desproporcionada viola o princípio da igualdade.

Portanto, o acórdão, contrariamente ao que se depreende das declarações do Governo continua a abrir a porta ou, no mínimo, a deixá-la entreaberta a um tratamento diferenciado entre os que recebem do sector público e os que recebem do sector privado. E o que se depreende da fundamentação do Tribunal é que não haverá violação do princípio da igualdade se essa diferenciação se situar dentro de limites razoáveis, ou seja, se não for desproporcionada.

É certo que o Tribunal se debruçou sobre a natureza dos “cortes”, isto, é sobre a natureza dos subsídios de férias e de Natal, tendo concluído – e este é um dos pontos positivos do acórdão – que se trata de vencimentos iguais aos outros e não de “bónus” como obscenamente ainda ontem foi afirmado por um reconvertido constitucionalista neoliberal. Mas se este é um ponto positivo do acórdão também não é menos verdade que o Tribunal não leva esta sua constatação às conclusões que se impunham. Ou seja, o Tribunal deveria deixar indicado ou pelo menos indiciado que o respeito pelo princípio da igualdade impõe que a natureza das medidas que no futuro venham a ser tomadas tem de ser idêntica. Independentemente de se poderem situar em planos quantitativos diferentes (facto que o Tribunal admitiu no acórdão 396/2011 e reiterou no actual por estas ou outras palavras) a natureza da medida tem de ser idêntica para o sector público e para o sector privado. Só assim se teria garantido sem margem para dúvidas o princípio de que os subsídios são um direito e não qualquer outra coisa. Recorde-se a latere embora com pertinência que o Primeiro Ministro numa das várias declarações que fez sobre o assunto sublinhou que o Tribunal não havia considerado o direito aos subsídios como um “direito adquirido”

O acórdão responde razoavelmente à argumentação do governo, cretinamente repetida por alguns universitários e propagandistas políticos de nível duvidoso, de que há uma diferença entre o sector público e o privado justificativa da disparidade de tratamento entre ambos, baseada no facto de em média no sector privado se ganhar menos do que no sector público e de o no sector público haver uma garantia de emprego que o sector privado não tem.

Esta argumentação, aduzida pelo governo e repetida pelos seus apoiantes, é juridicamente tão inapropriada que ela levaria imediatamente a que a situação criada aos reformados fosse sem mais considerada inconstitucional. Mas, independentemente desta conclusão que tem passado completamente à margem da discussão, é legítimo perguntar-se: o que é a média para este efeito? Até apetece lembrar a quem fala em média que um sujeito que esteja com a cabeça numa fornalha e com as pernas numa potente câmara frigorífica até estará muito provavelmente com uma temperatura corporal média bem razoável, e todavia…De facto, falar em média para comparar os vencimentos do sector público com os do sector privado não faz qualquer sentido por se tratar de funções que na maior parte dos casos não são comparáveis por mais “outsourcings” que os neoliberais inventem para tentar induzir na administração pública e nas funções do Estado a lógica do capital privado. Por outro lado, a questão da segurança no emprego, além de a sua invocação não passar de uma rematada hipocrisia – é bom não esquecer que a causa desta vaga de despedimentos, que aliás as medidas sub judice agravam drasticamente, está no fundamentalismo neoliberal do Governo – e de hoje estar longe de ser um facto verdadeiro até para os funcionários públicos, quanto mais para os restantes trabalhadores do sector público, não é um assunto possa ser invocado para justificar as diferenças, porque do que se está a tratar é da penalização dos rendimentos que se recebem e não dos que não se recebem! Quem tem criado a insegurança no emprego privado – e também no público, é sempre bom relembrá-lo – é o governo com a sua política económica e com as medidas contrárias à Constituição que tem vindo a tomar. A que propósito é que os trabalhadores do sector público e os reformados teriam de pagar esta insegurança propositadamente prosseguida por quem governa?

Finalmente, o acórdão encerra mais duas fragilidades irremediáveis: a primeira é de não ter analisado autonomamente a questão dos reformados subsumindo a sua situação no princípio da igualdade em condições de completa paridade com os funcionários públicos e outros trabalhadores do sector público atingidos pelos “cortes”, quando a sua situação é radicalmente diferente; e a segunda tem a ver com a delimitação dos efeitos das normas declaradas inconstitucionais. Como é juridicamente possível que uma norma declarada inconstitucional com força obrigatória geral continue a aplicar-se? Pois não é óbvio, apesar da letra da lei, que a delimitação dos efeitos permitida a título excepcional pelo n.º 4 do artigo 234.º da Constituição tem como limite temporal inultrapassável a data da publicação do acórdão? Há na história do TC algum acórdão que tenha ultrapassado aquele limite? Como pode o Tribunal Constitucional decretar a suspensão temporária da Constituição que tem por missão defender? Delimitar os efeitos da inconstitucionalidade até à data da eficácia do Acórdão é algo completamente diferente do alargamento dessas restrições para além daquela data. É juridicamente um absurdo.

Em conclusão: Independentemente da crítica de que sejam passíveis os fundamentos que sustentam a declaração de inconstitucionalidade, facto normal no comentário das decisões jurisprudenciais, a segunda parte da decisão – a que permite a manutenção dos efeitos da norma nula até ao fim de 2012 – é tão desprestigiante que já há quem vaticine que o Tribunal Constitucional dificilmente lhe sobreviverá. Erigindo o princípio da oportunidade em regra de acção, como se de um órgão político se tratasse, e relegando para plano secundário e subalternizando o princípio da legalidade, o Tribunal Constitucional com a sua decisão de ontem parece ter começado a escrever a sua própria certidão de óbito!


sexta-feira, 6 de julho de 2012

TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: O “CRIME” COMPENSA?




O PRINCÍPIO DA CONVENIÊNCIA PRÁTICA CONSTA DA CONSTITUIÇÃO?

Antes de mais é preciso reconhecer que a decisão do Tribunal Constitucional constitui um acto de todo inesperado para a maioria dos cidadãos. Por razões que não adianta desenvolver neste momento, tanto mais que elas estão bem elucidadas no processo de escolha dos seus membros, como recentemente se viu a propósito do preenchimento de três vagas, toda a gente esperava que o Tribunal Constitucional naqueles seus raciocínios redondos e quase incompreensíveis com que costuma brindar a generalidade dos portugueses acabasse por tomar uma decisão que, essa sim, todos, muito particularmente os trabalhadores do sector público e os reformados, compreenderiam imediatamente. Ou seja, que os “cortes” são legais dada a gravidade da situação económica do país ou não fora isso o que por outras palavras já haviam dito alguns dos seus mentores que, tendo perdido com a idade o fulgor e a rectidão que os acompanhou na juventude, entendem agora que a Constituição e os princípios que ela consagra verdadeiramente só valem em tempos de normalidade. Em momentos críticos, em que esteja em causa a salus populi, a necessidade de defender o interesse geral sobrepõe-se a todos os demais direitos.  Entre parênteses: Ver como em Roma era entendido o conceito de ditadura e a sua evolução até hoje no comentário escrito em 2008, a propósito das palavras proferidas por Manuela Ferreira Leite sobre os tais seis meses sem democracia

Pois bem, contrariamente ao que se esperava, o Tribunal Constitucional considerou inconstitucional a norma do orçamento que permitiu o “corte” do subsídio de férias e de Natal dos trabalhadores do sector público e dos reformados com base no óbvio fundamento da violação do princípio da igualdade. Mas apressou-se a esclarecer que a decisão não vale para o ano em curso pelos inconvenientes que a sua aplicação necessariamente acarretaria  à execução do orçamento. E por aqui logo se começa a ver que, afinal, a surpresa é bem menor do que à partida parecia. 

A argumentação do Tribunal Constitucional, sem falar na especificidade da situação dos reformados que merecia uma decisão autónoma, é de todo incompreensível, tanto no plano jurídico como no plano lógico. Juridicamente não se compreende onde pode o Tribunal Constitucional fundamentar semelhante decisão. Com efeito, a inconstitucionalidade de uma norma decidida com força obrigatória geral acarreta a nulidade da respectiva norma. E uma norma nula não produz, em princípio, quaisquer efeitos, obrigando, pelo contrário, à destruição retroactiva dos efeitos produzidos durante a sua falsa vigência. É certo que a Constituição permite ao Tribunal Constitucional, em situações excepcionais, fixar com alcance mais restrito os efeitos da inconstitucionalidade por razões de segurança jurídica (que no caso não existem, pelo contrário), por razões de equidade (ainda menos, tanto mais que o fundamento da inconstitucionalidade acaba também por ter por suporte este princípio, embora equidade se não confunda com igualdade) ou por interesse público de excepcional relevo (que também não existe, como facilmente se demonstrará).

O “corte” de dois ordenados do sector público visava assegurar o equilíbrio orçamental quantitativamente fixado, de acordo com os princípios de doutrina económica perfilhados pelo governo. Supondo que aquele equilíbrio orçamental é uma meta de interesse público de excepcional relevância, a decisão do TC que considere inconstitucional um dos meios para o alcançar (ou seja, o “corte” dos dois subsídios) não poria em causa aquele interesse público (isto é, o tal equilíbrio orçamental quantitativamente fixado) se a decisão produzisse todos os seus efeitos a partir da data em que foi tornada pública e o governo pusesse em prática medidas gerais que garantam o respeito pelo princípio da igualdade.

De facto, o que seria expectável numa situação destas, tendo em conta outras decisões do Tribunal, era que a actual decisão não tivesse efeitos retroactivos e se aplicasse sem restrições no futuro. É assim que o Tribunal sempre procede quando uma daquelas três razões desaconselha a destruição retroactiva dos efeitos produzidos pela norma inconstitucional. No presente caso ao atribuir aos efeitos da inconstitucionalidade uma relevância quase nula, o Tribunal vergou-se antes de mais ao princípio da conveniência prática (é mais prático este ano alcançar o objectivo pelo meio que já tinha sido posto em prática do que substitui-lo por outro), o que não deixa de ser uma fundamentação aberrante perante o próprio princípio que fundamenta a inconstitucionalidade e perante a própria Constituição que em parte alguma permite subordinar as decisões do juiz a considerações daquela ordem. Mas, pior do que isso, vergou-se também a uma doutrina económica ideologicamente marcada, que defende que as restrições do lado da despesa se façam fundamentalmente à custa dos vencimentos do sector público e das pensões dos reformados para por essa via se influenciar decisivamente a diminuição da procura e, indirectamente, o abaixamento dos salários no sector privado.

São estas razões e o silêncio do Tribunal quanto ao modo de assegurar o princípio da igualdade que levam a supor carecer a presente decisão de efeitos práticos relevantes.  Dito de outro modo porventura mais correcto: a decisão não seria de todo irrelevante no plano jurídico se ela pudesse ser entendida no sentido de o respeito pelo princípio da igualdade valer em toda a linha para todos os cidadãos. Infelizmente, não é isso o que se depreende desta estranha decisão do Tribunal Constitucional. De facto, ela abre a porta a um entendimento perverso que continuará a penalizar os funcionários públicos e os reformados. E porquê? Porque ela deixa subentendida a possibilidade de a igualdade se assegurar fazendo também participar nos sacrifícios os trabalhadores do sector privado obviamente pela única via que está ao alcance do governo trilhar: a tributária. Mas não é a mesma coisa participarem todos ou participarem todos nas mesmas condições.

A criação de um imposto extraordinário incidente sobre os rendimentos de todos os cidadãos, mesmo que na prática ele viesse a recair, como é hábito, fundamentalmente sobre os rendimentos do trabalho, é uma coisa bem diferente da criação desse imposto apenas para os trabalhadores do sector privado deixando tudo como está para os funcionários públicos e os reformados. No primeiro caso teríamos um imposto que incidia sobre um direito (o rendimento) enquanto no segundo teremos a supressão de um direito (“corte” puro e simples dos subsídios de férias e de Natal). Ora, estas duas situações são realidades jurídicas e economicas muito diferentes! De facto, os trabalhadores do sector privado ficariam a perder com esta decisão e os trabalhadores do sector público bem como os reformados nada ganhariam com ela nem sequer aquilo que de mais elementar  estava em jogo: o reconhecimento do direito aos subsídios de férias e de Natal.

A criação de um imposto extraordinário geral incidente sobre o rendimento de todos os cidadãos, embora sendo na prática um imposto sobre o rendimento do trabalho, é algo de muito diferente da supressão pura e simples de um direito com base em considerações de doutrina económica. Como não há nenhuma razão para supor que o Tribunal se não contente com este entendimento, que no fundo era o de Cavaco, a decisão poderá ter por efeito prático apenas e só a criação de um imposto extraordinário (temporário) sobre os trabalhadores do sector privado, deixando tudo como está no sector público e nos reformados. Outro poderia ser o efeito prático da decisão do TC se ela própria não estivesse enredada nas múltiplas contradições que a suportam.

Por isso é que ainda se está para saber se esta construção do Tribunal Constitucional vinda hoje a lume, não obstante as repercussões quase tsunâmicas que está a ter, não visa alcançar por  caminhos perversos o mesmo ou até um "melhor resultado" do que aquele que canhestramente lhe tinha sido sugerido por alguns dos seus mais conhecidos mentores.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

A QUEM ESTÁ ENTREGUE ESTE PAÍS?



A QUE NÍVEL DE DEGRADAÇÃO É PRECISO CHEGAR?




Nos últimos anos tem-se assistido a um clima de degradação moral nos círculos próximos do poder político ou mesmo no seu interior que não pode deixar de ser tido em conta em qualquer análise política por mais pretensamente neutral que ela pretenda ser no plano ético.

Desde Maquiavel que sabemos que Política e Moral são campos diferentes, obedecendo cada uma às suas próprias regras. Quando se diz na esteira de Maquiavel que Política e Moral são realidades diferentes o que se pretende incisivamente sublinhar é que o Estado não actua subordinado a uma lei exterior que lhe seja superior com vista à prossecução de finalidades alheias à sua própria existência. O Estado tem as suas próprias regras, que visam fins próprios do Estado não estando sujeito na sua actuação a uma avaliação valorativa que tome como referência ou paradigma normas que sejam estranhas aos seus fins, mas antes respeitem a outros domínios como o aperfeiçoamento pessoal de quem as pratica, a salvação da alma, a preparação da vida extra-terrena ou outras coisas do género.

O mérito de Maquiavel na análise desta questão como em tantas outras em que foi inovador não esteve tanto em ter descoberto algo, mas antes em haver teorizado aquilo que via, o que era praticado, atribuindo-lhe a importância que realmente tinha e relegando para um plano secundário o que o que era proclamado ou pregado e nada seguido. Nunca antes ninguém tinha sido tão atento à realidade das coisas políticas como foi o Mestre de Florença para quem a observação e a interpretação da realidade empírica se sobrepunha na análise política a todas as demais considerações. Daí a sua modernidade.

No tempo de Maquiavel a questão do poder ainda era analisada apenas por um dos lados do problema, pelo lado do Príncipe. Só alguns séculos mais tarde, com o advento do Iluminismo, passou a ser também encarada pelo outro lado, pelo lado do Povo.

Isto não quer dizer que antes dos Iluministas a questão do “Povo” estivesse completamente arredada das preocupações da filosofia política. Não estava, nem tão-pouco se pode escamotear o papel importante nesse domínio desempenhado por certos sectores do pensamento cristão. Mas nada de confusões. Uma coisa são os avisos feitos ao Príncipe sobre os seus limites do poder que exerce, que, uma vez ultrapassados, poderiam levar à sua destituição. Outra coisa completamente diferente é o poder ter no Povo a sua origem e no governo em prol do Povo a sua legitimidade.

São duas formas muito diferentes de encarar o mesmo fenómeno. No tempo de Maquiavel a grande questão ainda era a de como manter o poder. Desde a Antiguidade clássica, principalmente desde Roma, que Maquiavel tão bem conhecia, o “bom governo” era o governo que sabia preservar o poder.

Nesta arte de preservação do poder intervêm múltiplos factores não sendo entre estes despiciendo o grau de aquiescência ou de aceitação do seu exercício pelos seus destinatários de tal modo que, quando esta relação entre o “soberano” e os súbditos se degrada a ponto de poder fazer perigar a sua continuidade, os rivais do soberano indesejado se aproveitam dessa degradação para o depor, reiniciando-se assim um novo processo que tende a terminar do mesmo modo.

A preocupação de Maquiavel no Príncipe, contrariamente ao que se passa nos Discorsi…, é, portanto, uma preocupação eminentemente prática, embora baseada em considerações teóricas muito profundas, de aconselhar o melhor caminho para “conquistar e preservar o poder” ou, dito de outra maneira, para “assegurar a manutenção do Estado”.

A moral que Maquiavel rejeita é a da subordinação do Estado a outros princípios que não sejam os da sua própria continuidade. O Estado não existe para servir interesses particulares de quem o dirige, nem actua subordinado a uma lei superior que busque fins diferentes dos exigidos pela comunidade a que respeita.

Hoje nas modernas democracias representativas em que por força da acção dos partidos se tem assistido à degradação do conceito democrático o povo tende a perder o papel de referente em torno do qual gira toda a vida política para voltar regressivamente a ser apenas aquele último limite que em situações extremas constituiu um obstáculo intransponível à continuidade do poder.

Tudo isto vem a propósito do que hoje se passa em Portugal depois que esta geração do “insucesso escolar” tomou o poder. Formada e integrada na política partidária desde tenra idade, mantendo com a política uma relação muito semelhante à que os marginais das claques de futebol mantêm com o desporto, desprovida de outros referentes comportamentais que não sejam a sobreposição do seu grupo aos demais e a tomada do poder como objectivo supremo pelas múltiplas vias que o seu acesso lhe abre, ei-la adornada com licenciaturas alcançadas na idade madura em universidades corruptas que traficam cursos em troca de uma esperada influência futura; ei-la vendendo o país a retalho em troca de contrapartidas inconfessáveis e outras que passam pela colocação de confrades em lugares decorativos principescamente pagos; ei-la tratando de manhã nas empresas em que está avençada os assuntos que à tarde vai decidir nas comissões parlamentares; ei-la pressionando privatizações para obter nos consultórios de advogados a que pertence como traficante de influência o serviço de assessoria jurídica que lhes vai ser adjudicado por concurso fraudulento; ei-la concedendo à custa do sacrifício do povo rendas feudais em domínios senhoriais demarcados que lhe garantem como contrapartida os meios financeiros necessários à sua prosperidade pessoal e do seu grupo; ei-la tão subserviente perante o estrangeiro quão desapiedada é no tratamento da maior parte dos seus nacionais; ei-la nos famigerados organismos reguladores fazendo fretes às empresas monopolistas ou aos ministros que não aceitam a liberdade de imprensa; ei-la, em suma, destruindo este país perante a passividade dos seus cidadãos.

E é perante esta última consideração que urge afinal saber quem está actuando à revelia das regas fundamentais da preservação da continuidade do Estado, se quem sistematicamente as viola no interesse próprio e do seu grupo ou se quem permite passivamente que tudo isso se passe na maior e total impunidade, sabendo-se, como se não pode deixar de se saber, que os que estão agora no poder são exactamente iguais ou piores do que os que lá estiveram e que os que se perfilam são no essencial iguais aos que lá estão.

Este o dilema que tem de ser resolvido urgentemente. Depois de amanhã poderá ser tarde…