quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

O ENCONTRO ENTRE OS PROCURADORES GERAIS DA REPÚBLICA DE PORTUGAL E DE ANGOLA


CONTEXTUALIZAÇÃO DA CAMPANHA EM CURSO
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Este artigo foi escrito ao abrigo da liberdade de expressão, consagrada na Constituição, como direito cujo conteúdo e limites não podem deixar de ser balizados por outros direitos fundamentais igualmente inscritos na Constituição que com ele podem conflituar e até sobrepor-se se os valores por estes defendidos forem de nível superior aos contidos naquele direito.
Quer isto dizer que não vai ser necessário para escrever o que pretendo recorrer à mais recente (e inacreditável) jurisprudência do STJ e menos ainda à do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que, a pretexto de garantirem a liberdade de expressão e de imprensa, permitem que se violem os mais elementares direitos de personalidade, como ainda recentemente aconteceu com o despacho sobre uma providência cautelar interposta por Isabel dos Santos contra uma conhecida denunciante profissional.
Dito isto, é com alguma apreensão que antevejo o próximo encontro entre os PGR dos dois países. Este encontro tem certamente a ver com o “caso Isabel dos Santos” e, como foi solicitado pelo PGR de Angola, é igualmente óbvio que Angola pretende saber até onde as autoridades portuguesas estão dispostas a ir para  a ajudar nos processos em curso contra Isabel dos Santos bem como nos assuntos correlativos com incidência portuguesa.
Este encontro, aparentemente disfarçado de encontro de natureza estritamente jurídica, não passa todavia de um encontro político de alto nível. E é por esse lado que a posição do MP tem de ser encarada, tanto mais que se trata de uma matéria que envolve interesses portugueses cuja importância e extensão caiem, em grande medida, fora do raio de acção das autoridades judiciárias.
Convém contextualizar devidamente a questão para que se compreenda o que está em causa, sendo certo que nessa contextualização não cederemos, um milímetro que seja, ao politicamente correcto, nem tão pouco nos deixaremos influenciar, por medo, vergonha ou qualquer outra razão, pela magnitude da campanha em curso, fazendo o possível por nos mantermos fiéis à liberdade de análise tanto quanto as nossas capacidades intelectuais e de informação o permitirem.
Assim, é preciso começar por dizer que está em curso uma gigantesca campanha contra certos interesses angolanos promovida por interesses angolanos rivais. Esta campanha, como qualquer outra campanha, é uma campanha paga e que tem por agentes executivos vários órgãos de informação internacionais, entre os quais, em Portugal, os dois mais importantes ligados à Impresa – SIC e Expresso. Todavia a partir do momento em que a documentação começou a ser publicada em apoio das teses que a campanha tem por objectivo veicular, outros se juntaram àqueles órgãos de informação pois  como sempre acontece nas caçadas dos predadores há  os que se contentam com os restos da carcaça, de que o Correio da Manhã e a CMTV são, no caso, o principal exemplo.
Esta campanha, contrariamente ao que também foi veiculado, não envolve qualquer investigação jornalística nem tem por base a apropriação e recolha, lícitas ou ilícitas, de documentos, nem tão-pouco a consulta das famosas “fontes anónimas”, antes resulta da entrega de uma apreciável quantidade de documentos, facultados por Angola, a entidades previamente escolhidas e contratadas para prosseguirem determinados objectivos.
Os documentos a que importava dar a mais profusa publicidade estavam devidamente assinalados e, como sempre, são suficientemente sugestivos para, acompanhados das palavras adequadas, produzirem o efeito em vista.
O objectivo fundamental da campanha é destruir o “império de Isabel dos Santos”, desacreditando-a pessoal, política e empresarialmente, criando por todo o lado onde aqueles interesses existam um clima inibitório ou até intimidatório que leve à sua marginalização e ostracização. Como dano colateral ou indirecto necessário resultaria também a completa descredibilização de José Eduardo dos Santos, bem como do seu contributo na construção da “Pátria angolana”.
Dos documentos entregues ao “consórcio internacional de jornalistas” não decorre qualquer facto indiciador da origem, lícita ou ilícita, da fortuna de Isabel dos Santos, referindo-se todos eles a um período de tempo relativamente recente, coincidente com a parte final da sua breve passagem pela Sonangol até ao presente. Evidentemente, os promotores da campanha bem como os seus agentes executivos pretendem com base em indícios mais ou menos conclusivos resultantes de documentos recentes fazer retroagir os seus efeitos a todo o património pessoal e empresarial de Isabel dos Santos, embora, como já acima se disse, nada nesses documentos tenha a ver com a origem da sua riqueza
Este juízo tanto quanto possível objectivo não co-envolve qualquer avaliação ética dos protagonistas angolanos em confronto e tem apenas por objectivo situar a defesa do interesse português, o mesmo é dizer a defesa do interesse dos portugueses.
Na defesa deste interesse o Governo português não pode deixar-se influenciar pela campanha em curso e muito menos pelas arremetidas dos que, em Portugal, tem por missão promovê-la.
O Governo também deve fazer um esforço para manter “orelhas moucas” às vozes irresponsáveis de alguns que lhe são próximos, sejam essas vozes de “viúvas de Savimbi”, de delatoras (bufas) profissionais, de “supremacistas brancos” ou de uma certa esquerda “de feição neoconservadora” para a qual os negócios só se podem fazer com quem tenha no bolso, sempre actualizados, os certificados do registo criminal passados pelas entidades dos últimos países onde exerceram a sua actividade, tal e qual como o certificado de vacinas contra a febre-amarela, e, além disso, sejam cidadãos de países que não constem do seu extenso “índex (librorum prohibitorum) inquisitivo”.
As consequências políticas, económicas e sociais resultantes do desmembramento, extinção ou paralisação do “império empresarial” de Isabel dos Santos em Angola são da responsabilidade do Governo angolano, que certamente já fez essa avaliação e tirou as suas conclusões.
Ora, a Portugal o que interessa é que os efeitos das decisões do Governo angolano se não repercutam cá ou se repercutam com a menor intensidade possível, porque, independentemente da imputação de culpas e responsabilidades que possa ser feita, quem acaba por sofrer as consequências directa ou indirectamente são os portugueses, pagando inclusive do seu bolso os prejuízos apurados como continua a acontecer com o “saque bancário”, tenha ele como causa próxima a “resolução” comunitária ou outra.
Assim sendo, é do interesse português manter boas relações políticas e económicas com Angola, mas não será difícil demonstrar que não é do interesse português nem do interesse angolano que Portugal se substitua a Angola no desempenho das suas funções de soberania. Dito de outro modo, não é do interesse português, nem o seu sistema jurídico o permite, sequer em relação aos seus nacionais, fazer uma averiguação judicial da origem do património pessoal e empresarial de Isabel dos Santos.
As autoridades portuguesas devem, relativamente a este assunto, limitar-se de acordo com o direito português a averiguar possíveis irregularidades, cometidas em Portugal, por cidadãos ou empresas de qualquer nacionalidade, com base em indícios lícitos recolhidos em Portugal ou fornecidos directamente pelas autoridades angolanas competentes. E nada mais.
É por estas razões que o encontro entre os PGR dos dois países causa apreensão, já que a experiência demonstra que há da parte de certas autoridades do foro judiciário uma forte tentação de imiscuição nos assuntos políticos. Qualquer governo, de qualquer país, não teria a menor dúvida de, num caso destes, transmitir, nos termos da lei e do interesse nacional, as instruções convenientes ao Procurador Geral da República. É de esperar que o Governo português também o faça, porque não há nada que faça pior a uma democracia do que ter um país governado pelo poder judiciário.


quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

ANTUNES VARELA MINISTRO DA JUSTIÇA DE SALAZAR




VARELA E A AUTONOMIA DO ENSINO UNIVERSITÁRIO 

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Já em artigo anterior tivemos oportunidade de criticar em termos veementes a homenagem a Antunes Varela pelo tribunal da Relação de Coimbra – um órgão de um órgão de soberania – bem como as intervenções que nele tiveram a ministra da Justiça – Francisca Van Dunem – e o presidente do Supremo Tribunal de Justiça – António Piçarra – não tanto pelo que disseram, que sempre seria politicamente criticável, mas por terem dito o que disseram na qualidade em que o fizeram.

Depois desta homenagem, muito criticada pelos democratas portugueses, igualmente se pronunciou com grande apreço pela obra de Varela, na sua dupla vertente de jurista e de político do Estado Novo, o Doutor Menezes Leitão, eleito recentemente bastonário da Ordem dos Advogados, cujas palavras igualmente lhe valeram a crítica contundente de muitos dos seus representados por nelas ter omitido completamente a co-autoria e a cumplicidade do político e do jurista na repressão durante a ditadura salazarista.

Já foi feito, principalmente por advogados, mas também pelos guardiões da memória, o elenco dos crimes da ditadura bem como a identificação da legislação repressiva, arbitrária e inclemente, que facilitava a sua prática quer pela amplitude de acção que permitia aos seus agentes executivos quer pela impunidade que lhes assegurava, durante o tempo em que Varela desempenhou as funções de Ministro da Justiça (1954-1967), pelo que a nosso objectivo agora será exactamente o oposto: ou seja, o de demonstrar o zelo com que Varela intervinha contra quem ousasse pôr em causa, ao de leve que fosse, as “bases sagradas” em que assentavam a “sua moral” e o “seu direito”.

Na década de 60 do século passado, tivemos a felicidade de ter, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, como Professor de Direito de Família (Francisco Manuel) Pereira Coelho, que, uns meses antes do início do nosso IV ano, tinha acabado de publicar o “Curso de Direito de Família”, um admirável livro de cerca de 600 páginas, que representava no panorama do direito português da época um verdadeiro oásis pela forma elegante, aberta, corajosa, despreconceituosa e rigorosa com que tratava as grandes questões do direito de família, que são, como os juristas bem sabem (mas não somente eles), de todas as questões do direito privado, as mais sensíveis aos “ventos da história”, o mesmo é dizer às grandes alterações das estruturas políticas, económicas e sociais.   

Basta ver como a Revolução francesa alterou profundamente o Direito de Família, o mesmo se tendo passado com a Revolução russa, bem como o que se passou entre nós com a Implantação da República (leis de Afonso Costa) e depois com o 25 de Abril, que alterou profundamente o Código Civil de 66, na parte correspondente ao Direito de Família.

À época, questões importantes (hoje muitas delas já esbatidas em quase todas as latitudes) eram, entre outras, a confessionalidade ou a inconfessionalidade do casamento, a admissibilidade do divórcio, a posição da mulher face ao marido, o estatuto dos filhos (nascidos no casamento ou fora dele), questões – algumas delas – que tinham tido um assinalável recuo na legislação do Estado Novo, principalmente depois da entrada em vigor da Concordata entre o Estado português e a Santa Sé (1940).

Pereira Coelho tratava todas estas questões com total abertura de espírito. Sendo católico, advogava a separação entre o Estado e a Igreja, depreendia-se todavia do seu ensino que reprovava a intromissão da igreja nos assuntos temporais, defendia o monopólio do direito estadual na regulamentação do direito de família, bem como no estado civil das pessoas, admitia, todavia, que o casamento pudesse ser celebrado sob a forma católica, contanto que os pressupostos da sua celebração bem como os seus efeitos fossem inteiramente regulados pelo Estado, advogava também a total paridade dos cônjuges no casamento e entendia, de forma muito clara, que não competia ao Estado assegurar o cumprimento dos deveres de consciência de nenhuma confissão religiosa.

Isto era o que se depreendia do seu ensino que todavia não deixava de ser rigoroso na explicação do regime então vigente em Portugal que muito se afastava destas concepções. Na verdade, o Estado português admitia dois institutos matrimoniais – o casamento civil e o casamento católico – o primeiro regulado pelo direito civil, o segundo quase inteiramente regulado pelo direito canónico, daí resultando que os efeitos pessoais do casamento católico fossem inteiramente regulados por um direito estranho ao direito estadual com consequências muito importantes para a vida das pessoas, como a inadmissibilidade do divórcio; por outro lado, a chamada “sociedade conjugal” estava, sob todos os aspectos, muito longe de ser paritária, situação que o Código Civil, publicado um ano depois do livro de Pereira Coelho, manteve no essencial, numa época em que essa superioridade marital já era por todo o lado contestada.

Pois bem o que fez Varela, ministro da Justiça de Salazar, pouco depois da publicação deste livro? Varela que não teve uma palavra que fosse sobre o assassínio de Humberto Delgado, Varela que publicou legislação que permitia prorrogar indefinidamente as penas mediante aplicação de sucessivas medidas de segurança, Varela que foi insensível ao assassínio pela PIDE de antifascistas na rua e nos campos, Varela que nunca se opôs à tortura dos prisioneiros nem à prisão sem culpa formada, Varela agora estava atento e ia agir!

Quatro meses depois da publicação do Curso de Direito de Família, em 1 de Outubro de 1965, Varela inicia, na Revista de Legislação e Jurisprudência (uma revista criada por ocasião da entrada em vigor do Código Civil de Seabra, 1867), com base num pretexto fútil, publicou um artigo condenatório das posições de Pereira Coelho sobre os tais temas mais candentes do Direito de Família, facto que, á época, não deixou de ser interpretado como intimidatório e ameaçador. O que revela a personalidade do seu Autor e o seu profundo reaccionarismo em matérias que, embora se integrassem no “Deus, Pátria, Família” de Salazar, estavam muito longe de constituir, inclusive para o próprio Ditador, uma questão de importância fundamental a ponto de não serem admitidas discordâncias. Salazar tinha concedido à Igreja, com a Concordata, parte do que ela pretendia, permitindo-lhe a recuperação de algumas posições perdidas, principalmente com a República, em troca de um apoio incondicional, cujo equilíbrio era importante manter, sem contudo alinhar em ultramontanismos susceptíveis de abrir uma frente oposicionista laica que igualmente lhe seria prejudicial. Daí a relativa subtileza com que estas questões eram tratadas pelo Estado.

Não era, porém, essa a posição de Varela. Com base numa ligeira crítica feita, en passant, por Pereira Coelho ao preâmbulo do Código de Registo Civil, de 1958, numa nota do Curso de Família, na qual se dizia que não se viam que “soluções novas” o legislador tinha em vista, quando a elas se referiu no preâmbulo do dito diploma, já que todas vinham do direito anterior, Varela, dizíamos, com base neste puro pretexto, parte para responder ao que chamou “as críticas” de Pereira Coelho ao Código de Registo Civil nos seguintes termos:

É de notar a agressividade com que em vários passos da publicação o Sr. Doutor Pereira Coelho se refere ao diploma de 58, o mau humor que frequentes vezes revela mesmo perante disposições sem grande relevo do novo estatuto do registo civil, e a compreensão e a benevolência que rodeiam em contrapartida a apreciação da legislação laicista de 1910 relativa aos direitos de família, apesar de esta, eliminando o casamento católico, admitindo o divórcio com uma largueza excessiva de fundamentos e estendendo o campo de aplicação desta causa de dissolução aos próprios casamentos católicos celebrados antes da entrada em vigor de 3 de Novembro daquele ano, haver contrariado os sentimentos da grande maioria da população portuguesa e ter tido as mais nefastas consequências na coesão da família e na estabilidade da sociedade conjugal”. 

Até aqui tudo bem, salvo o ridículo da adjectivação relativa à apreciação de quem prefere um regime a outro. O mais que se poderia dizer é que estávamos perante um reaccionário empedernido e enciumado por haver no ensino do direito quem não alinhasse ideologicamente com as concepções reinantes no direito de família em vigor de que o Código de Registo Civil, muito provavelmente de sua autoria e de sua inspiração, se fazia eco.

Mas a seguir logo se percebe que é muito mais do que isso o que Varela realmente pretende. Diz então: “Eu sempre entendi, por várias razões cujo desenvolvimento se não coaduna com a índole da Revista, que nas prelecções feitas perante o público receptivo e impreparado dos alunos o professor deve concentrar especialmente a sua atenção sobre os problemas da interpretação da lei e da integração das lacunas do sistema, e sobre as tarefas de elaboração científica dos materiais fornecidos pela legislação, abstendo-se quanto possível de intervir em questões de outra ordem, incluindo as que entram abertamente no domínio da política legislativa. Estas interessam de modo particular aos políticos, à administração, às assembleias legislativas ou às comissões revisoras, nas quais os professores têm sempre um papel destacado a desempenhar – mas fora do público escolar, longe do ambiente específico da actividade docente”.

Se outra for a orientação seguida pela escola, então os alunos, as famílias deles e a própria Igreja têm uma palavra especial a proferir, porque nessa altura passam a ter perfeito cabimento quanto ao ensino superior as considerações que o deputado António Santos da Cunha em tempos desenvolveu na Assembleia Nacional sobre os problemas gerais da educação, e que mereceram a plena concordância dum mestre ilustre da nossa Faculdade, o Professor Guilherme Braga da Cruz

Já agora vale a pena transcrever as palavras de Santos da Cunha na AN. Diz ele: “Porque a sua função (a do Estado), neste aspecto, é, ainda e sempre, a de realizar o que a família e a Igreja não podem realizar por si, o Estado não tem que arvorar-se em doutrinador, antes tem de conformar-se com a orientação doutrinal que aquelas sociedades prioritárias dariam à educação em tais sectores, se lhes fosse possível desempenhar directamente essa missão

Estas ideias ilustram melhor que quaisquer outras o “brilhante jurista” que alguns teimam em homenagear que, inclusive, se revê na indigência mental das palavras acabadas de citar. Elas seriam dignas de um qualquer “ayatollah” que tivesse a seu cargo a defesa e a guarda da fé, se não fossem muito mais que isso. Se não fossem um aviso intimidatório e uma grave ameaça à autonomia do ensino universitário, pretendendo-se por esta via, como adiante se verá, inflectir a orientação do ensino ministrado na Faculdade de Direito de Coimbra em matéria de Direito de Família, já que em Lisboa se estava a anos-luz de se correr esse perigo com o ensino da Família entregue a Gomes da Silva. Estas considerações não são dignas de um Professor, nem merece nenhum respeito intelectual quem as profere, e somente se compreendem por terem sido proferidas por quem, no fundo, privilegiava a função policial no desempenho do cargo de que estava incumbido!

De facto, é este o recado que Varela quer deixar já que na explicação que subsequentemente faz da tal “novidade” consagrada pelo CRC se enreda numa demorada e desnecessária análise puramente técnica de vários assuntos relativamente ao quais nenhuma divergência existia.

O que Varela quer atacar, com a sua voz intimidatória, são os fundamentos progressistas do Direito de Família do Prof. Pereira Coelho, como volta a deixar claro quando aborda sem pudor o princípio da igualdade dos cônjuges.

Diz ele, também: “O zelo crítico do Sr. Doutor Pereira Coelho não se confinou, aliás, ao Código do Registo Civil (…); estendeu-se ao próprio projecto do Código Civil (…)”.

O direito civil vigente (art.º 39.º do Dec. N.º 1) consagra dentro da sociedade conjugal, afirma o Sr. Doutor Pereira Coelho, um princípio básico que é o da liberdade e igualdade dos cônjuges. Este princípio da igualdade, acrescenta, corresponde à tendência das legislações mais recentes, tendência revelada nas leis belga e alemã e ainda no anteprojecto do Código francês, e tem expressão nos documentos mais significativos do pensamento moderno, desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (art.16.º) à Encíclica “Pacem in Terris”, onde se considera como direito da pessoa o de constituir família “na base de paridade de direitos e deveres entre homem e mulher”.

E - continua Varela - remata assim as suas considerações: “Como inovação contrária aos sinais dos tempos há-de pois julgar-se a doutrina do artigo 1682.º do Projecto, segundo o qual o marido é o chefe de família, competindo-lhe nessa qualidade, poderes de decisão em todos os actos da vida conjugal comum”.

Agora é que Varela se não contém. Esta passagem do livro de Pereira Coelho encerra todos os ingredientes que fizeram pôr a nu seu papel de guardião ultramontano e policial dos tais “valores absolutos” que não se cansa de publicamente exibir. Falar na liberdade e igualdade dos cônjuges, fundamentar esse princípio numa resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, órgão e instituição diabolizados pelo regime, buscar apoio num catolicismo progressista que tinha começado a despontar com o Vaticano II, para daí atacar o regime que iria ser consagrado pelo Código Civil, era demais. Era algo que o reaccionarismo do “insigne jurista” não estava em condições de suportar.

Daí que ele saia a terreno para afirmar que não aceita: “ (…) a ideia de transferir para a sociedade familiar os princípios da sociedade política…democraticamente organizada, como este da igualdade entre os cônjuges”.

E isto porque: “O homem e a mulher são diferentes por natureza, e por essa razão se completam (…). Dentro da sociedade conjugal, marido e mulher têm uma função própria, diferente, ligada às características peculiares de cada sexo. E a funções diferentes têm de corresponder, em princípio, distintos direitos e diversas obrigações”.

E até graceja, com aquele tipo de piada machista que lhe fica muito bem. A propósito de um projecto brasileiro, fundado naquelas ideias, Varela toma como suas as palavras de um observador qualificado, citando-o nos seguintes termos: “(…) marido e mulher eram iguais em direitos e iguais em obrigações; iguais em tudo, menos nos encargos do sustento dos filhos…e da própria mulher, porque esses recaiam em cheio sobre o pobre do marido”.

E para responder à Encíclica citada; Varela também tem argumentos de peso, lembrando que na cerimónia do casamento católico continua a ler-se a carta de S. Paulo aos cristãos de Éfeso, sendo nela que “por mais de uma vez se afirma que a mulher deve estar sujeita em todas as coisas ao seu marido, enquanto se manda ao marido amar a mulher como se ama o seu próprio corpo”.  

É caso para perguntar se não será essa diferença entre os cônjuges e a natureza de um poder marital assim concebido que justifica a doutrina singular defendida no Ac do S. T. J. , de 3 de Maio de 1952, segundo o qual os maus tratos infligidos pelo marido à mulher não constituirão sevícias capazes de justificar o pedido de divórcio se não excederem “os limites de uma moderada correcção doméstica”, ou seja, uma espécie de poder de correcção semelhante ao que havia no poder paternal!

E Varela termina a sua longa diatribe não deixando de fazer jus a todas as facetas do fascismo salazarista, entre as quais não poderia deixar de figurar aquela que, para quem não se empenhava profissionalmente “na luta antifascista”, mas nem por isso deixava de manifestar a sua oposição ao regime numa salutar distância insusceptível de permitir qualquer equívoco, era exibida pelo “polícia bom” sob a capa de um pretenso paternalismo, sempre que o interlocutor pudesse ter algo a perder pela consumação da ameaça velada que esse falso paternalismo encerrava. Esta era sem dúvida uma das facetas mais repugnantes do fascismo à portuguesa pela pouca margem de manobra que deixava às suas vítimas.

E é esse o papel que Varela desempena quando diz: “Estas Lições do Doutor Pereira Coelho estão primorosamente redigidas, revelam uma excelente preparação jurídica e uma cultura geral pouco vulgar nos próprios meios universitários. A sua investigação tem verdadeira altura científica. Por isso mesmo me faz pena ver as prelecções diminuídas num ou noutro ponto, por solicitações de espírito que podem ser perfeitamente legítimas fora do ensino, mas que não o são no exercício da função docente, perante o público escolar”.

Isto é, simplesmente, repugnante!