quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

DEPOIMENTO SOBRE APROVAÇÃO DAS LEIS DA REFORMA AGRÁRIA



PROGRAMA A EXIBIR NA RTP 2



INTRODUÇÃO

Em Dezembro passado uma jornalista da RTP – Margarida Metello – pediu-me um depoimento sobre a Reforma Agrária. Chegou até mim por indicação do Ministro das Finanças do IV e V Governos Provisórios, José Joaquim Fragoso.

Hesitei na prestação desse depoimento, porque não tendo tido nenhum protagonismo no movimento da Reforma Agrária, nem tendo participado na elaboração material da lei, parecia-me excessivo estar a falar de um assunto relativamente ao qual tive uma participação meramente circunstancial por força das funções que então exercia. Há muita gente, felizmente ainda viva, que com muita mais propriedade do que eu poderia falar sobre a Reforma Agrária, nomeadamente sobre a lei que a aprovou, a começar pelo próprio Ministro e seus assessores com interferência directa na elaboração da lei.

Acontece, segundo informação da jornalista, que nenhuma dessas pessoas estava disponível para falar sobre o assunto, pelo que seria, do ponto de vista dela, importante o depoimento de alguém que tivesse participado no Conselho de Ministros que aprovou a lei.

Depois de me aconselhar com alguns amigos, inclusive ligados à Reforma Agrária, por força das funções governamentais que depois vieram a exercer, resolvi aceder ao pedido de Margarida Metello e prestar-lhe um depoimento sobre as questões que ela me quisesse colocar.

Interessa apenas acrescentar que sobre o dito programa a exibir na RTP 2 nada sei, nem tão-pouco me mostrei interessado na sua contextualização. Desconheço, portanto, a amplitude temática do dito programa, a razão de ser da sua realização nesta data e tudo mais que poderia ter interesse para a sua pré-compreensão. Limitei-me a reproduzir, sintecticamente, o que se passou em Conselho de Ministros e a fazer algumas interpretações à luz do que então se pensava e sabia e não, obviamente, do que hoje se pensa ou sabe, por esta não ser a minha forma de colaborar na feitura da história.

O depoimento que prestei tem, como muitos outros depoimentos orais, algumas hesitações de linguagem, certamente algumas frases mal construídas, porventura algumas incorrecções, por neles se não poder fazer o que em regra se faz com a escrita: reler, corrigir, adequar com algum rigor a palavra ao pensamento que se pretende exprimir.

É também com este objectivo que agora procuro reproduzir, para “memória futura”, o que então disse ou tentei dizer.

O CONSELHO DE MINISTROS DE 4 DE JULHO DE 1975

Ora bem: as principais leis sobre a reforma agrária - a saber: 1)expropriação de prédios rústicos (normas a que deve obedecer a expropriação de prédios rústicos); 2)nacionalização de vários prédios rústicos beneficiados por aproveitamento hidroagrícolas de certas regiões do país; 3)extinção das coutadas, com excepção das reguladas no DL 733/74; 4)controlo estatal de toda a produção de cortiça amadia extraída ou a extrair na campanha de 1975, de que sejam proprietárias determinadas entidades; 5)crédito agrícola a conceder às explorações agrícolas ou pecuárias geridas pelos trabalhadores rurais ou pequenos agricultores sob a forma de cooperativa - foram aprovadas no Conselho de Ministros de 4 de Julho de 1975 e mais tarde publicadas, respectivamente, no Suplemento e 2.º Suplemento ao Diário do Governo de 29 e 30 de Julho desse mesmo ano.

A jornalista quis saber quem participou neste Conselho de Ministros. Em primeiro lugar, é preciso explicar que, de acordo com a lei orgânica do Governo, aprovada pelo Conselho da Revolução, o Conselho de Ministros reunia-se em Conselho Restrito, composto pelo Primeiro Ministro, os Ministros sem pasta, dois Ministros do MFA e ainda pelos Ministros convocados em função dos assuntos a tratar, quer por decisão do PM ou do próprio CM, por iniciativa própria ou mediante sugestão do Ministro directamente interessado.

As deliberações do Conselho Restrito vinculavam todos os Ministros em caso de extrema urgência ou quando a simplicidade das matérias tratadas o justificasse; nos demais casos, os Ministros que não participaram no Conselho tinham o direito de, por maioria, requerer a apreciação das matérias aprovadas em Conselho Pleno.

Do ponto de vista prático – e nessa matéria estou à vontade para falar – eram sempre convocados os Ministros que directa ou indirectamente (Ministro das Finanças, por exemplo) tinham a ver com a matéria a tratar, bem como todos aqueles que manifestassem interesse em participar no Conselho.

No dito Conselho de 4 de Julho estiveram presentes, além do Primeiro Ministro, os Ministros sem Pasta, Magalhães Mota, Álvaro Cunhal e Pereira de Moura, o Secretário de Estado da Justiça Armando Bacelar, em representação de Mário Soares (Ministro sem pasta) e Salgado Zenha (Ministro da Justiça); o Ministro da Defesa Nacional, Silvano Ribeiro; o Ministro da Administração Interna, Arnão Metello; o Ministro da Agricultura, Oliveira Baptista; o Ministro das Finanças, José Joaquim Fragoso; o Ministro do Planeamento e Coordenação Económica, Mário Murteira; Ministro do Equipamento Social e Ambiente, José Augusto Fernandes; o Ministro dos Assuntos Sociais, Sá Borges; o Ministro da Comunicação Social, Correia Jesuíno; o Ministro do Trabalho, Costa Martins; o Secretário de Estado do Planeamento e Recursos Humanos; o Subsecretário de Estado do Ambiente, Ribeiro Teles; e o autor destas linhas (além da Secretária do Conselho).

Não estiveram presentes, ou por ausência do país, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Melo Antunes e o Ministro da Coordenação Interterritorial, Almeida Santos; ou por não terem sido convocados, o Ministro da Indústria e Tecnologia, João Cravinho; o Ministro do Comércio Externo, Silva Lopes; o Ministro dos Transportes e Comunicações, Veiga de Oliveira; o Ministro da Educação e Cultura, José Emílio da Silva.

Mário Soares e Salgado Zenha faltaram, tendo-se feito representar por Armando Bacelar.

A primeira questão que no Conselho de Ministros foi discutida, antes da apresentação das leis da Reforma Agrária pelo Ministro da pasta, foi um pedido de adiamento daqueles projectos de decretos-leis apresentado pelo Dr. Armando Bacelar, em nome do Partido Socialista, na sequência, aliás, de idêntico pedido que no dia anterior já havia sido feito por Mário Soares ao Primeiro Ministro. Segundo Armando Bacelar, nem todos os diplomas teriam sido distribuídos com a antecedência regulamentar, e sobre os demais ainda não havia uma posição do Partido Socialista, pelo que pedia esses pontos fossem retirados da agenda para serem analisados mais tarde.

O Conselho reagiu muito desfavoravelmente a este pedido de Armando Bacelar. Não apenas por serem de pouca importância as matérias distribuídas com algum (pouco) atraso, como era o caso de certas tabelas anexas ao diploma das “Expropriações”, e também por ser prática corrente no Conselho relevar esses pequenos atrasos (aliás, o próprio Armando Bacelar tinha pedido para nesse Conselho ser agendado um ponto que não tinha sido distribuído com a antecedência regulamentar), como também – e este era o principal argumento – por se tratar de matéria urgente sobre a qual já se estava a legislar com atraso. De facto, a opinião dominante no Conselho foi a de que as leis que agora estavam sendo agendadas para aprovação já deveriam ter sido apresentadas (e na verdade em anteriores reuniões do CM o Ministro da Agricultura já tinha sido confrontado com a “impaciência” com que se aguardava a regulamentação da Reforma Agrária), tanto mais que sem essas leis se corria o risco de se constituírem situações de facto que na prática tornavam inoperante a acção do Governo (ponto em que muito insistia Pereira de Moura). Foi inclusive referido que o Comandante da Região Militar de Évora, Pezarat Correia, também membro do CR, já por mais de uma vez tinha comunicado ao PM que sem a lei aprovada se tornava difícil manter a legalidade no Alentejo.

Por outro lado, outros ministros, como Álvaro Cunhal, referiram que a questão da Reforma Agrária estrava na agenda de todos os partidos, todos sabiam que a lei ia ser apresentada, tendo o assunto sido objecto de análise em todos os partidos, como aliás decorria das intervenções públicas que sobre o assunto iam sendo feitas, em comícios e em reuniões de militantes.

Por outras palavras, todos os partidos tinham uma posição sobre a Reforma Agrária. Todos estavam em condições de analisar e debater a proposta apresentada pelo Ministro da Agricultura.

Houve mesmo quem (Ministro da Defesa Nacional) tivesse perguntado a Armando Bacelar qual a posição do PS sobre a Reforma Agrária, tendo este respondido que não poderia substituir-se a uma posição do colectivo, que, tanto quanto sabia, ainda não existia, embora ele, pessoalmente, aceitasse participar na discussão da lei. E de facto assim aconteceu, tendo inclusive proposto algumas alterações e contribuído para a melhoria de redacção de algumas outras.

Resolvida esta questão, no sentido de não atender ao pedido de adiamento do PS, entrou-se na análise da lei, sobre a qual não houve qualquer oposição de fundo sobre o essencial das questões nela tratadas. Houve discordâncias de pormenor, ou sobre questões que, não podendo verdadeiramente considerar-se de pormenor, também não contendiam com a essência da lei.

E a essência da lei era a expropriação dos prédios rústicos que estivessem nas condições nela referidas, condições estas fixadas com base em índices de natureza objectiva, como a área da propriedade ou a sua pontuação segundo a tabela anexa, ou que já tivessem sido objecto de intervenção, ou aqueles que por não alcançarem os níveis mínimos de aproveitamento estabelecidos ou a estabelecer pelo Ministério da Agricultura devessem ser expropriados.

Além destes factores de expropriação que tem a ver com a natureza do prédio, havia também uma proposta de expropriação que tinha a ver com as qualidades subjectivas do proprietário. Ou seja, atingiam-se também aqueles prédios rústicos propriedade de pessoas com passado fascista, um pouco à semelhança do que se estabeleceu com a lei das inelegibilidades para a Assembleia Constituinte (quem não pode eleger, nem ser eleito), pelo papel pernicioso que essas pessoas poderiam continuar a ter nos campos.

Esta questão foi objecto de um amplo debate em Conselho. Os Ministros sem pasta, e também Armando Bacelar, manifestaram-se contra a introdução desta disposição na lei. Cunhal disse que a reforma agrária era uma justa aspiração dos trabalhadores agrícolas visando uma profunda transformação das relações económicas, sociais e culturais no campo, não devendo nunca ser encarada numa perspectiva punitiva. Magalhães Mota, disse que essa disposição era muito nociva tanto para a Reforma Agrária como para a Revolução, porque a sua adopção iria levar a que lá fora se dissesse que o Governo tomava medidas de perseguição económica contra os seus opositores. Pereira de Moura também concordou com a sua eliminação com base em razões sensivelmente idênticas.

O Primeiro Ministro, os Ministros militares e o Ministro da Agricultura que inicialmente insistiram na manutenção da referida disposição acabaram por concordar com a sua eliminação.

Discutiu-se também o objectivo imediato da reforma Agrária: pôr termo ao latifúndio e a uma classe de proprietários, como uma das bases de apoio do regime fascista. Sobre este tema interveio várias vezes o Arquitecto Ribeiro Teles, então ainda Subsecretário de Estado do Ambiente, presente no Conselho por nele se ir analisar o projecto de lei de criação da Secretaria de Estado do Ambiente. Ribeiro Teles, embora considerasse a lei justa, dada a situação do campo alentejano, achava que ela poderia tornar-se injusta na sua aplicação a proprietários que a não mereciam. Por outro lado, insistiu bastante na, pelo menos aparente, continuação do latifúndio, embora com outros proprietários e confessou que não via na lei algo que verdadeiramente o entusiasmasse quanto ao que poderia vir a ser o agricultor, a produção agrícola, a sua ligação à natureza, etc. Por outras palavras, para Ribeiro Teles esta não era a Reforma Agrária com que ele sonhara…

Manifestamente, Ribeiro Teles estava tratando de uma questão que naquela época estava para além do tempo político a que a lei visava dar resposta. E a lei visava antes de mais dar resposta, como acima se disse, à extinção de uma classe de latifundiários, pondo essa terra ao serviço de milhares de assalariados rurais e dos camponeses pobres.

Depois, bem, depois muitos outros assuntos teriam de ser tratados. Agora o importante era acabar com os latifundiários e eliminar a sua capacidade de influência política.

Finalmente, tanto os Ministros sem pasta, nomeadamente Magalhães Mota e Pereira de Moura, como alguns Ministros Militares, insistiram bastante na necessidade de fazer uma correcta explicação da lei das “Expropriações” para que não se criassem mal entendidos, para combater os boatos e os falsos alarmes. De facto, no articulado da lei não havia uma delimitação geográfica da área de intervenção da Reforma Agrária. Ela resultava, em parte, indirectamente, dos critérios objectivos que identificavam os prédios expropriáveis e da tabela anexa, resultante de critérios de pontuação estabelecidos por concelhos em função das culturas.

INTERPRETAÇÃO DA AUSÊNCIA DO PARTIDO SOCIALISTA

Depois a jornalista quis saber quais (em minha opinião) as razões da ausência do Partido Socialista (Mário Soares e Salgado Zenha), já que Armando Bacelar acabou por participar a título individual. Dei-lhe a explicação que à data em que os factos ocorreram parecia mais verosímil.

Era por demais evidente, em Julho de 1975, que o PS não concordava com a marcha da Revolução. Aliás, desde muito cedo, ainda em 1974, se percebeu que o PS tinha acerca do pós fascismo uma ideia muito diferente daquela que era a da maioria do MFA e a das forças que apoiavam a Revolução. Não será exagerado afirmar hoje, como já não o era à época, que havia duas concepções muito diferentes sobre o que fazer depois de derrubado o fascismo. Estas concepções não nasceram com o 25 de Abril, elas consolidaram-se com o 25 de Abril, mas eram-lhe muito anteriores. Elas perpassam e dividem a oposição portuguesa principalmente a partir da década de sessenta.

Se as quisermos corporizar em dois documentos simbólicos, poderíamos dizer que um núcleo muito importante do que veio a ser o PS e do que era hábito chamar a burguesia liberal de ideais republicanos se reviam no “Programa para a democratização da República” (1961), enquanto a outra parte não composta exclusivamente por comunistas, mas também por antifascistas de forte inspiração socialista, se revia ou estava mais próxima das teses do “Rumo à Vitória” (1964).

Estes dois documentos simbolizam o modo como cada uma das componentes da oposição portuguesa via o pós-fascismo. Para uns, bastava restaurar as liberdades, eliminar os instrumentos de repressão do fascismo (Pide, Legião, Censura) e os seus mais visíveis meios de acção política (União Nacional, corporativismo), bastando quanto ao resto do aparelho de Estado substituir os fascistas por democratas para que a democracia se instalasse e consolidasse. No Rumo à Vitória, pelo contrário, não bastava a eliminação dos meios de repressão fascista e dos seus principais instrumentos de acção política, para que a democracia se firmasse no panorama político português. Era necessário destruir as bases económicas, culturais e políticas do Estado fascista. Destruir os seus suportes materiais: os monopólios e os latifúndios; assegurar a libertação do domínio imperialista; reconhecer o direito à autodeterminação e independência dos povos coloniais; garantir a elevação do nível de vida das classes trabalhadoras; pôr em prática uma política externa de paz e de cooperação com todos os povos.

Embora os princípios fundadores do PS (1973), o seu programa e a declaração de princípios vão muito para além do Programa para a Democratização da República, a verdade é que do ponto de vista da acção política durante a Revolução o PS esteve sempre muito mais próximo daquele Programa do que dos seus princípios fundadores, que apareciam aos olhos dos demais como verdadeira letra morta. Daí que, não obstante o que nele se estabelecia sobre nacionalizações e Reforma Agrária, o PS tivesse aceitado contrariado o programa de nacionalizações decidido pelo Conselho da Revolução e se tivesse oposto à Reforma Agrária.

Por outro lado, o Programa do MFA, que até ao 11 de Março é a verdadeira a carta de princípios da Revolução, acaba por representar um compromisso entre as duas correntes, embora pondo o acento tónico nas medidas enunciadas no Rumo à Vitória, na medida em que consagra, como programa do Governo Provisório, o lançamento das bases para uma política económica posta ao serviço do povo português, em particular das camadas até agora mais desfavorecidas, o que implica uma estratégia anti-monopolista; uma política social de defesa das classes trabalhadoras e do aumento progressivo e acelerado do nível de vida de todos os portugueses; uma política externa baseada nos princípios da igualdade e independência, não ingerência, defesa da paz e diversificação das relações internacionais; o respeito pelos compromissos internacionalmente assumidos e a promoção de um grande debate nacional sobre a política ultramarina com vista a alcançar a paz nos territórios ultramarinos.

Muito por força das exigências de Spínola, cujos apoiantes estavam representados no MFA vitorioso, foram feitas várias concessões programáticas, reflectidas no Programa do MFA, que todavia não chegam para desmentir nem contrariar os princípios defendidos pela corrente dominante do MFA que igualmente via no 25 de Abril um movimento não apenas destinado extinguir os instrumentos de repressão do fascismo mas também vocacionado para o lançamento dos meios que pudessem levar à eliminação das bases de apoio do Estado fascista.  

Dir-se-á que a actuação das forças apoiantes do MFA e do próprio MFA foi muito para além daquilo que eram as suas bases programáticas. É verdade, embora seja indiscutível que essa aceleração se deu sempre em consequência das manobras da direita destinadas a impedir o cumprimento daquele programa, fossem elas puramente palacianas (o chamado “golpe Sá Carneiro/Palma Carlos”) ou de rua (28 de Setembro e 11 de Março). É essa aceleração do processo revolucionário que permite destruir as bases materiais de apoio do Estado fascista e simultaneamente consagrar constitucionalmente uma democracia avançada.

É neste contexto, no qual o PS se posiciona quase sempre em termos muito recuados, que deveria ser interpretada a sua posição sobre a Reforma Agrária. O pedido de adiamento não passava, portanto, de uma manobra dilatória destinada a ganhar tempo relativamente a algo que pudesse vir a acontecer.

Hoje, porém, é fácil perceber que já tendo, à época, o PS decidido abandonar o Governo lhe não interessava a nenhum título ficar ligado a uma lei da qual profundamente discordava, como a sua actuação política subsequente eloquentemente demonstrou.

E foi este, no essencial, o depoimento prestado ou que tentamos prestar.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

ESPANHA – VETOS CRUZADOS




PEDRO SANCHEZ EM GRANDES DIFICULDADES 

Não está fácil a formação de um Governo em Espanha na actual composição parlamentar. Sanchez, muito pressionado pelos “barões”, tenta a quadratura do círculo: um governo com Ciudadanos e com Podemos. Mas Ciudadanos não aceitam pertencer a um governo em que esteja o Podemos, nem sequer abster-se. E Podemos, neste quadro, como diz Iglesias, nem tem que se pronunciar.

PP (Rajoy) votará contra um Governo PSOE/Ciudadanos e o mesmo fará o Podemos. Aliás, Rajoy já informou que o PP só participará em governos liderados por ele.

Uma aliança PSOE/Podemos precisa de mais 15 deputados (votos a favor ou abstenção) para passar. Tanto o PP como os Ciudadanos já declararam que votarão contra. Como os socialistas impuseram a Sanchez a recusa de aceitação da abstenção dos independentistas da Catalunha, tendo também um dos partidos catalães (Democracia e Liberdade) declarado que votaria contra tal aliança, restam os deputados da Izquierda Unida e do PNV…que não são suficientes.

Entretanto, multiplicam-se as pressões para a formação de um governo PP/PSOE ou, no mínimo, um governo PP/Ciudadanos com abstenção do PSOE. Pouco provável depois de tudo o que Sanchez já disse, a menos acontecesse algo que também não parece provável: a renúncia de Rajoy e a sua substituição por alguém menos ligado à corrupção.

Se esta última solução (muito do agrado dos “barões” do PSOE e já publicamente apoiada por Felipe Gonzalez) fosse posta em prática, Sanchez perderia a face e o PSOE o papel de partido alternativo, intensificando muito provavelmente a sua “pasokização”.

Daí que o mais provável seja a convocação de novas eleições, parecendo agora que os mais prejudicados com esta solução seriam o PSOE e os Ciudadanos.

Insistimos na “questão espanhola” porque estamos plenamente convencidos que somente uma solução à esquerda em Espanha poderia garantir algum alento à actual solução governativa portuguesa.

Sem a voz de um grande país que não tenha dúvidas em secundarizar o Tratado Orçamental relativamente à defesa do estado social (promessa que Sanchez não se tem cansado de repetir e, obviamente, também Iglésias) vai ser muito difícil a um país pequeno, como Portugal, resistir à chantagem de Bruxelas, internamente apoiada pela direita anti-patriótica do PSD e do CDS, mantendo-se a nossa governação no quadro do chamado plano A.

E há condições políticas para ameaçar pôr em prática o Plano B? Ninguém duvidará, sejam quais forem as intenções de quem governa, que estão sendo dados passos muito importantes para demonstrar a inviabilidade do Plano A. Ou dito de outra maneira: começa a ficar evidente aos olhos dos democratas que o Plano A pressupõe a inutilidade do voto popular, a aniquilação da democracia e a completa submissão a uma doutrina económica transformada em norma constitucional pelos agentes do capitalismo neoliberal de dominante financeira.

Não se trata, como alguém ainda ontem disse, de ver a União Europeia como uma URSS sem KGB. Trata-se de muito mais do que isso. Trata-se de impor a governação económica capitalista de acordo com uma determinada doutrina económica com exclusão de todas as outras. E isto é novo. Nunca isto tinha acontecido antes nem nos países capitalistas, nem nos países socialistas. Antes desta hegemonia do capital financeiro e do monetarismo, o que existia eram diferentes sistemas de organização das sociedades. Digamos, para simplificar, umas que só poderiam alicerçar-se na apropriação individual dos meios de produção e na livre iniciativa e outras na apropriação colectiva dos meios de produção. Mas não havia em nenhuma delas a obrigação constitucional de economicamente as gerir apenas e só de acordo com uma determinada doutrina económica. Em capitalismo havia várias experiências que coexistiam no tempo em diversos países ou que no tempo se sucediam em busca daquilo a que poderíamos chamar a eficiência do sistema. O mesmo se poderia dizer relativamente aos países socialistas, porventura com menos variantes, mas sempre com múltiplas experiências e com idênticos objectivos.

A situação com que hoje nos deparamos na Europa é nova e tem consequências políticas assustadoras. Deixá-la consolidar corresponderá a um dos maiores retrocessos civilizacionais dos tempos modernos. Por isso, é bom que todos nos vamos preparando para, mais dia, menos dia, termos de pôr em prática o plano B.