domingo, 8 de julho de 2012

O ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL



UMA DECISÃO SINGULAR



O acórdão n.º 353/2012 do Tribunal Constitucional que declarou inconstitucionais com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2013 as normas do Orçamento de 2012 que suspendiam o pagamento dos subsídios de férias e de Natal aos trabalhadores do sector público e aos reformados tem um “pecado original”. Esse "pecado original" é o acórdão n.º 356/2011 de 21 de Novembro que considerou conforme à Constituição as reduções remuneratórias impostas aos funcionários públicos pelo Governo Sócrates.

Este acórdão, hoje quase esquecido pela hecatombe que se lhe seguiu com o Governo Passos Coelho, considerou que aquelas reduções, apenas incidentes sobre os funcionários públicos, não feriam o princípio da igualdade nem atingiam outros princípios do Estado de Direito por se situarem dentro dos limites do sacrifício suportável e também por não estarem em condições de igualdade com os restantes cidadãos aqueles que recebem de verbas públicas, não consubstanciando, por isso, o sacrifício adicional que lhes foi exigido um tratamento injustificadamente desigual. Além de, dizia-se também, haver certas metas a atingir em consequência de compromissos internacionais assumidos pelo governo que são mais fáceis de alcançar a curto prazo através de meios apenas incidentes sobre a despesa.

Explicando as coisas para que se percebam bem: este acórdão é, como se diz na gíria, um “frete” ao Governo Sócrates. É evidente que o princípio da igualdade foi violado pela norma que permitiu as reduções remuneratórias não sendo juridicamente sustentáveis as conclusões a que nele se chegou. De facto, não faz sentido nenhum valorar juridicamente a eventual eficiência de certos meios para a obtenção da certas metas, consistindo no caso essa eficiência no facto de aquelas verbas se poderem alcançar mais facilmente a partir de um simples corte na despesa, quando se está a tratar de direitos fundamentais e de princípios estruturantes do Estado de Direito. Então um princípio constitucional pode ser postergado pelo facto de por essa via se alcançar mais rapidamente uma meta a que o Governo se comprometeu? E se o meio fosse menos eficiente já não poderia? Não, a questão não se pode colocar assim. A meta a que o governo se comprometeu tem de ser alcançada nos termos do Direito e não contra ele ou à sua margem. E, neste caso, respeitar o Direito era respeitar o princípio da igualdade. E se para se respeitar o princípio da igualdade se tivesse de actuar pelo lado da receita ou da receita e da despesa era essa a via que o governo deveria ter seguido já que não há nenhum princípio constitucional que erija a eficiência em valor superior susceptível de fazer precludir os demais princípios e valores que informam a Constituição. Além de que a eficiência é ou pode ser a mesma actuando apenas de um só lado ou de ambos os lados do orçamento.

Por outro lado, também não faz nenhum sentido, absolutamente nenhum, afirmar que quem recebe por verbas públicas não está em posição de igualdade com os restantes cidadãos se com isso se pretender dizer que há outros deveres ou direitos para além daqueles que constam das leis gerais, do estatuto dos funcionários ou da Constituição. E acaso nos tais "sacrifícios" pelo lado da receita há algum de que os trabalhadores do sector público estejam isentos? Onde fundamentar então a aceitação dessa tendencial desigualdade?

Finalmente, a invocação dos “limites do sacrifício” ou dos “limites do sacrifício suportável” é uma novidade dificilmente compreensível quando se está a falar da relação do cidadão com a sua Pátria. Como estabelecer limites para o sacrifício de cada cidadão se até a própria vida lhe pode ser exigida em determinadas circunstâncias? O que há, por maior que seja a gravidade da situação ou a emergência nacional, é a obrigação de respeitar o princípio da igualdade na distribuição dos sacrifícios por todos. E isso foi o que se não fez na Lei que aprovou o Orçamento de Estado para 2011!

Com estes antecedentes compreende-se melhor o Acórdão n.º 353/2012 ontem tornado público.

Para poder declarar inconstitucionais as normas do Orçamento para 2012 que “cortaram” os subsídios de férias e de Natal com base na violação do princípio da igualdade o Tribunal, para manter um mínimo de coerência, teria, por um lado, que considerar ultrapassados os tais “limites do sacrifício” e, por outro, reconhecer que, embora haja razões para diferenciar quem recebe por dinheiros públicos de quem não recebe, essa diferença de tratamento se for desproporcionada viola o princípio da igualdade.

Portanto, o acórdão, contrariamente ao que se depreende das declarações do Governo continua a abrir a porta ou, no mínimo, a deixá-la entreaberta a um tratamento diferenciado entre os que recebem do sector público e os que recebem do sector privado. E o que se depreende da fundamentação do Tribunal é que não haverá violação do princípio da igualdade se essa diferenciação se situar dentro de limites razoáveis, ou seja, se não for desproporcionada.

É certo que o Tribunal se debruçou sobre a natureza dos “cortes”, isto, é sobre a natureza dos subsídios de férias e de Natal, tendo concluído – e este é um dos pontos positivos do acórdão – que se trata de vencimentos iguais aos outros e não de “bónus” como obscenamente ainda ontem foi afirmado por um reconvertido constitucionalista neoliberal. Mas se este é um ponto positivo do acórdão também não é menos verdade que o Tribunal não leva esta sua constatação às conclusões que se impunham. Ou seja, o Tribunal deveria deixar indicado ou pelo menos indiciado que o respeito pelo princípio da igualdade impõe que a natureza das medidas que no futuro venham a ser tomadas tem de ser idêntica. Independentemente de se poderem situar em planos quantitativos diferentes (facto que o Tribunal admitiu no acórdão 396/2011 e reiterou no actual por estas ou outras palavras) a natureza da medida tem de ser idêntica para o sector público e para o sector privado. Só assim se teria garantido sem margem para dúvidas o princípio de que os subsídios são um direito e não qualquer outra coisa. Recorde-se a latere embora com pertinência que o Primeiro Ministro numa das várias declarações que fez sobre o assunto sublinhou que o Tribunal não havia considerado o direito aos subsídios como um “direito adquirido”

O acórdão responde razoavelmente à argumentação do governo, cretinamente repetida por alguns universitários e propagandistas políticos de nível duvidoso, de que há uma diferença entre o sector público e o privado justificativa da disparidade de tratamento entre ambos, baseada no facto de em média no sector privado se ganhar menos do que no sector público e de o no sector público haver uma garantia de emprego que o sector privado não tem.

Esta argumentação, aduzida pelo governo e repetida pelos seus apoiantes, é juridicamente tão inapropriada que ela levaria imediatamente a que a situação criada aos reformados fosse sem mais considerada inconstitucional. Mas, independentemente desta conclusão que tem passado completamente à margem da discussão, é legítimo perguntar-se: o que é a média para este efeito? Até apetece lembrar a quem fala em média que um sujeito que esteja com a cabeça numa fornalha e com as pernas numa potente câmara frigorífica até estará muito provavelmente com uma temperatura corporal média bem razoável, e todavia…De facto, falar em média para comparar os vencimentos do sector público com os do sector privado não faz qualquer sentido por se tratar de funções que na maior parte dos casos não são comparáveis por mais “outsourcings” que os neoliberais inventem para tentar induzir na administração pública e nas funções do Estado a lógica do capital privado. Por outro lado, a questão da segurança no emprego, além de a sua invocação não passar de uma rematada hipocrisia – é bom não esquecer que a causa desta vaga de despedimentos, que aliás as medidas sub judice agravam drasticamente, está no fundamentalismo neoliberal do Governo – e de hoje estar longe de ser um facto verdadeiro até para os funcionários públicos, quanto mais para os restantes trabalhadores do sector público, não é um assunto possa ser invocado para justificar as diferenças, porque do que se está a tratar é da penalização dos rendimentos que se recebem e não dos que não se recebem! Quem tem criado a insegurança no emprego privado – e também no público, é sempre bom relembrá-lo – é o governo com a sua política económica e com as medidas contrárias à Constituição que tem vindo a tomar. A que propósito é que os trabalhadores do sector público e os reformados teriam de pagar esta insegurança propositadamente prosseguida por quem governa?

Finalmente, o acórdão encerra mais duas fragilidades irremediáveis: a primeira é de não ter analisado autonomamente a questão dos reformados subsumindo a sua situação no princípio da igualdade em condições de completa paridade com os funcionários públicos e outros trabalhadores do sector público atingidos pelos “cortes”, quando a sua situação é radicalmente diferente; e a segunda tem a ver com a delimitação dos efeitos das normas declaradas inconstitucionais. Como é juridicamente possível que uma norma declarada inconstitucional com força obrigatória geral continue a aplicar-se? Pois não é óbvio, apesar da letra da lei, que a delimitação dos efeitos permitida a título excepcional pelo n.º 4 do artigo 234.º da Constituição tem como limite temporal inultrapassável a data da publicação do acórdão? Há na história do TC algum acórdão que tenha ultrapassado aquele limite? Como pode o Tribunal Constitucional decretar a suspensão temporária da Constituição que tem por missão defender? Delimitar os efeitos da inconstitucionalidade até à data da eficácia do Acórdão é algo completamente diferente do alargamento dessas restrições para além daquela data. É juridicamente um absurdo.

Em conclusão: Independentemente da crítica de que sejam passíveis os fundamentos que sustentam a declaração de inconstitucionalidade, facto normal no comentário das decisões jurisprudenciais, a segunda parte da decisão – a que permite a manutenção dos efeitos da norma nula até ao fim de 2012 – é tão desprestigiante que já há quem vaticine que o Tribunal Constitucional dificilmente lhe sobreviverá. Erigindo o princípio da oportunidade em regra de acção, como se de um órgão político se tratasse, e relegando para plano secundário e subalternizando o princípio da legalidade, o Tribunal Constitucional com a sua decisão de ontem parece ter começado a escrever a sua própria certidão de óbito!


3 comentários:

Anónimo disse...

Obscena, com efeito, a teoria de que os 13.º e 14.º meses não são retribuição laboral (exactamente 1/7 do rendimento anual), são meros bónus (brindes?) que a lei dá e a lei tira, livremente...
Valha-nos Deus!

A.M.

Os que estão a fazere tijolo dizem que bossa senhoria benceu.... disse...

356 em 2011

353 acordãos em 2012

acho que estes são acordãos mai apressados

Anónimo disse...

Mas há uma diferença entre trabalhadores do privado e da função pública. Ambos pagam impostos, mas só os função pública recebem dessa parte ou bolo para onde todos os outros pagam ou contribem.
Para além disso e para haver igualdade seria bom que os funcionários públicos pudessem passar a ser despedidos como os privados, sejam porque desrespeitaram uma ordem da chefia ou cumprem deficientemente a função, seja porque ocorreu uma reestruturação, seja porque o “negócio” decresceu, seja porque está inadaptado. Isso da reforma compulsiva a cargo do “pessoal que paga impostos” deve acabar de imediato.Altere-se a Constituição.
O Estado é um gastador, assuma-se isso. Acabe-se, como defendem Miguel Cadilhe e outros, com as dezenas ou centenas de Institutos e Fundações que para pouco servem (quer dizer servem para prestígio e para mostrar que somos tão bons ou melhores que os países ricos).
José Pacheco