sábado, 1 de outubro de 2016

A SITUAÇÃO DO PSOE NO XADREZ POLÍTICO ESPANHOL




 A CRISE POLÍTICA EM ESPANHA E SEUS REFLEXOS NO PSOE


Resultado de imagem para PEDRO SÁNCHEZ

A Espanha vive uma crise profunda: uma crise política, uma crise territorial e uma crise moral. Apenas a economia cresce, mais do que em qualquer outro país da Europa, apesar de o desemprego continuar a registar níveis elevadíssimos. Todavia, não é a crise económica que mais tem preocupado os espanhóis nestes últimos dois anos. Depois de anos muito duros com reflexos directos numa elevadíssima percentagem da população, como o desemprego e a perda de habitação própria, os últimos dois anos têm registado níveis de crescimento invejáveis, daí resultando expectativas favoráveis mesmo para a população que continua a sofrer os efeitos da crise. Este crescimento, o funcionamento regular do sistema financeiro e a emigração em massa de centenas de milhares de jovens quadros têm contribuído para que a crise económica não tenha em Espanha o mesmo peso que continua a ter nos demais países da Europa do sul.

A crise política que actualmente se vive em Espanha, embora não deixe de reflectir as profundas divergência existentes entre os espanhóis sobre a condução da economia, tem as suas raízes mais profundas na grave crise moral em que a classe política espanhola mergulhou o país. A corrupção reina em Espanha. Reina com Rajoy como reinou com Gonzalez e continua a reinar na maior parte das autonomias onde governa o PP e o PSOE. Face a esta degradação da classe política e dos seus corruptores, a Espanha fragilizou-se internamente e deixou de ter condições para lutar politicamente contra as forças centrífugas que ameaçam a sua integridade territorial consolidada a duras penas há cerca de quatrocentos anos.  

Curiosamente, a questão europeia tão presente nos países do sul da Europa e mesmo em largas camadas da população de outras regiões da Europa não tem em Espanha a mesma importância que tem nestes países, apesar de ela também condicionar fortemente o seu desenvolvimento económico. Creio que não tem, porque a Espanha e os espanhóis continuam a viver com o Carlos V dentro da cabeça. A Espanha nunca perdeu o seu espírito imperial, e mesmo quando está reduzida ao que hoje é continua a supor que é muito mais importante do que aquilo que realmente é. Daí que os constrangimentos impostos por Bruxelas não sejam como tal interiorizados, mas antes como ordens que eles próprios dão aos demais. Ou seja, a Espanha sempre se vê como um par, nunca como um subalterno. Até com Hitler foi assim…

Voltando à crise espanhola. Essa profunda crise moral que acima referimos, as profundas divergências sobre a condução da economia e também a crise territorial, entretanto agravada, deram lugar num contexto de crise económico-financeira generalizado ao aparecimento de dois novos partidos nacionais que vieram “destabilizar o centrão” saído da transição. É certo que o PP, por razões estratégicas bem compreendidas pelo eleitorado de direita, não surgiu imediatamente após a transição como partido de governo, mas com a rápida desagregação da UCD, acabou por se fixar como partido de poder juntamente com o PSOE. Acontece que esses dois partidos emergentes saídos da crise, um à direita (para regenerar o PP) e outro à esquerda (para fazer o que o PSOE há muito deixou de fazer), rapidamente mobilizaram cerca de 10 milhões de eleitores, um pouco menos que metade dos eleitores votantes, e, apesar das fortes distorções do sistema eleitoral espanhol, elegeram um número de deputados suficiente para inviabilizar  a formação de qualquer governo que não passasse por eles, a menos que os dois partidos mais votados, PP e PSOE, se coligassem ostensiva ou tacitamente.

E é aqui que começam as grandes dificuldades do PSOE. Vivendo na ressaca da profunda crise da social-democracia europeia, pela sua entusiástica colaboração nas políticas de direita, de cariz neoliberal, o PSOE teve nas eleições de Dezembro do ano passado de lutar para que o partido de esquerda emergente – PODEMOS -  o não relegasse para um desonroso terceiro lugar. Embora pela margem mínima, alcançou esse objectivo , que lhe permitia colocar-se em posição de se poder apresentar como alternativa a Rajoy caso o PP não conseguisse reunir nas Cortes os votos suficientes para viabilizar a investidura.

O Secretário-Geral do PSOE, Pedro Sánchez, deu indicações suficientes de que estaria disposto a formar um governo com base numa ampla coligação que integrasse as forças de “cambio”. Acontece que, mesmo antes de iniciar diligências necessárias a esse fim, os “barões do PSOE” conseguiram impor-lhe nos órgãos do partido limitações que na prática inviabilizavam a formação de um governo alternativo, todas elas relacionadas com o problema territorial que serviu como excelente pretexto para impedir que fosse posta em prática uma política de esquerda.

Limitado às alianças à direita (Ciudadanos), Sánchez não pôde contar, como seria de esperar, com a concordância de PODEMOS, nem sequer com a sua abstenção. Se é certo que o PSOE não poderia contar com a colaboração de Iglesias, que como terceiro mais votado e com quase tantos deputados como o PSOE esperava muito mais do que uma simples abstenção, também é verdade que a imaturidade política deste novo partido de esquerda e algumas incertezas programáticas não ajudaram à criação de um clima de confiança que desse força a Sanchez para lutar convictamente dentro do seu partido por soluções mais ousadas. 

O acordo que Sánchez fez com Ciudadanos era muito semelhante, na concepção, ao que permitiu a investidura do actual Governo português. Sánchez governaria, comprometendo-se a pôr em prática as medidas acordadas, e Ciudadanos apoiá-lo-ia no Parlamento. Mas a ideia não tinha condições para vingar se não contasse, no mínimo, com a abstenção de Podemos. E não contou, como, de resto, seria previsível.

A inviabilizada a investidura do Sánchez, e consequentemente do Governo PSOE, foram convocadas novas eleições. Nestas eleições, de Junho passado, o PP continuou a ser o partido mais votado, tendo inclusive aumentado o número de deputados, o PSOE conseguiu aguentar-se como segundo partido, à frente de Podemos, mas voltou a perder votos e deputados, ganhos pelo Podemos, que, apesar desta pequena vantagem relativamente às eleições de Dezembro/2015, não pôde deixar de interpretar os resultados eleitorais como decepcionantes já que todas as sondagens lhe asseguravam o segundo lugar com um considerável acréscimo de votos e de deputados, entre outras razões porque a aliança entretanto alcançada com a Izquierda Unida lhe garantia à partida, ou parecia garantir, mais de um milhão de novos votos, o que na realidade não aconteceu . Ciudadanos manteve o quarto lugar, perdeu alguns, poucos, deputados, todavia os suficientes para que os seus votos unidos ao do PP não garantissem a maioria absoluta.

Perante este quadro, Ciudadanos fez várias exigências a Rajoy para entrar num acordo, todas elas, ou a maior parte delas, relacionadas com a corrupção. Um acordo que não garantia a investidura de Rajoy mas que lhe permitia pressionar, no mínimo, a abstenção do PSOE. Só que as pressões não surtiram o efeito esperado. Obtido o acordo com Ciudadanos, Rajoy procurou chegar a acordo com Sánchez, quer mediante a negociação de uma grande coligação, quer, mais modestamente, tentando assegurar a sua abstenção.   

Tal como no “sermão da montanha”, Sánchez, apesar das múltiplas promessas que lhe eram feitas e dos lugares que lhe ofereciam, apesar também da enormíssima pressão mediática para que fizesse uma coligação ou se abstivesse para permitir a entrada em funções do “ governo de Espanha”, Sánchez não cedeu. Alinhando ao lado da restante oposição(nacionalistas de direita e de esquerda, independentistas e restante esquerda), votou contra e Rajoy não passou. Rajoy não foi capaz de juntar aos seus votos e aos dos Ciudadanos os poucos que lhe faltavam para formar governo.

Enquanto decorreram as negociações e as conversas com vista à formação do novo governo ninguém nos órgãos directivos do PSOE advogou o voto a favor de Rajoy, nem mesmo a abstenção. Fora dos órgãos do partido já o mesmo se não passou. Em artigos de opinião, em declarações em off multiplicavam-se as vozes, todas elas oriundas do mesmo sector, para que Sánchez se abstivesse. Sánchez, sempre muito próximo do que entende ser a vontade dos militantes, invocava a posição do partido para sacudir a pressão e deixar os seus opositores internos em consonância com as vozes da direita. Até que Felipe Gonzalez que, apesar dos negócios a que agora se dedica e da traficância de influências que ostensivamente pratica, parece ainda ter tempo para continuar a dirigir na sombra a direita do PSOE, saltou a terreiro e com a brutalidade de linguagem que se lhe reconhece “exigiu” que o PSOE se abstivesse em nova tentativa de investidura de Rajoy. No que logo foi seguido pela “seita de Andaluzia” e pelos “barões” de Castilla-La-Mancha, da Extremadura e de Aragão.

A partir desse momento, que aliás coincidiu com a declaração de Sánchez de que era preciso dotar a Espanha com um Governo composto pelas forças “del cambio”, a guerra surda que a direita do PSOE, aparentemente comandada por Suzana Diaz (Andaluzia), mas na realidade telecomandada por Felipe Gonzalez, já vinha fazendo a Sánchez subiu de tom e o secretário geral do PSOE passou a ser um alvo a abater.

Só que as coisas não lhes correram bem. Sánchez anunciou a convocação do Comité Federal para o próximo este sábado com vista à marcação das directas para a eleição do secretário geral e do subsequente Congresso para que o partido passasse doravante, em matéria de formação de governo, a falar a uma só voz.

Postos perante esta situação, os “barões” do PSOE jogaram abertamente no “golpe” para afastar Sánchez. Demitiram-se em bloco da “Ejecutiva” do partido, na qual contavam com 17 lugares, composta estatutariamente por 38 membros, embora actualmente apenas com 35, de modo a deixá-la sem quórum, ou seja, apenas com os 18 membros que apoiam Sánchez, para com base nesse expediente defenderem a tese de que o SG tem obrigatoriamente que se demitir, sendo a direcção do partido entregue a uma “gestora”, uma espécie de comissão administrativa, encarregada de dirigir o partido até a realização de novo congresso e a consequente escolha do Secretário geral. O objectivo era permitirem, nesse entretanto, a formação do governo de Rajoy e a realização do Congresso num tempo em que já houvesse um governo em funções, dificultando assim a reeleição de Sánchez que apareceria perante o Congresso como grande derrotado, quer internamente quer no confronto com as demais forças políticas.

Acontece que os estatutos do PSOE não autorizam a interpretação dos perpetradores do “golpe”. A “Ejecutiva” manter-se-á em funções, Sánchez também, o Comité Federal reunir-se-á hoje e logo se verá em que sentido os seus membros vão decidir.

Uma coisa, porém, é certa: se o Comité Federal decidir pela abstenção, Sánchez demitir-se-á. Mas ainda e cedo para fazer prognósticos….




sexta-feira, 12 de agosto de 2016

quarta-feira, 27 de julho de 2016

CAVACO, AS SANÇÕES E OS PORTA-VOZES CAVAQUISTAS



O QUE REALMENTE SE PASSOU

Este post foi escrito no dia 17 de Julho. Depois de escrito achei que não valia a pena publicá-lo pelo muito que sobre o assunto já se tinha falado. Oito dias depois, como a questão das sanções mantém toda a actualidade, acho que se justifica a sua publicação. E então aqui vai ele.

Um ou dois dias depois da última reunião do Conselho de Estado (11 de Julho de 2016) foi notícia em quase todos os jornais a posição assumida por Cavaco Silva sobre as sanções que a União Europeia pretende impor a Portugal por incumprimento das metas do défice. Segundo as notícias veiculadas por diversos órgãos de informação, Cavaco teria sido o único conselheiro a mostrar compreensão pela posição da União Europeia, apesar de o comunicado do Conselho, lacónico e pouco esclarecedor, como quase sempre, não dar nenhuma pista nem sobre o que realmente se passou nem sobre a quebra de unanimidade por parte de algum conselheiro.

Esta notícia originada, evidentemente, numa fuga de informação, iria pôr direita em sobressalto e obrigá-la a desmentir, por meias ou inteiras palavras, a posição de Cavaco.

Tendo-se tornado evidente que a direita tem sobre esta matéria uma atitude dúplice, realmente quer as sanções, mas está impossibilitada de o defender publicamente, o alegado comportamento de Cavaco, estribado no seu sincero ultra-reaccionarismo, causar-lhe-ia uma incontornável incomodidade política da qual só teria que se afastar, deixando-o formalmente isolado. Ou então, para manter a solidariedade com o ex-Presidente da República, o caminho mais fácil de trilhar seria dar como falsas e sem fundamento as notícias veiculadas.

Esta segunda via só poderia ser seguida com algum êxito por aqueles que, tendo participado na reunião do Conselho de Estado, pudessem, pelo simples facto da sua presença nessa reunião, atestar a inveracidade das declarações atribuídas a Cavaco.

Só que para seguir este caminho havia uma dificuldade difícil de contornar: a natureza secreta das reuniões do Conselho de Estado. Para aparecer à luz do público a desmentir com nome e com cara as notícias postas a circular seria preciso violar o segredo de Estado.

Este segredo, como qualquer outro segredo de Estado, não é um segredo cujo cumprimento ou incumprimento esteja na disponibilidade do Presidente da República. Não é o Presidente da República que determina o que é e o que não é segredo de Estado, da mesma forma que, por maioria de razão, também não o Presidente da República que está autorizado a dizer quem tem e quem não tem que cumprir o segredo de Estado. O segredo de Estado é imposto por lei e somente a lei dirá em que termos pode esse segredo ser legitimamente afastado.

Ora, o Regimento do Conselho de Estado é claro a este respeito: “As atas do Conselho de Estado não podem ser consultadas nem divulgadas, durante um período de 30 anos a contar do final do mandato presidencial em que se realizaram as reuniões a que respeitam”. Excepcionalmente, a consulta e a divulgação das actas pode ser autorizada no todo ou em parte por decisão do Presidente da República.

Por outro lado, “Os membros do Conselho de Estado e o secretário têm o dever de sigilo quanto ao objeto e conteúdo das reuniões e quanto às deliberações tomadas e pareceres emitidos”, salvo nos casos em que a divulgação dos pareceres está expressamente prevista na lei.

Em caso alguma a lei diz ou poderia dizer que o Presidente da República pode autorizar o Conselheiro X ou o Conselheiro Y a divulgar o que se passou no Conselho de Estado. Somente por manifesto atentado à inteligência do espectador, do leitor ou do ouvinte se pode pretender fazer passar a ideia que a dispensa do dever de sigilo pode ser casuisticamente concedida pelo Presidente da República a este ou aquele conselheiro sobre o assunto A ou B. Francamente, não é preciso ser jurista para compreender isto. E muito menos é compreensível que um jurista o afirme!

Pois bem, não obstante esta evidência, o caminho que tanto Lobo Xavier como Marques Mendes encontraram para poderem refutar as notícias sobre a posição de Cavaco foi a de pedirem ao Presidente da República que os dispensasse do cumprimento daquela obrigação, com base no argumento de que, sendo eles comentadores políticos de televisão, curiosamente da mesma estação, seria natural que o “pivot” dos programas em que participam, os confrontasse sobre a “posição” de Cavaco. Posto perante este “estado de necessidade”, Marcelo tê-los-á autorizado a desmentir a notícia.

Este episódio é bem elucidativo, a dois títulos - qual deles o mais importante - do modo de funcionar da direita: o primeiro, por nos esclarecer eloquentemente como a direita encara a lei e as funções públicas; e o segundo, por revelar, igualmente com muita nitidez, a incomodidade e a perturbação que as notícias sobre a posição de Cavaco causaram à duplicidade com que a direita tem agido neste domínio.

É claro que Cavaco por muito reacionário que seja e por muito que queira causar dano ao Governo de António Costa (e quer) tem a experiência política suficiente para se pôr a coberto das afirmações mais óbvias. Cavaco não imitou, certamente, Maria Luís Albuquerque a qual, não obstante ter o condão de mentir como quem respira, foi, por uma vez, sincera e verdadeira quando a propósito do mesmo tema não teve dúvidas em afirmar categoricamente que ”Comigo como Ministra não haveria sanções”. Ou seja, não teve dúvidas em deixar claro que as sanções, a acontecerem, teriam de ser entendidas como uma punição política ao Governo de Costa.

Cavaco seguramente irmanado no mesmo desejo, mas com outra experiência política, não terá afirmado, preto no branco, que as sanções eram devidas. O que Cavaco realmente disse, reproduziu-o com bastante fidelidade Raul Vaz, no programa “Contraditório” do dia 15 de Julho, na Antena 1.

Como a Raul Vaz lhe falta em inteligência e em experiência política o que lhe sobeja em reaccionarice e em obediência partidária, também ele não teve dúvidas, supondo que estava a defender Cavaco, em reproduzir com suficiente fidelidade o que Cavaco realmente disse no Conselho de Estado.

E o que Cavaco realmente disse no CE foi que a falta de confiança nas políticas do Governo afastava os investidores, que sem investimento nenhuma recuperação económica seria sustentável, que a competitividade da economia portuguesa (leia-se salários) também não era atraente, que o relançamento da procura interna desequilibrava as contas externas e que sem a continuidade das políticas de ajustamento agravar-se-ia necessariamente o défice orçamental e o défice externo. Insistiu fortemente no cumprimento das regras e dos “compromissos” internacionais e recusou-se a aceitar, sem os citar, que comportamentos externos (como as ameaçadoras palavras de Schäuble, as fugas de informação do BCE, as intervenções do holandês do Eurogrupo, as declarações do FMI,, enfim, de todos os que têm feito o possível por fazer com que os juros voltem a subir para Portugal) tivessem alguma influência no desenrolar dos acontecimentos. Se as coisas correrem mal, como ele acredita que vão correr, a responsabilidade seria toda de quem internamente conduz a política económico-financeira do país.

Ou seja, Cavaco traçou um quadro negro da actual experiência política em curso, reproduzindo quase ipsis verbis o que internacionalmente tem sido dito pelos que estão apostados no derrube do Governo, deixando, obviamente, subentendido que as sanções pela sua natureza preventiva poderiam ser um “bem” para Portugal.

Portanto, fazendo fé nas palavras de Raul Vaz, que manifestamente estava incumbido de reproduzir com fidelidade a posição de Cavaco, bem se pode afirmar que das palavras do ex-Presidente da República resulta indirectamente a defesa das sanções. Aliás, se assim não fosse, Cavaco já teria posto termo a esta polémica, afirmando solenemente que é contra as sanções. E para o fazer não precisava de violar qualquer regra do Conselho de Estado. Bastava-lhe emitir a sua posição sobre o assunto se essa fosse discordante da posição que a UE se prepara, prepotentemente, para tomar.

Cavaco não o fez nem o fará por coerência política. Cavaco defende tão convictamente o derrube do Governo que foi obrigado a empossar, as políticas de Schäuble e as política da Troika que se estaria a trair a si próprio se viesse agora demarcar-se da consequência lógica e necessária do desalinhamento dessas políticas.

Numa palavra: a conspiração da União Europeia contra o Governo português tem aliados internos. Sempre assim foi na História de Portugal. Não obstante…Portugal existe e vai continua a existir. E eles, os aliados do inimigo externo, estão devidamente catalogados na História de Portugal….

segunda-feira, 27 de junho de 2016

BREXIT:CONSEQUÊNCIAS




PARA ONDE CAMINHA A UE?



As consequências da saída do Reino Unido da União Europeia são imprevisíveis no mesmo sentido em que o futuro o é. Todavia, percebe-se pelas múltiplas reacções dos principais responsáveis da União Europeia quais seria as consequências que eles gostariam que se verificassem e pelas quais estão dispostos a lutar.

Têm-se dito que os “burocratas de Bruxelas” têm saído incólumes dos múltiplos calafrios por que a União Europeia tem passado. De acontecimentos graves que estão na iminência de acontecer mas que acabam por não se verificar. Este comportamento, se bem analisarmos o que agora se está a passar, não vale apenas para as angústias que antecederam o que acabou por não acontecer. Ele continuará a ser o mesmo, manter-se- á inalterável, mesmo quando o terramoto se desencadeia à vista de todos.

É isso o que está a acontecer com o resultado do referendo britânico. Entre as declarações raivosas dos que culpam os ingleses por tudo o que aconteceu e deixam pairar a ameaça de retaliação e a linguagem dúplice (como sempre) da diplomacia germânica dando falsamente a entender que é preciso respeitar e compreender o voto britânico, a linha que está subjacente a uns e a outros, e que acabará por impor-se se não for derrotada pela luta dos povos europeus, é a de que é preciso tratar a situação decorrente do voto britânico com toda a normalidade, como se nada de importante tivesse acontecido.

À direcção política da União Europeia, nomeadamente ao seu poder hegemónico, não lhe interessa aprofundar, nem sequer ao de leve, as causas do voto britânico. É preferível deixar essa tarefa à comunicação social de serviço que se encarregará de fazer passar a mensagem nos quatro cantos da Europa e do mundo que a decisão britânica assenta em pressupostos xenófobos, se não mesmo racistas, no bom estilo de uma eficiente divisão internacional do trabalho.

Ou seja, a direcção política fará, como já está fazendo, depois de uma ou outra intervenção ressabiada de broncos como Claude Juncker ou de políticos na reforma, agora especializados na traficância, como Felipe Gonzalez, um discurso tranquilo tendente a deixar consolidar a ideia de que nada de muito importante aconteceu, algo que não interferirá no futuro da Europa, encarregando a dita comunicação social da tarefa de fazer o trabalho sujo. Ou seja, imputando aos britânicos, ao seu egoísmo nacionalista, a causa do que aconteceu.

Claro que a prossecução desta linha política, que tende a tentar resolver a “questão britânica” o mais rapidamente possível, tem em vista deixar tudo exactamente como agora está. E enganar-se-á quem pensar que vai ser no seio do Conselho Europeu que vozes dissonantes se vão erguer no sentido de uma reforma das políticas que mais têm afastados os cidadãos da “Europa”. Essas vozes, se efectivamente existirem, estão condenadas ao mais completo fracasso, já que elas não interessam aos poderes hegemónicos. Serão vozes marginais, de países sem peso político no seio da União, logo abafadas pela linguagem burocrática ou pela passagem da discussão ao tema seguinte, deixando o que antes foi dito como um desabafo de ocasião.

A luta contra a União Europeia, contra a política da União Europeia, tem de ser feita fora das instituições comunitárias, no plano nacional, com as características próprias de cada país e as queixas específicas de cada um, de modo a ir-se ao encontro do que  é hoje o sentimento dos cidadãos relativamente à Europa.

Se essa luta não for feita neste plano, se ingenuamente se continuar a acreditar que é em Bruxelas que os nossos problemas vão ser resolvidos e quem diz os nossos diz os de Espanha, da França, da Grécia ou de qualquer outro país, a linha política que tende a fazer de conta que nada de importante aconteceu não só acabará por impor-se, como vai contribuir para reforçar ainda mais o poder que hoje comanda os destinos da União Europeia.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

BREXIT


 O QUE IMPORTA TER EM CONTA


 
 

Também acho que não vale a pena desenvolver grandes análises. A argumentação que antecedeu a votação do referendo britânico fala por si.

Creio, todavia, que a questão de fundo que determinou o voto na Inglaterra (ou seja, Reino Unido) foi a democracia. O nosso voto na Europa vale ou não vale alguma coisa? Não vou perder tempo a responder, invoco apenas o palavreado mil vezes repetido do sr. Jeroen Dijsselbloem, presidente do Eurogrupo, um agrupamento que nem sequer existe juridicamente, para se perceber o que vale o nosso voto.

Dir-se-á: essas queixas temo-las nós e outros como nós; não os ingleses. Sim, é verdade. Mas também é verdade que os ingleses têm outras queixas. E por que razão é que as nossas queixas hão-de ser mais importantes que as queixas dos ingleses?

O que os britânicos querem ou não fazer com a democracia é um problema deles. Independentemente de estarmos de acordo ou não. Essa ideia de que temos de ser nós a dizer o que os outros devem fazer com a democracia é uma ideia relativamente recente, posta em prática por Georges Bush, em cumprimento da cartilha neoconservadora. Mas será preciso voltar a enunciar os mandamentos da filosofia neoconservadora para percebermos até que ponto ela se entranhou numa certa esquerda (e pour cause…atenção às origens)? I

Este é o pressuposto objectivo. Que como todos os pressupostos tem antecedentes. Graves e consolidados antecedentes que fazem os povos desacreditar do actual projecto europeu. De um projecto que tendo sido apresentado como um projecto solidário e de cooperação recíproca se transformou num projecto de domínio hegemónico dos mais fortes contra os mais fracos.

Esta consolidação gerou consequências de muita ordem, de espécie diversa, algumas perversas. Como os fenómenos sociais antes de se produzirem não se podem levar ao laboratório para saber como se vão produzir, temos que partir do que acontece quando não somos capazes de prever com a devida antecedência o que poderá vir a acontecer.

E é nesta fase que estamos. E diz-me o conhecimento político que tenho das coisas que a presença da Inglaterra na União Europeia era por todos (quase todos) os que dela fazem parte e até dos que não fazem – uns por umas razões, outros por outas – a garantia de que ela nunca se transformaria numa Europa germânica. Garantia que nenhum outro país da União Europeia poderá dar. É certo que depois de alcançado o mercado único – construído e totalmente orientado na sua construção pela Inglaterra – os britânicos se foram gradualmente distanciando do projecto europeu nas suas demais vertentes. Isto lhes bastava e por aqui se ficavam, talvez por terem percebido mais cedo que os demais que o famoso “aprofundamento” dificilmente deixaria de se transformar num proljecto de domínio, logo de potenciais conflitos. Nunca quiseram saber da moeda única, principalmente depois da experiência do SME, nem nunca morreram de amores por uma circulação indiscriminada de pessoas.

Se esta sempre foi a ideia de Europa que os ingleses perfilharam, pode dizer-se que ela se consolidou ainda mais depois da reunificação alemã, isto é, depois de não terem conseguido evitar a reunificação alemã.

E daqui parto para a derradeira consequência: como não acredito numa “Europa” sem os ingleses, como não acredito numa Europa entregue aos alemães, a Europa vai-se desmembrar a pouco e pouco, ficando o projecto que agora existe como um projecto falhado e falido. Isto tem consequências más, inevitavelmente, mas também tem consequências boas: vai pôr-se termo a um projecto irreformável que estava conduzindo países para a degradante situação de protectorados e largas, muito largas, camadas da população dos países europeus para a proletarização e precarização sem direitos nem perspectivas em consequência de uma cada vez mais desigual distribuição dos rendimentos entre o capital e o trabalho.

O fundamentalismo democrático esgrimido por uma certa esquerda contra o BREXIT, além de ser de matriz neoconservadora, goza da companhia da direita plutocrática “defensora da Europa e dos direitos sociais” , como ontem à noite na “Quadratura do Círculo”,  Lobo Xavier se encarregou de ilustrar, mostrando-se muito preocupado com a sorte dos trabalhadores ingleses que iriam (na altura ainda não se acreditava na vitória do “leave”) ficar sem a protecção da Europa.

Para terminar, Augusto Santos Silva está a ser entrevistado na RTP sobre este tema. Deveria pura e simplesmente reproduzir as palavras do Primeiro Ministro e não louvar-se nas do sr. Juncker, um imbecil.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

GOLPE NO BRASIL CONSUMADO




E AGORA, COMO VAI SER?

Tal como se esperava o Senado brasileiro aprovou por maioria confortável a admissibilidade do pedido de destituição da Presidente Dilma Rousseff. Esta deliberação tem como consequência imediata a suspensão da Presidente eleita por 180 dias e a sua substituição no exercício do cargo pelo Vice-Presidente. Se no prazo de 180 dias o processo não for julgado no Senado, a Presidente retomará as suas funções, aguardando no exercício das mesmas a deliberação do Senado. A deliberação de Senado para afastar a Presidente tem de ser tomada por maioria qualificada de dois terços, ou seja, por 54 votos. Considerando que a deliberação de admissibilidade do processo foi aprovada por 55 votos não será necessário ser dotado de grandes dotes de adivinho para antecipar que a Presidente será destituída.

Quem assistiu à longa maratona do processo de admissibilidade desde logo percebeu que o Senado estava desde o primeiro minuto da reunião interessado em manter as suas distâncias relativamente à Câmara dos Deputados em tudo quanto respeita ao contexto da discussão e votação do processo de admissibilidade, dando a imagem de um clima mais racional do que aquele que votou na câmara baixa o início do processo.

A coreografia mudou tanto quanto possível, mas essência do processo não se alterou. De facto, por mais que o Senado fizesse questão de dar a ideia de que estava seriamente a discutir um problema grave, sublinhando muitos senadores no início das suas intervenções com um ar fingidamente compungido que não contavam ter sido eleitos para desempenhar aquele papel, acrescentando outros que preferiam não estar ali naquele momento, a verdade é que, não obstante esse ar de pretensa seriedade, nenhum dos senadores que votou a admissibilidade conseguiu apagar o facto de com esse voto estar a ser cúmplice de um processo iniciado com base numa chantagem política de um corrupto que, para tentar salvar a pele, conseguiu negociar a admissibilidade de um processo de “impeachment” a troco de três votos favoráveis às suas pretensões na Comissão de Ética!

Ou seja, é tão moralmente condenável a conduta dos senadores quanto a execrável actuação do, para já suspenso, Eduardo Cunha.

Em segundo lugar, esse ar de pretensa seriedade nunca foi ao ponto de levar os senadores que votaram “sim” a discutir a verdadeira essência do processo, ou seja, aquela que segundo a Constituição pode fundamentar um processo de destituição. Essa questão – os fundamentos jurídicos da destituição de Dilma – passou ao lado de quase todas as intervenções, que preferiram trilhar o caminho mais simples e seguro de sublinhar a profunda divergência política que (agora) os separa do governo do PT. Ou seja, sem se darem verdadeiramente conta do papel que estavam a desempenhar, os senadores estavam com as suas intervenções a cohonestar a tese de que substituindo-se ao voto popular poderiam desde já assegurar o resultado que daqui a dois anos poderia ser incerto.

De facto, não há no mundo nenhuma Constituição democrática que consagre como fundamento do processo de destituição de um presidente eleito pelo sufrágio universal a divergência política, seja ela superficial ou profunda.

Em terceiro lugar, nenhum senador que votou favoravelmente a admissibilidade do processo de destituição da Presidente Dilma Rousseff ousou sequer iniciar um começo de resposta à brilhante argumentação produzida pelo Advogado Geral da União, José Eduardo Cardozo, que demonstrou com factos inquestionáveis que os fundamentos (“pedaladas fiscais” e decretos presidenciais) em que se baseou a decisão do Senado eram comuns a todos os que exerceram a presidência da república na vigência da Constituição de 1987 e, além disso, admitidos pelo Tribunal de Contas da União. A partir do momento em que pela primeira vez, no mandato de Dilma, a juridicidade desses actos foi questionada pelo Tribunal de Contas, eles deixaram de ser praticados, o que obviamente desmonta a tese do dolo como elemento indispensável à admissibilidade do processo e posterior condenação.

Mas de nada adianta invocar argumentos jurídicos relativamente a um processo que, assentando pretensamente em fundamentos jurídicos, é na essência político, como as intervenções dos senadores deixam perceber. O poder legislativo entendeu que estavam criadas as condições políticas para substituir o principal detentor do poder executivo e foi isso que fez.

O que a seguir vai acontecer dependerá muito do grau de satisfação e compatibilização dos múltiplos interesses que estão na base desta complicada aliança. Interesses políticos pessoais (são muitos os deputados e senadores indiciados por actos de corrupção) e interesses de grupo, isto é, de classe e dos múltiplos estratos sociais que com o dealbar da crise económica pretendem garantir-se contra a perda de privilégios. Vai ser certamente difícil dar satisfação a todos estes interesses, mas já será mais fácil a políticos hábeis e muito experimentados na demagogia política no curto espaço de 180 dias acalentar a ideia de que está em curso uma verdadeira viragem política, consolidando assim a transferência de poder que o processo de destituição proporciona
Certamente que Dilma não tem nada a perder se continuar a lutar, já que nada de pior do que lhe está acontecendo lhe poderá acontecer. Todavia, é ainda cedo para perceber como vai o PT actuar nos próximos 180 dias. Sendo certo que se oporá a qualquer política do novo Governo que tenda a pôr em causa as suas realizações mais emblemáticas e sendo certo também que apoiará Dilma no "julgamento" do Senado, o mais provável é que Dilma vá sendo lembrada apenas como vítima sem contudo continuar a desempenhar um papel de relevo na estratégia do partido.

Certamente que o PT foi vítima do seu próprio percurso e do modo como interpretou o exercício do poder, só isso podendo explicar a debandada dos seus múltiplos aliados que, guiados pelo oportunismo político, interpretaram algumas manifestações da sociedade brasileira como o fim de um processo, tentando pôr-se imediatamente a salvo das suas mais óbvias consequências mediante a busca de alianças com os adversários da véspera, imprescindíveis para estes no curto prazo.    

Não obstante o quadro sociológico que possibilitou o golpe, contrariamente ao que pensa a direita e os nossos comentadores bem pensantes que fingem não ser de direita, o processo de destituição de Dilma Rousseff terá profundas repercussões no Brasil e nos processos democráticos da América Latina, pois ninguém à esquerda deixará de reflectir e tirar as devidas consequências desta nova modalidade de golpe de Estado.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

SOBRE O ESTADO ISLÂMICO

TERRORISMO, REFUGIADOS E GUERRA SÍRIA

Sobre as matérias acima referidas, vale a pena ler o artigo de Augusto Zamora R. , ontem publicado em El Mundo

quarta-feira, 20 de abril de 2016

A TRAGÉDIA BRASILEIRA

UM ESPECTÁCULO DEGRADANTE



O espectáculo a que no domingo passado assistimos durante várias horas, em directo, pela televisão, a partir de Brasília, da Câmara dos Deputados da República Federativa do Brasil, foi um dos espectáculos políticos mais degradantes que nos foi dado presenciar em toda a vida.



Decidia-se a viabilização do impeachment, ou seja, da destituição da Presidente do Brasil com base em crime de responsabilidade previsto no art.º 85.º da Constituição Federal, tramitado nos termos do art.86.º do mesmo diploma e demais legislação ordinária aplicável.



A Presidente Dilma Rousseff é acusada de ter praticado vários crimes de responsabilidade, a seguir sumariamente identificados: a)“pedaladas fiscais”, que no jargão brasileiro significa contracção de empréstimos para suprir défices orçamentais; b) promulgação e publicação de alguns decretos destinados à concessão de créditos suplementares ao Orçamento de 2014 sem autorização do Congresso; c) negligência na fiscalização da Petrobras; d) maquiagem das contas da previdência; e) veto ao fim do sigilo das operações do Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social (BNDES); f) corte, em 2015, no gasto público de 8 600 milhões de reais, sem autorização do Congresso; e mais uns tantos crimes eleitorais (financiamento de campanhas), estes da jurisdição do Supremo Tribunal Eleitoral.



A instrução deste processo pressupõe a prévia aceitação pelo Presidente da Câmara dos Deputados das acusações que qualquer cidadão pode formular nos termos da Constituição. Por ano, são às dezenas as acusações que chegam à Câmara apresentadas por alguns dos 200 milhões de habitantes do Brasil. Em todos os mandatos, depois de Color de Mello (primeiro impeachment na vigência da Constituição de 1988), houve pedidos de impeachment que nunca foram aceites.



O impeachment para ser instruído precisa de ser aceite pelo Presidente da Câmara dos Deputados, que actualmente está sob a presidência de Eduardo Cunha (PMDB), até há pouco pertencente à base governista. Tendo em carteira vários pedidos de impeachment contra a Presidente e havendo também contra si, pendente na Câmara, um pedido de cassação de mandato por corrupção, com provas aparentemente indiscutíveis, Cunha – o típico político brasileiro – jogou com as duas situações: se o PT se comprometesse a votar contra a investigação destinada a decidir sobre a cassação do seu mandato, ele não aceitaria o pedido de impeachment; se não se comprometesse, o pedido de impeachment seria aceite. Assim, tal e qual! Como o PT não se comprometeu, Cunha fez “negócio” com o PSDB: aceitaria os pedidos de impeachment contra a Presidente, se o PSDB e aliados votassem contra a instrução do seu processo de cassação. O negócio fez-se e o impeachment foi admitido.



Feito o “negócio”, começou a via sacra da Presidente. Cunha aceitou os pedidos e fez votar, contra a praxe constitucional em vigor, a composição da comissão instrutora à revelia das lideranças partidárias. Entretanto, a maioria da comunicação social, em guerra aberta contra o PT, encarregou-se de criar na opinião pública um clima muito desfavorável à Presidente; por outro lado, as entidades que conduziam a investigação de alguns processos de corrupção, como a famosa Operação Lava Jacto, nos quais está implicada grande parte da classe política brasileira, com a colaboração de magistrados judiciais filiados no PSDB ou simplesmente movidos por uma militância política invejável contra o governo, foram passando selectivamente para a comunicação social partes comprometedores dessas investigações para assim acentuar junto da opinião pública a ideia de que a corrupção no Brasil era no essencial comandada pelo PT. Embora nada houvesse contra a Presidente neste estrito domínio da corrupção, os sucessivos “vazamentos” de peças processuais criaram o tal clima propício a fazer prosperar qualquer acusação. Não havia corrupção da Presidente, mas havia os tais “crimes” acima referidos. E foi com eles que se fez o arremedo de instrução que domingo passado a Câmara decidiu viabilizar.



A viabilização do processo carece de aprovação pela Câmara dos Deputados por dois terços dos deputados e tem em vista o seu envio para o Senado onde será julgado. Este, por seu turno, terá de decidir por maioria simples (41 votos) se aceita ou não o processo; se não aceitar, nada acontecerá; se aceitar, a Presidente é imediatamente suspensa por 180 dias, prazo durante o qual o cargo será exercido pelo Vice-Presidente e no qual o processo terá de ser julgado pelo Senado; se o julgamento não ocorrer dentro desse prazo, a Presidente retoma as suas funções aguardando no desempenho destas o julgamento do Senado. A decisão condenatória do Senado, que implica a destituição da Presidente, tem de ser aprovada por dois terços (54 votos) para ter esta consequência.



Como é óbvio, a instrução de um processo desta natureza por um órgão político, só poderá ser uma instrução orientada por critérios políticos. O que no presente processo assume foros de profunda rejeição e repugnância por uma mentalidade criada e formada à luz dos padrões europeus é, por um lado, a vulgaridade do pretexto que serve de base ao impeachment e, por outro, a volatilidade dos votantes, sendo que a maioria destes é constituída pelos aliados de véspera.



A destituição de um Presidente da República, eleito directamente pelo voto popular, é um acto de extrema gravidade na medida em que opera a substituição da legitimidade democrática originária por uma legitimidade derivada, visto o novo Presidente retirar a sua legitimidade do voto do Congresso. É uma espécie de eleição indirecta que afasta o resultado da eleição directa. Assim sendo, só por factos gravíssimos ela se poderá justificar. A lei, em teoria, conta com a honorabilidade dos deputados e exige uma maioria qualificada para garantir a justeza do resultado.



O grave da situação a que no domingo assistimos é, insiste-se, a vulgaridade dos factos indiciados, relativamente aos quais quase nenhum votante do SIM se referiu e a volatilidade do voto. Ou seja, aqueles que ainda há um mês faziam parte da "base aliada"e votavam favoravelmente na Câmara as propostas por apresentadas pelo Governo, passaram, do dia para a noite, a renegar o que durante cerca de quinze anos tinham defendido.



Apesar de este procedimento já ser em si muito grave, terá de reconhecer-se que muitíssimo mais grave é no Brasil quase toda a gente achar isto perfeitamente normal. Essa a verdadeira tragédia brasileira! Essa a razão por que o espectáculo de ontem repugnou às mentalidades democráticas. Repugnou a ponto de causar vómitos não tanto a condução dos trabalhos por um corrupto pertinaz e desavergonhado, como o ar de felicidade incontida com que o Vice-presidente assistia na residência oficial à votação na Câmara, ele que tinha sido eleito como aliado na “chapa” de Dilma. Um acto público de traição como somente as personalidades completamente desprovidas de carácter e de valores são capazes de protagonizar. Esta, sim, a verdadeira tragédia brasileira. A completa ausência de valores que tudo faz parecer normal, absolutamente normal.


Era mais que evidente para quem conhece minimamente os meandros da política brasileira que o SIM só em casos muito contados foi um voto ideológico. O SIM, os 367 votos que deram luz verde ao envio do processo para o Senado, era no essencial um voto negociado. Um voto em troca de favores de toda a espécie. Diz-se no Brasil – e este facto será fácil de confirmar – que nunca o aeroporto de Brasília recebeu tantos “voos executivos” como em 16 e 17 de Abril do passado fim de semana…



Com este acto, com a vergonhosa palhaçada que acompanhou a votação de domingo, a “democracia” brasileira desacredita-se aos olhos do mundo e, pior do que isso, será motivo de chacota em toda a América Latina. Os “catedráticos” que ainda há dias desmereciam do operário “semi-analfabeto” e exigiam que o Brasil fosse governado por gente culta, bem podem agora orgulhar-se da vergonhosa imagem que deram do Brasil a que eles pertencem e do Brasil que eles realmente querem "reconstruir"!

sexta-feira, 15 de abril de 2016

O GOVERNADOR DO BANCO DE PORTUGAL E O BLOCO DE ESQUERDA




O QUE QUER O BLOCO?


Sobre o desempenho de Carlos Costa à frente do Banco de Portugal e sobre o próprio Carlos Costa como agente político de direita disfarçado de tecnocrata financeiro não haverá muito a acrescentar ao que desde há seis anos vimos dizendo neste blogue, como por aqui e aqui se pode comprovar.

Também não há quaisquer ilusões sobre a “independência” dos bancos centrais, das razões que a ditaram e dos objectivos que serve. E o que se diz dos bancos centrais diga-se de qualquer outro “regulador”, essa imposição neoliberal destinada afastar o Estado de tudo o que pudesse perturbar o mercado, o livre jogo das forças produtivas, ou seja, a imposição da vontade dos mais fortes, sempre “legitimada” pelo exercício pleno da liberdade, outra máxima do neoliberalismo filosoficamente alicerçada no pensamento neoconservador americano que infelizmente até acabou por influenciar certas forças de esquerda ou não fosse ele um descente espúrio do trotskismo.
É mais que certo, agora como já o era à época em que os factos foram praticados, que o Governador do Banco de Portugal tem graves responsabilidades nas consequências desastrosas da “resolução” do BES, como também na do BANIF, se é que não actuou mesmo com alguma perversidade.
Tudo isto é sabido. O Governo sabe-o – sabe que com Carlos Costa no Banco de Portugal vive permanentemente com uma faca apontada às suas costas que a todo o momento, seja em cumplicidade com o BCE, seja com a da Direcção Geral da Concorrência (comunitária), pode desferir o golpe que levará à sua queda, objectivo político de Bruxelas – como o sabem os partidos que apoiam o Governo, do mesmo modo que os que o não apoiam contam com Carlos Costa para os ajudar a derrubá-lo.
É este o quadro político em que o Governo se movimenta. A direita portuguesa, afastada do poder pelo voto popular, conta com a colaboração de Bruxelas para a ele regressar rapidamente. Bruxelas desempenhará perversamente o seu papel subindo as exigências a ponto de elas serem incomportáveis para os aliados do Governo. Só que tem havido um problema, por enquanto insolúvel, as sondagens não atribuem a PSD/CDS votos suficientes para regressarem ao poder, continuando o PS de Costa a ser o mais votado, o que por si também inviabilizaria a hipótese de demissão do Secretário-geral do PS em caso de eleições antecipadas e a sua substituição pela direita do PS com cuja abstenção  PSD/CDS poderiam contar para formar governo.
Este quadro, porém, não é estático. Pode alterar-se se as dificuldades do Governo se agravarem e as expectativas dos eleitores se frustrarem tanto efectiva como imaginariamente muito por força de uma comunicação social hostil, como, por exemplo, a da SIC/Expresso, que não perde um minuto para, a propósito de qualquer acontecimento, que directa ou indirectamente atinja o Governo, por mais irrelevante que seja, desmerecer da acção governativa e fazer crer ao seu auditório que tudo vai mal e cada vez pior.
Sendo a continuidade de Carlos Costa à frente do Banco de Portugal a última coisa que o Governo deseja, que necessidade tem o Bloco de Esquerda de pressionar pública e agressivamente António Costa, exigindo-lhe a demissão do Governador, sabendo, como não pode deixar de saber, que no presente contexto essa demissão seria por Bruxelas e pelo BCE interpretada como um acto hostil de consequências imprevisíveis? Então não é preferível este cerco que diariamente lhe está sendo feito pelo Parlamento, pelo Governo e pelos partidos que o apoiam destinado a retirar-lhe toda e qualquer possibilidade de continuidade num cargo para cujo exercício está completamente descredibilizado?
Esta atitude do Bloco, esta espécie de “ejaculação precoce” , é devida a quê? Inexperiência, ansiedade ou antes a uma qualquer doença infantil? Não tem o Governo cumprido os acordos que firmou? Não tem o Governo feito um esforço muito sério para romper o colete-de-forças da política de austeridade indo abertamente contra a ortodoxia imposta por Bruxelas? Não pôs o Governo a nu, mesmo nos domínios em que se pode entender que claudicou, como no do BANIF, a perversa actuação do Governador e a verdadeira natureza da Direcção Geral da Concorrência (comunitária)? Alguém ficou com dúvidas de que o seu papel é o de promover a concentração do capital financeiro?
Basta ver o regozijo com que a comunicação social recebeu a intervenção do Bloco para se perceber, independentemente da vontade de quem actua, que interesses ela acaba por servir. Claro que o PS não faz no Governo a política do PCP, nem a do Bloco Esquerda (cuja política, aliás, nem sempre se compreende bem, salvo quando trata da igualdade de género e outros temas da mesma natureza). O PS faz no Governo a sua política com respeito pelos acordos firmados. E isso no actual contexto é o mais importante. Pior será entregar o poder à direita.

sexta-feira, 18 de março de 2016

GOLPE DE ESTADO EM CURSO NO BRASIL




ENTRETANTO, OS RATOS VÃO SALTANDO DO NAVIO
Mauro Pimentel/Folhapress

Não se trata de fechar os olhos à corrupção, endémica desde sempre em terras de Vera Cruz, mas de perceber que está em curso no Brasil um golpe de Estado atípico desde o dia em que foi anunciada a reeleição de Dilma Rousseff como Presidente da República Federativa do Brasil.

Elevada a democracia representativa à categoria de “dogma intangível” do sistema capitalista depois da Queda do Muro de Berlim, não é mais possível pensar nos dias de hoje em golpes de estado do velho tipo. Ou seja, de assalto ao poder preferentemente pelas forças armadas com vista ao derrube e silenciamento das forças populares, instaurando regimes autoritários ou mesmo autocráticos pelo tempo necessário e suficiente para “normalizar” a situação, entregando-a depois, devidamente expurgada dos elementos “atípicos”, aos seus “verdadeiros donos” – a classe possidente e seus acólitos e sequazes.

Hoje os métodos são muito mais sofisticados, mais eficazes, pautam-se pela “legitimidade democrática”, são unanimemente apoiados pela comunicação social e reúnem todas as condições para gozarem de um relativo consenso social, inclusive das camadas da população contra as quais preferentemente se dirigem.

Para compreendermos esta nova modalidade de “golpe de estado”, comecemos pelo que se passa no espaço da União Europeia onde o que está acontecendo, sendo embora muito diferente do que está ocorrendo no Brasil, é suficientemente elucidativo para a partir da sua análise se compreender como na realidade a democracia não passa hoje de uma vaga figura de retórica na medida em que não há vontade popular, por mais expressiva que seja, com capacidade para alterar o rumo predeterminado de condução da vida política. Foi o que se passou na Grécia, é o que se está a passar entre nós, onde também está em curso um golpe de estado de baixa intensidade destinado a inviabilizar qualquer alteração da situação política juridicamente plasmada em tratados impostos pelas potências dominantes. Golpe de estado que visa boicotar qualquer alternativa, quer mediante a substituição de quem governa, quer, pior ainda, obrigando quem está no governo a fazer o que realmente não quer.

De facto, não é mais necessário recorrer às polícias políticas, à tortura e às violações grosseiras dos direitos fundamentais para que os objectivos dos que não aceitam a divergência sejam alcançados. Basta que se “assolem” os mercados contra os dissidentes, que se mobilizem as agências de rating, se anunciem perigos e dramas iminentes que a comunicação social se encarregará de fazer o resto, amplificando o que possa não estar a correr bem e criando, mediante uma gigantesca manipulação da realidade, as condições ideais para que o resultado pretendido se alcance por si, naturalmente, sem a aparente interferência de qualquer elemento anómalo, repondo, assim, muito mais rapidamente do que se poderia supor, a situação anterior.

No Brasil, a situação é diferente, o contexto não é semelhante ao europeu, mas os objectivos, embora recorrendo a instrumentos em parte diferentes, são exactamente os mesmos e visam os mesmos fins.

O que no Brasil está em jogo é a tentativa de regresso ao poder de uma classe, lato sensu entendida, que dele foi política e eleitoralmente desapossada há quase década e meia e que agora, tirando partido de várias dificuldades conjunturais, não aceita permanecer afastada por mais tempo do poder, principalmente numa época em que essas dificuldades e fragilidades têm vindo a ser dramaticamente expostas sem que tenha havido no plano estritamente político, da parte da esquerda, uma resposta suficientemente capaz de refazer a grande base consensual que tem servido de apoio ao poder agora contestado.

Neste processo sinuoso a corrupção e a politização do poder judicial têm desempenhando um papel fundamental no golpe de estado em curso. A corrupção que tem servido de base sólida ao golpe de estado não passa de um mero pretexto, habilmente esgrimido pela comunicação social e pelo poder judicial politicamente empenhado na consumação do golpe.

Realmente num país em que, além das investigações que têm Dilma e Lula como alvos -  a primeira com base em suspeita de financiamento ilegal da campanha e, ao que parece, de passividade perante o que se passava na Petrobras enquanto presidente da empresa, e o segundo por suspeita de aproveitamento directo de vantagens concedidas por empresas -, estão implicados em graves actos de corrupção o Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, o Presidente do Senado, Renan Calheiros, o Vice-Presidente da República, Michel Temer e o Senador Aécio Neves, candidato à Presidência da República na última eleição, além de muitos outros que ocupam ou já ocuparam cargos de grande relevância política, a incidência exclusiva das acusações de corrupção, baseadas em simples suspeitas, em dois maiores nomes da política brasileira da actualidade, não pode deixar de entender-se como um pretexto – um excelente e quase incontestável pretexto – para atingir os fins que pela via puramente eleitoral se não conseguem alcançar ou se tornam cada vez mais problemáticos.

Daí que o golpe de estado passe pela destituição de Dilma e pela prisão de Lula. Embora não seja despiciendo o papel das instituições políticas propriamente ditas, nomeadamente os partidos políticos, o golpe para ter êxito necessita de uma intervenção muito activa do poder judicial como instrumento de acção política. É isso o que se está a passar. Apesar de todas as regalias e mordomias de que goza, o poder judicial constituído maioritariamente por elementos provenientes da classe média e da classe média alta, eles próprios integrantes da camada superior de rendimentos, embora não tenha sido directamente afectado pela política dos governos Lula e Dilma, assiste em pânico à crise brasileira na qual a desvalorização acentuada do real se traduz para essa camada numa diminuição do seu nível de vida, nomeadamente ou mesmo exclusivamente em tudo o que diga respeito a produtos importados e a viagens ao estrangeiro.

Esta classe média alta é bem representativa do pânico que se apossou da classe média brasileira que vê no actual governo a causa directa e próxima da perda indirecta de parte das suas regalias e vantagens. Esta percepção, aliada à imputação de todos os males à corrupção, da qual, à sua medida e no exercício das suas funções, ela própria tira vantagens, e a extrema judicialização da vida política brasileira, a ponto de ofender ostensivamente em muitos casos o princípio da separação de poderes, constitui o caldo de cultura que explica a acção dos Moros e dos Itagibas Catta Pretas.

O impeachment de Dilma que antes das férias de Janeiro parecia condenado ao insucesso ganhou nova força com as investigações a Lula. Sendo o objectivo fundamental da direita a tomada do poder, o anúncio posto a correr de que o ex-Presidente poderia recandidatar-se em 2018, facto posteriormente confirmado pelo próprio Lula, fez disparar todos os alarmes nas hostes da direita. Embora o Lula de 2018 já não seja, eleitoralmente falando, o Lula de 2002, ele continua a representar um sério obstáculo à tomada do poder pela direita, o que, agravado pela suspeita de uma possível radicalização das políticas de redistribuição, levou a que por todos os meios ao seu alcance a direita tente impedir a sua reeleição.

Colocada perante este quadro, a direita só vê um caminho para atingir os seus objectivos: destituir Dilma e desacreditar Lula, prendendo-o.

A destituição de Dilma, impensável no quadro político europeu, onde o novo tipo de “golpes” passa por manobras muito mais subtis, é perfeitamente possível num sistema partidário como o brasileiro, no qual a “base aliada governista” é sempre frágil, instável, volátil, traiçoeira e muito permeável a todo o tipo de promessas de quem quer chegar ao poder. E assim, não é de estranhar que os aliados do PT, com excepção do PC do B, já estejam a marcar reuniões plenárias para decidir se mantém ou não o apoio ao governo (caso do PMDB e do PP).

Com Dilma destituída ou em vias de o poder ser, passa a haver todas as condições para consumar o golpe, tanto mais que, contrariamente ao que se passa na generalidade dos países, no Brasil os ex-Presidentes não gozam de foro especial por crimes praticados no exercício de funções. O que faz com que Lula, com base em vagas suspeitas e em factos não provados nem devidamente investigados, fique completamente à mercê de um qualquer magistrado judicial brasileiro, de um qualquer estado da União, desde que politizado e instrumentalizado pelos objectivos da oposição, da qual aliás faz parte, podendo sofrer todo o tipo de humilhações e vexames, como a prisão preventiva, decretada com o exclusivo propósito político de inviabilizar a sua candidatura à presidência da República.

Tudo o que está em curso aponta inequivocamente no sentido de um golpe que há pressa, muita pressa, em consumar. Como pode admitir-se que um magistrado publique as escutas telefónicas de Lula e da própria Presidente? Escutas que, além de ilegais, são selectivamente publicadas com o objectivo de minar a base aliada do Governo, já muito instabilizada pela própria conjuntura, e de criar fricções com o Supremo Tribunal. Claro que se trata de um comportamento inadmissível e ilegal. Mas não é isso o que entende a direita brasileira, para qual o que interessa é o conteúdo das escutas e o resultado que por via delas se pretende alcançar. Essa a democracia dos Aécio Neves e dos Fernando Henrique Cardozo.

Foi exactamente para evitar esta instrumentalização da Justiça, a funcionar como braço armado da política de direita, que Lula procurou esquivar-se à acção política de magistrados judiciais, mediante a tomada de posse de um lugar que lhe garantisse um foro com um mínimo de imparcialidade.

Não é certamente a solução politicamente mais defensável em termos absolutos. O problema, porém, é saber a que outra solução poderia recorrer quando se está perante uma inequívoca instrumentalização da Justiça. É uma actuação em verdadeiro estado de necessidade, ditada por um contexto contra o qual é muitíssimo difícil lutar por completa ausência de armas iguais. Realmente, não havia alternativa. Com a comunicação social completamente hostil, nomeadamente a rede Globo, de pouco valeria a Lula continuar a proferir declarações de inocência rapidamente contrariadas por uma gigantesca campanha de desinformação insusceptível de ser contrariada por falta de recursos adequados.

O caminho escolhido acabou por ser a ocupação política de um lugar que lhe permitisse esperar o tal mínimo de imparcialidade do poder judicial. Ora, isso só poderia ser conseguido desde que o lugar a ocupar lhe garantisse um foro especial. É neste quadro que tem de ser vista a sua tomada de posse. É um acto que não o favorece politicamente, que inclusive lhe retira alguma credibilidade política, mas que era no actual contexto da política brasileira a única via que lhe poderia assegurar alguma objectividade e imparcialidade de julgamento.

Se dúvidas houvesse bastaria atentar tanto no posicionamento político do autor do despacho que suspende a posse de Lula, como no seu teor. De facto, é inacreditável, por um lado, como pode o judiciário interferir num acto da exclusiva competência do Executivo e, por outro, como pode um magistrado, com base numa simples opinião, sem qualquer sustentação no plano jurídico, proferir um despacho minutos depois da tomada de posse e esse acto ser acatado pelos media e pelos políticos que enchem a boca em democracia e anticorrupção como se do acto mais natural se tratasse.

O que se passa no Brasil, tendo a corrupção como simples pretexto ou utilizando-a como pano de fundo para a consumação de um golpe e o que se passa na Europa quando algum Governo periférico da União Europeia ousa desafiar o “ortodoxia económica” dominante, levanta mais uma vez a questão dos limites da democracia representativa. E este é um problema para o qual a esquerda não pode fechar os olhos nem tão-pouco acreditar que uma forma de governo institucionalizada pela burguesia e transformada em dogma político depois da consumação da sua hegemonia, possa por ela, pela esquerda, ser adoptada como valor universal irrecusável com as características e no contexto em que actualmente actua.   

Em tempo: já depois de escrito este post, o STJ suspendou a suspensão da tomada de posse, passando Lula a ser um ministro de pleno direito. Mas que ninguém se iluda: o golpe continua.


sexta-feira, 11 de março de 2016

MARCELO E OS SEUS DISCURSOS




ESBOÇO DE ANÁLISE DE UM PENSAMENTO POLITICO-CULTURAL



Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República Portuguesa, tem pelo seu passado de comentador político televisivo, pelo seu estilo de comunicador, pela sua própria personalidade e pelo Presidente que o antecedeu todas as condições para ser amado pelo povo português.

E isso está a verificar-se e vai certamente intensificar-se com o tempo. Para além daquilo que nele já apontava nesse sentido, a informalidade da comunicação, o modo simples como se exprime, a simpatia que irradia nos contactos pessoais, o curriculum universitário que sempre encerra aos olhos dos portugueses um saber que outros não têm, Marcelo teve a enorme vantagem de ter sido antecedido por Aníbal Cavaco Silva.

Cavaco Silva, outro caso de estudo, porque tendo sido o político que em Portugal mais tempo esteve no poder por via eleitoral, ostenta a inacreditável particularidade de ter ganho cinco eleições, quatro delas por maioria absoluta, sem que ninguém tenha votado nele. Dir-se-ia que os portugueses se revêem nele, mas que simultaneamente se envergonham dele. É um pouco como aqueles casamentos em que a noiva era escolhida por conveniência, mas que depois de casada nunca mais era mostrada pelo marido. Não porque a pudessem cobiçar, mas porque era feia.

Marcelo teve essa vantagem. A vantagem de suceder a um presidente sectário, rancoroso, mesquinho, ultra-convencido das suas capacidades, culturalmente menor e incapaz de perceber a diferença.

Enquanto Cavaco é a expressão dura de um fascismo cultural, que informa todo o seu pensamento político, Marcelo é a expressão doce de um “fascismo” cultural pretensamente consensual ainda muito impregnado na sociedade portuguesa.

Nem sabemos se Marcelo tem verdadeira consciência dos pressupostos culturais em que assenta a sua acção politica. Certamente que Marcelo se revê nos valores por que pauta politicamente a sua conduta, mas é muito duvidoso que alguma vez tenha empreendido uma verdadeira análise crítica desses valores. Mais do que valores são “sentimentos que o ligam à terra” e que o fazem ser como é: “ saudade, doçura no falar, comunhão no vibrar, generosidade na inclusão, o milagre de Ourique”. Imagine-se, “O milagre de Ourique!”.

É essa “doçura no falar e essa generosidade na inclusão” que o leva a citar Mouzinho de Albuquerque (cujo nome omite), como grande herói nacional, sem sequer se dar conta que ligada às campanhas de África está uma das páginas mais dramáticas dos povos coloniais, mais dramática do que a própria escravatura. É esse “fascismo cultural doce” que o leva a citar esses feitos gloriosos dos portugueses perante os descendentes directos das vítimas como se da coisa mais natural se tratasse. Tudo isto, porque no pensamento de Marcelo nem sequer aflora o papel da vítima, tal é a pretensa consensualidade da acção em que assenta o seu discurso. O que nele escondidamente está presente é a  capacidade de os portugueses terem sabido marcar pontos – e que pontos – perante a pérfida Albion.

E é tudo assim. Ambos os discursos que até hoje fez, o de ontem, no Parlamento, e o de hoje, ao corpo diplomático, assentam nos mesmos pressupostos, nesta grandeza pátria acriticamente assumida e outras vezes propositadamente omitida por conveniência política, como é o caso do nosso relacionamento histórico com Espanha.

Dirão alguns dos que lêem estas linhas: não é função do Presidente da República criar atritos com terceiros onde eles podem ser evitados; e é função do Presidente da República estimular o sentimento pátrio e o amor-próprio dos portugueses. Certamente. Esses são objectivos que ninguém com um mínimo de senso contestará. O que se contesta, ou pode contestar, é o modo de chegar a eles; é o pressuposto ideológico em que se fundamentam.

Politicamente, não há nada a acrescentar ao que aqui foi escrito, em 25 de Janeiro, no comentário à vitória eleitoral. O que então se disse, e que a seguir se transcreve, parece constituir, por o que agora voltou a ser dito, o verdadeiro objectivo político de Marcelo.

“(…) Interpretando correctamente o discurso da vitória, um discurso que Marcelo teve a preocupação de escrever e de ler para se não deixar levar pela emoção do momento, o que dele ressalta é a vontade política de contribuir, através da sua presidência, para a “existência” de um país que seja governado ao centro, seja pelo PS seja pelo PSD. Por outras palavras, por um país assente no compromisso das grandes forças do centro político relativamente a todas as questões fundamentais da governação. Um país que precisa, para que este desiderato se materialize, da substituição das lideranças do PS e do PSD por lideranças capazes de interpretar e pôr politicamente em prática aquilo que Marcelo entende ser a vontade do país real.

Quando Marcelo apela ao compromisso e ao entendimento, como frequentemente ontem fez no discurso da vitória, não se está a referir, como é óbvio, ao compromisso entre as forças de esquerda, nem à vontade de trazer para a área da governação forças que desde o primeiro governo constitucional dela têm estado arredadas. Pelo contrário, o que Marcelo pretende é reforçar o entendimento entre dois grandes partidos do centro, um do centro esquerda, outro do centro direita. Para isso vai ter de apoiar todas as “conspirações” que num e noutro lado visem derrubar as actuais lideranças”.

Também sob este aspecto, Marcelo se demarca ostensivamente de Cavaco. Cavaco, à bruta, contra a Constituição e contra a democracia, não teve pejo em afirmar raivosa e rancorosamente que esses tipos de esquerda, esses subversivos inúteis e perigosos não têm lugar na nossa “democracia”, embora se tenha depois visto obrigado a deglutir o enorme sapo que levou atravessado na garganta na sua reforma política para a Travessa do Possolo.

Marcelo jamais diria ou dirá o que Cavaco afirmou. Marcelo também acha que a solução encontrada não é boa, mas como tem outra noção do tempo político, entende inteligentemente que não tem de se expor, tanto mais que há quem esteja preparado para fazer esse trabalho por ele. Trabalho que aliás já começou e somente não está concluído porque a “questão espanhola” ainda não está fechada.

Como também aqui já dissemos, o nosso próximo futuro está intimamente ligado à solução que vier a ser encontrada para a crise espanhola.

Para concluir a apreciação dos discursos de Marcelo, lembrar apenas que depois de toda a “doçura patriótica” derramada nos dois discursos, nem uma palavra de crítica à ignominiosa chantagem da Comissão Europeia, da “Europa”, sobre Portugal exercida por razões retintamente ideológicas, apesar de as divergências ideológicas não respeitarem a um verdadeiro confronto de sistemas, mas apenas e só a duas formas diferentes de encarar a gestão do capitalismo! Mas aqui fala mais alto a voz dos fundamentalistas, que só vêem uma forma eficaz de calar a dissidência: eliminando os cismáticos!

Das reacções aos discursos de Marcelo, nomeadamente das reacções ao discurso de posse, nem uma palavra para já, por razões óbvias, sem deixar de reconhecer que no actual contexto não seria fácil, nem popular, manter distâncias.