ENTRETANTO, OS RATOS
VÃO SALTANDO DO NAVIO
Não se trata de fechar os olhos à corrupção, endémica desde
sempre em terras de Vera Cruz, mas de perceber que está em curso no Brasil um
golpe de Estado atípico desde o dia em que foi anunciada a reeleição de Dilma
Rousseff como Presidente da República Federativa do Brasil.
Elevada a democracia representativa à categoria de “dogma
intangível” do sistema capitalista depois da Queda do Muro de Berlim, não é
mais possível pensar nos dias de hoje em golpes de estado do velho tipo. Ou
seja, de assalto ao poder preferentemente pelas forças armadas com vista ao
derrube e silenciamento das forças populares, instaurando regimes autoritários
ou mesmo autocráticos pelo tempo necessário e suficiente para “normalizar” a
situação, entregando-a depois, devidamente expurgada dos elementos “atípicos”,
aos seus “verdadeiros donos” – a classe possidente e seus acólitos e sequazes.
Hoje os métodos são muito mais sofisticados, mais eficazes,
pautam-se pela “legitimidade democrática”, são unanimemente apoiados pela
comunicação social e reúnem todas as condições para gozarem de um relativo
consenso social, inclusive das camadas da população contra as quais
preferentemente se dirigem.
Para compreendermos esta nova modalidade de “golpe de estado”,
comecemos pelo que se passa no espaço da União Europeia onde o que está
acontecendo, sendo embora muito diferente do que está ocorrendo no Brasil, é
suficientemente elucidativo para a partir da sua análise se compreender como na
realidade a democracia não passa hoje de uma vaga figura de retórica na medida em
que não há vontade popular, por mais expressiva que seja, com capacidade para
alterar o rumo predeterminado de condução da vida política. Foi o que se passou
na Grécia, é o que se está a passar entre nós, onde também está em curso um
golpe de estado de baixa intensidade destinado a inviabilizar qualquer alteração
da situação política juridicamente plasmada em tratados impostos pelas
potências dominantes. Golpe de estado que visa boicotar qualquer alternativa,
quer mediante a substituição de quem governa, quer, pior ainda, obrigando quem
está no governo a fazer o que realmente não quer.
De facto, não é mais necessário recorrer às polícias
políticas, à tortura e às violações grosseiras dos direitos fundamentais para
que os objectivos dos que não aceitam a divergência sejam alcançados. Basta que
se “assolem” os mercados contra os dissidentes, que se mobilizem as agências de
rating, se anunciem perigos e dramas
iminentes que a comunicação social se encarregará de fazer o resto, amplificando
o que possa não estar a correr bem e criando, mediante uma gigantesca
manipulação da realidade, as condições ideais para que o resultado pretendido
se alcance por si, naturalmente, sem a aparente interferência de qualquer elemento
anómalo, repondo, assim, muito mais rapidamente do que se poderia supor, a
situação anterior.
No Brasil, a situação é diferente, o contexto não é
semelhante ao europeu, mas os objectivos, embora recorrendo a instrumentos em
parte diferentes, são exactamente os mesmos e visam os mesmos fins.
O que no Brasil está em jogo é a tentativa de regresso ao
poder de uma classe, lato sensu entendida,
que dele foi política e eleitoralmente desapossada há quase década e meia e que
agora, tirando partido de várias dificuldades conjunturais, não aceita permanecer
afastada por mais tempo do poder, principalmente numa época em que essas dificuldades
e fragilidades têm vindo a ser dramaticamente expostas sem que tenha havido no
plano estritamente político, da parte da esquerda, uma resposta suficientemente
capaz de refazer a grande base consensual que tem servido de apoio ao poder
agora contestado.
Neste processo sinuoso a corrupção e a politização do poder
judicial têm desempenhando um papel fundamental no golpe de estado em curso. A
corrupção que tem servido de base sólida ao golpe de estado não passa de um
mero pretexto, habilmente esgrimido pela comunicação social e pelo poder
judicial politicamente empenhado na consumação do golpe.
Realmente num país em que, além das investigações que têm
Dilma e Lula como alvos - a primeira com
base em suspeita de financiamento ilegal da campanha e, ao que parece, de
passividade perante o que se passava na Petrobras enquanto presidente da
empresa, e o segundo por suspeita de aproveitamento directo de vantagens concedidas
por empresas -, estão implicados em graves actos de corrupção o Presidente da
Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, o Presidente do Senado, Renan Calheiros, o
Vice-Presidente da República, Michel Temer e o Senador Aécio Neves, candidato à
Presidência da República na última eleição, além de muitos outros que ocupam ou
já ocuparam cargos de grande relevância política, a incidência exclusiva das
acusações de corrupção, baseadas em simples suspeitas, em dois maiores nomes da
política brasileira da actualidade, não pode deixar de entender-se como um
pretexto – um excelente e quase incontestável pretexto – para atingir os fins
que pela via puramente eleitoral se não conseguem alcançar ou se tornam
cada vez mais problemáticos.
Daí que o golpe de estado passe pela destituição de Dilma e
pela prisão de Lula. Embora não seja despiciendo o papel das instituições
políticas propriamente ditas, nomeadamente os partidos políticos, o golpe para
ter êxito necessita de uma intervenção muito activa do poder judicial como
instrumento de acção política. É isso o que se está a passar. Apesar de todas
as regalias e mordomias de que goza, o poder judicial constituído
maioritariamente por elementos provenientes da classe média e da classe média
alta, eles próprios integrantes da camada superior de rendimentos, embora não
tenha sido directamente afectado pela política dos governos Lula e Dilma,
assiste em pânico à crise brasileira na qual a desvalorização acentuada do real
se traduz para essa camada numa diminuição do seu nível de vida, nomeadamente
ou mesmo exclusivamente em tudo o que diga respeito a produtos importados e a
viagens ao estrangeiro.
Esta classe média alta é bem representativa do pânico que se
apossou da classe média brasileira que vê no actual governo a causa directa e
próxima da perda indirecta de parte das suas regalias e vantagens. Esta
percepção, aliada à imputação de todos os males à corrupção, da qual, à sua
medida e no exercício das suas funções, ela própria tira vantagens, e a
extrema judicialização da vida política brasileira, a ponto de ofender
ostensivamente em muitos casos o princípio da separação de poderes, constitui o
caldo de cultura que explica a acção dos Moros
e dos Itagibas Catta Pretas.
O impeachment de
Dilma que antes das férias de Janeiro parecia condenado ao insucesso ganhou
nova força com as investigações a Lula. Sendo o objectivo fundamental da
direita a tomada do poder, o anúncio posto a correr de que o ex-Presidente poderia
recandidatar-se em 2018, facto posteriormente confirmado pelo próprio Lula, fez
disparar todos os alarmes nas hostes da direita. Embora o Lula de 2018 já não
seja, eleitoralmente falando, o Lula de 2002, ele continua a representar um sério
obstáculo à tomada do poder pela direita, o que, agravado pela suspeita de uma
possível radicalização das políticas de redistribuição, levou a que por todos
os meios ao seu alcance a direita tente impedir a sua reeleição.
Colocada perante este quadro, a direita só vê um caminho para
atingir os seus objectivos: destituir Dilma e desacreditar Lula, prendendo-o.
A destituição de Dilma, impensável no quadro político
europeu, onde o novo tipo de “golpes” passa por manobras muito mais subtis, é
perfeitamente possível num sistema partidário como o brasileiro, no qual a “base
aliada governista” é sempre frágil, instável, volátil, traiçoeira e muito
permeável a todo o tipo de promessas de quem quer chegar ao poder. E assim, não
é de estranhar que os aliados do PT, com excepção do PC do B, já estejam a
marcar reuniões plenárias para decidir se mantém ou não o apoio ao governo
(caso do PMDB e do PP).
Com Dilma destituída ou em vias de o poder ser, passa a haver
todas as condições para consumar o golpe, tanto mais que, contrariamente ao que
se passa na generalidade dos países, no Brasil os ex-Presidentes não gozam de
foro especial por crimes praticados no exercício de funções. O que faz com que
Lula, com base em vagas suspeitas e em factos não provados nem devidamente
investigados, fique completamente à mercê de um qualquer magistrado judicial
brasileiro, de um qualquer estado da União, desde que politizado e
instrumentalizado pelos objectivos da oposição, da qual aliás faz parte, podendo
sofrer todo o tipo de humilhações e vexames, como a prisão preventiva,
decretada com o exclusivo propósito político de inviabilizar a sua candidatura à
presidência da República.
Tudo o que está em curso aponta inequivocamente no sentido de
um golpe que há pressa, muita pressa, em consumar. Como pode admitir-se que um
magistrado publique as escutas telefónicas de Lula e da própria Presidente?
Escutas que, além de ilegais, são selectivamente publicadas com o objectivo de
minar a base aliada do Governo, já muito instabilizada pela própria conjuntura,
e de criar fricções com o Supremo Tribunal. Claro que se trata de um
comportamento inadmissível e ilegal. Mas não é isso o que entende a direita
brasileira, para qual o que interessa é o conteúdo das escutas e o resultado
que por via delas se pretende alcançar. Essa a democracia dos Aécio Neves e dos
Fernando Henrique Cardozo.
Foi exactamente para evitar esta instrumentalização da
Justiça, a funcionar como braço armado da política de direita, que Lula
procurou esquivar-se à acção política de magistrados judiciais, mediante a
tomada de posse de um lugar que lhe garantisse um foro com um mínimo de
imparcialidade.
Não é certamente a solução politicamente mais defensável em
termos absolutos. O problema, porém, é saber a que outra solução poderia recorrer
quando se está perante uma inequívoca instrumentalização da Justiça. É uma
actuação em verdadeiro estado de necessidade, ditada por um contexto contra o
qual é muitíssimo difícil lutar por completa ausência de armas iguais. Realmente,
não havia alternativa. Com a comunicação social completamente hostil,
nomeadamente a rede Globo, de pouco valeria a Lula continuar a proferir
declarações de inocência rapidamente contrariadas por uma gigantesca campanha
de desinformação insusceptível de ser contrariada por falta de recursos
adequados.
O caminho escolhido acabou por ser a ocupação política de um
lugar que lhe permitisse esperar o tal mínimo de imparcialidade do poder
judicial. Ora, isso só poderia ser conseguido desde que o lugar a ocupar lhe
garantisse um foro especial. É neste quadro que tem de ser vista a sua tomada
de posse. É um acto que não o favorece politicamente, que inclusive lhe retira
alguma credibilidade política, mas que era no actual contexto da política
brasileira a única via que lhe poderia assegurar alguma objectividade e
imparcialidade de julgamento.
Se dúvidas houvesse bastaria atentar tanto no posicionamento
político do autor do despacho que suspende a posse de Lula, como no seu teor.
De facto, é inacreditável, por um lado, como pode o judiciário interferir num
acto da exclusiva competência do Executivo e, por outro, como pode um magistrado,
com base numa simples opinião, sem qualquer sustentação no plano jurídico, proferir
um despacho minutos depois da tomada de posse e esse acto ser acatado pelos media e pelos políticos que enchem a boca
em democracia e anticorrupção como se do acto mais natural se tratasse.
O que se passa no Brasil, tendo a corrupção como simples
pretexto ou utilizando-a como pano de fundo para a consumação de um golpe e o
que se passa na Europa quando algum Governo periférico da União Europeia ousa
desafiar o “ortodoxia económica” dominante, levanta mais uma vez a questão dos
limites da democracia representativa. E este é um problema para o qual a
esquerda não pode fechar os olhos nem tão-pouco acreditar que uma forma de
governo institucionalizada pela burguesia e transformada em dogma político
depois da consumação da sua hegemonia, possa por ela, pela esquerda, ser adoptada
como valor universal irrecusável com as características e no contexto em que actualmente
actua.
Em tempo: já depois de escrito este post,
o STJ suspendou a suspensão da tomada de posse, passando Lula a ser um ministro
de pleno direito. Mas que ninguém se iluda: o golpe continua.