quarta-feira, 20 de abril de 2016

A TRAGÉDIA BRASILEIRA

UM ESPECTÁCULO DEGRADANTE



O espectáculo a que no domingo passado assistimos durante várias horas, em directo, pela televisão, a partir de Brasília, da Câmara dos Deputados da República Federativa do Brasil, foi um dos espectáculos políticos mais degradantes que nos foi dado presenciar em toda a vida.



Decidia-se a viabilização do impeachment, ou seja, da destituição da Presidente do Brasil com base em crime de responsabilidade previsto no art.º 85.º da Constituição Federal, tramitado nos termos do art.86.º do mesmo diploma e demais legislação ordinária aplicável.



A Presidente Dilma Rousseff é acusada de ter praticado vários crimes de responsabilidade, a seguir sumariamente identificados: a)“pedaladas fiscais”, que no jargão brasileiro significa contracção de empréstimos para suprir défices orçamentais; b) promulgação e publicação de alguns decretos destinados à concessão de créditos suplementares ao Orçamento de 2014 sem autorização do Congresso; c) negligência na fiscalização da Petrobras; d) maquiagem das contas da previdência; e) veto ao fim do sigilo das operações do Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social (BNDES); f) corte, em 2015, no gasto público de 8 600 milhões de reais, sem autorização do Congresso; e mais uns tantos crimes eleitorais (financiamento de campanhas), estes da jurisdição do Supremo Tribunal Eleitoral.



A instrução deste processo pressupõe a prévia aceitação pelo Presidente da Câmara dos Deputados das acusações que qualquer cidadão pode formular nos termos da Constituição. Por ano, são às dezenas as acusações que chegam à Câmara apresentadas por alguns dos 200 milhões de habitantes do Brasil. Em todos os mandatos, depois de Color de Mello (primeiro impeachment na vigência da Constituição de 1988), houve pedidos de impeachment que nunca foram aceites.



O impeachment para ser instruído precisa de ser aceite pelo Presidente da Câmara dos Deputados, que actualmente está sob a presidência de Eduardo Cunha (PMDB), até há pouco pertencente à base governista. Tendo em carteira vários pedidos de impeachment contra a Presidente e havendo também contra si, pendente na Câmara, um pedido de cassação de mandato por corrupção, com provas aparentemente indiscutíveis, Cunha – o típico político brasileiro – jogou com as duas situações: se o PT se comprometesse a votar contra a investigação destinada a decidir sobre a cassação do seu mandato, ele não aceitaria o pedido de impeachment; se não se comprometesse, o pedido de impeachment seria aceite. Assim, tal e qual! Como o PT não se comprometeu, Cunha fez “negócio” com o PSDB: aceitaria os pedidos de impeachment contra a Presidente, se o PSDB e aliados votassem contra a instrução do seu processo de cassação. O negócio fez-se e o impeachment foi admitido.



Feito o “negócio”, começou a via sacra da Presidente. Cunha aceitou os pedidos e fez votar, contra a praxe constitucional em vigor, a composição da comissão instrutora à revelia das lideranças partidárias. Entretanto, a maioria da comunicação social, em guerra aberta contra o PT, encarregou-se de criar na opinião pública um clima muito desfavorável à Presidente; por outro lado, as entidades que conduziam a investigação de alguns processos de corrupção, como a famosa Operação Lava Jacto, nos quais está implicada grande parte da classe política brasileira, com a colaboração de magistrados judiciais filiados no PSDB ou simplesmente movidos por uma militância política invejável contra o governo, foram passando selectivamente para a comunicação social partes comprometedores dessas investigações para assim acentuar junto da opinião pública a ideia de que a corrupção no Brasil era no essencial comandada pelo PT. Embora nada houvesse contra a Presidente neste estrito domínio da corrupção, os sucessivos “vazamentos” de peças processuais criaram o tal clima propício a fazer prosperar qualquer acusação. Não havia corrupção da Presidente, mas havia os tais “crimes” acima referidos. E foi com eles que se fez o arremedo de instrução que domingo passado a Câmara decidiu viabilizar.



A viabilização do processo carece de aprovação pela Câmara dos Deputados por dois terços dos deputados e tem em vista o seu envio para o Senado onde será julgado. Este, por seu turno, terá de decidir por maioria simples (41 votos) se aceita ou não o processo; se não aceitar, nada acontecerá; se aceitar, a Presidente é imediatamente suspensa por 180 dias, prazo durante o qual o cargo será exercido pelo Vice-Presidente e no qual o processo terá de ser julgado pelo Senado; se o julgamento não ocorrer dentro desse prazo, a Presidente retoma as suas funções aguardando no desempenho destas o julgamento do Senado. A decisão condenatória do Senado, que implica a destituição da Presidente, tem de ser aprovada por dois terços (54 votos) para ter esta consequência.



Como é óbvio, a instrução de um processo desta natureza por um órgão político, só poderá ser uma instrução orientada por critérios políticos. O que no presente processo assume foros de profunda rejeição e repugnância por uma mentalidade criada e formada à luz dos padrões europeus é, por um lado, a vulgaridade do pretexto que serve de base ao impeachment e, por outro, a volatilidade dos votantes, sendo que a maioria destes é constituída pelos aliados de véspera.



A destituição de um Presidente da República, eleito directamente pelo voto popular, é um acto de extrema gravidade na medida em que opera a substituição da legitimidade democrática originária por uma legitimidade derivada, visto o novo Presidente retirar a sua legitimidade do voto do Congresso. É uma espécie de eleição indirecta que afasta o resultado da eleição directa. Assim sendo, só por factos gravíssimos ela se poderá justificar. A lei, em teoria, conta com a honorabilidade dos deputados e exige uma maioria qualificada para garantir a justeza do resultado.



O grave da situação a que no domingo assistimos é, insiste-se, a vulgaridade dos factos indiciados, relativamente aos quais quase nenhum votante do SIM se referiu e a volatilidade do voto. Ou seja, aqueles que ainda há um mês faziam parte da "base aliada"e votavam favoravelmente na Câmara as propostas por apresentadas pelo Governo, passaram, do dia para a noite, a renegar o que durante cerca de quinze anos tinham defendido.



Apesar de este procedimento já ser em si muito grave, terá de reconhecer-se que muitíssimo mais grave é no Brasil quase toda a gente achar isto perfeitamente normal. Essa a verdadeira tragédia brasileira! Essa a razão por que o espectáculo de ontem repugnou às mentalidades democráticas. Repugnou a ponto de causar vómitos não tanto a condução dos trabalhos por um corrupto pertinaz e desavergonhado, como o ar de felicidade incontida com que o Vice-presidente assistia na residência oficial à votação na Câmara, ele que tinha sido eleito como aliado na “chapa” de Dilma. Um acto público de traição como somente as personalidades completamente desprovidas de carácter e de valores são capazes de protagonizar. Esta, sim, a verdadeira tragédia brasileira. A completa ausência de valores que tudo faz parecer normal, absolutamente normal.


Era mais que evidente para quem conhece minimamente os meandros da política brasileira que o SIM só em casos muito contados foi um voto ideológico. O SIM, os 367 votos que deram luz verde ao envio do processo para o Senado, era no essencial um voto negociado. Um voto em troca de favores de toda a espécie. Diz-se no Brasil – e este facto será fácil de confirmar – que nunca o aeroporto de Brasília recebeu tantos “voos executivos” como em 16 e 17 de Abril do passado fim de semana…



Com este acto, com a vergonhosa palhaçada que acompanhou a votação de domingo, a “democracia” brasileira desacredita-se aos olhos do mundo e, pior do que isso, será motivo de chacota em toda a América Latina. Os “catedráticos” que ainda há dias desmereciam do operário “semi-analfabeto” e exigiam que o Brasil fosse governado por gente culta, bem podem agora orgulhar-se da vergonhosa imagem que deram do Brasil a que eles pertencem e do Brasil que eles realmente querem "reconstruir"!

sexta-feira, 15 de abril de 2016

O GOVERNADOR DO BANCO DE PORTUGAL E O BLOCO DE ESQUERDA




O QUE QUER O BLOCO?


Sobre o desempenho de Carlos Costa à frente do Banco de Portugal e sobre o próprio Carlos Costa como agente político de direita disfarçado de tecnocrata financeiro não haverá muito a acrescentar ao que desde há seis anos vimos dizendo neste blogue, como por aqui e aqui se pode comprovar.

Também não há quaisquer ilusões sobre a “independência” dos bancos centrais, das razões que a ditaram e dos objectivos que serve. E o que se diz dos bancos centrais diga-se de qualquer outro “regulador”, essa imposição neoliberal destinada afastar o Estado de tudo o que pudesse perturbar o mercado, o livre jogo das forças produtivas, ou seja, a imposição da vontade dos mais fortes, sempre “legitimada” pelo exercício pleno da liberdade, outra máxima do neoliberalismo filosoficamente alicerçada no pensamento neoconservador americano que infelizmente até acabou por influenciar certas forças de esquerda ou não fosse ele um descente espúrio do trotskismo.
É mais que certo, agora como já o era à época em que os factos foram praticados, que o Governador do Banco de Portugal tem graves responsabilidades nas consequências desastrosas da “resolução” do BES, como também na do BANIF, se é que não actuou mesmo com alguma perversidade.
Tudo isto é sabido. O Governo sabe-o – sabe que com Carlos Costa no Banco de Portugal vive permanentemente com uma faca apontada às suas costas que a todo o momento, seja em cumplicidade com o BCE, seja com a da Direcção Geral da Concorrência (comunitária), pode desferir o golpe que levará à sua queda, objectivo político de Bruxelas – como o sabem os partidos que apoiam o Governo, do mesmo modo que os que o não apoiam contam com Carlos Costa para os ajudar a derrubá-lo.
É este o quadro político em que o Governo se movimenta. A direita portuguesa, afastada do poder pelo voto popular, conta com a colaboração de Bruxelas para a ele regressar rapidamente. Bruxelas desempenhará perversamente o seu papel subindo as exigências a ponto de elas serem incomportáveis para os aliados do Governo. Só que tem havido um problema, por enquanto insolúvel, as sondagens não atribuem a PSD/CDS votos suficientes para regressarem ao poder, continuando o PS de Costa a ser o mais votado, o que por si também inviabilizaria a hipótese de demissão do Secretário-geral do PS em caso de eleições antecipadas e a sua substituição pela direita do PS com cuja abstenção  PSD/CDS poderiam contar para formar governo.
Este quadro, porém, não é estático. Pode alterar-se se as dificuldades do Governo se agravarem e as expectativas dos eleitores se frustrarem tanto efectiva como imaginariamente muito por força de uma comunicação social hostil, como, por exemplo, a da SIC/Expresso, que não perde um minuto para, a propósito de qualquer acontecimento, que directa ou indirectamente atinja o Governo, por mais irrelevante que seja, desmerecer da acção governativa e fazer crer ao seu auditório que tudo vai mal e cada vez pior.
Sendo a continuidade de Carlos Costa à frente do Banco de Portugal a última coisa que o Governo deseja, que necessidade tem o Bloco de Esquerda de pressionar pública e agressivamente António Costa, exigindo-lhe a demissão do Governador, sabendo, como não pode deixar de saber, que no presente contexto essa demissão seria por Bruxelas e pelo BCE interpretada como um acto hostil de consequências imprevisíveis? Então não é preferível este cerco que diariamente lhe está sendo feito pelo Parlamento, pelo Governo e pelos partidos que o apoiam destinado a retirar-lhe toda e qualquer possibilidade de continuidade num cargo para cujo exercício está completamente descredibilizado?
Esta atitude do Bloco, esta espécie de “ejaculação precoce” , é devida a quê? Inexperiência, ansiedade ou antes a uma qualquer doença infantil? Não tem o Governo cumprido os acordos que firmou? Não tem o Governo feito um esforço muito sério para romper o colete-de-forças da política de austeridade indo abertamente contra a ortodoxia imposta por Bruxelas? Não pôs o Governo a nu, mesmo nos domínios em que se pode entender que claudicou, como no do BANIF, a perversa actuação do Governador e a verdadeira natureza da Direcção Geral da Concorrência (comunitária)? Alguém ficou com dúvidas de que o seu papel é o de promover a concentração do capital financeiro?
Basta ver o regozijo com que a comunicação social recebeu a intervenção do Bloco para se perceber, independentemente da vontade de quem actua, que interesses ela acaba por servir. Claro que o PS não faz no Governo a política do PCP, nem a do Bloco Esquerda (cuja política, aliás, nem sempre se compreende bem, salvo quando trata da igualdade de género e outros temas da mesma natureza). O PS faz no Governo a sua política com respeito pelos acordos firmados. E isso no actual contexto é o mais importante. Pior será entregar o poder à direita.