UM ESPECTÁCULO DEGRADANTE
O espectáculo a que no domingo passado assistimos
durante várias horas, em directo, pela televisão, a partir de Brasília, da
Câmara dos Deputados da República Federativa do Brasil, foi um dos espectáculos
políticos mais degradantes que nos foi dado presenciar em toda a vida.
Decidia-se a viabilização do impeachment, ou
seja, da destituição da Presidente do Brasil com base em crime de
responsabilidade previsto no art.º 85.º da Constituição Federal, tramitado nos
termos do art.86.º do mesmo diploma e demais legislação ordinária aplicável.
A Presidente Dilma Rousseff é acusada de ter
praticado vários crimes de responsabilidade, a seguir sumariamente
identificados: a)“pedaladas fiscais”, que no jargão brasileiro significa
contracção de empréstimos para suprir défices orçamentais; b) promulgação
e publicação de alguns decretos destinados à concessão de créditos
suplementares ao Orçamento de 2014 sem autorização do Congresso; c) negligência
na fiscalização da Petrobras; d) maquiagem das contas da previdência; e) veto
ao fim do sigilo das operações do Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e
Social (BNDES); f) corte, em 2015, no gasto público de 8 600 milhões de reais,
sem autorização do Congresso; e mais uns tantos crimes eleitorais
(financiamento de campanhas), estes da jurisdição do Supremo Tribunal
Eleitoral.
A instrução deste processo pressupõe a prévia
aceitação pelo Presidente da Câmara dos Deputados das acusações que qualquer
cidadão pode formular nos termos da Constituição. Por ano, são às dezenas as
acusações que chegam à Câmara apresentadas por alguns dos 200 milhões de
habitantes do Brasil. Em todos os mandatos, depois de Color de Mello (primeiro impeachment
na vigência da Constituição de 1988), houve pedidos de impeachment que
nunca foram aceites.
O impeachment para ser instruído precisa
de ser aceite pelo Presidente da Câmara dos Deputados, que actualmente está sob
a presidência de Eduardo Cunha (PMDB), até há pouco pertencente à base governista. Tendo em
carteira vários pedidos de impeachment
contra a Presidente e havendo também contra si, pendente na Câmara, um pedido
de cassação de mandato por corrupção, com provas aparentemente indiscutíveis,
Cunha – o típico político brasileiro – jogou com as duas situações: se o PT se
comprometesse a votar contra a investigação destinada a decidir sobre a
cassação do seu mandato, ele não aceitaria o pedido de impeachment; se
não se comprometesse, o pedido de impeachment
seria aceite. Assim, tal e qual! Como o PT não se comprometeu, Cunha fez
“negócio” com o PSDB: aceitaria os pedidos de impeachment contra a Presidente, se o PSDB e
aliados votassem contra a instrução do seu processo de cassação. O negócio
fez-se e o impeachment foi admitido.
Feito o “negócio”, começou a via sacra da
Presidente. Cunha aceitou os pedidos e fez votar, contra a praxe constitucional
em vigor, a composição da comissão instrutora à revelia das lideranças
partidárias. Entretanto, a maioria da comunicação social, em guerra aberta
contra o PT, encarregou-se de criar na opinião pública um clima muito
desfavorável à Presidente; por outro lado, as entidades que conduziam a
investigação de alguns processos de corrupção, como a famosa Operação Lava
Jacto, nos quais está implicada grande parte da classe política brasileira,
com a colaboração de magistrados judiciais filiados no PSDB ou simplesmente
movidos por uma militância política invejável contra o governo, foram passando
selectivamente para a comunicação social partes comprometedores dessas
investigações para assim acentuar junto da opinião pública a ideia de que a
corrupção no Brasil era no essencial comandada pelo PT. Embora nada houvesse contra
a Presidente neste estrito domínio da corrupção, os sucessivos “vazamentos” de
peças processuais criaram o tal clima propício a fazer prosperar qualquer
acusação. Não havia corrupção da Presidente, mas havia os tais “crimes” acima
referidos. E foi com eles que se fez o arremedo de instrução que domingo
passado a Câmara decidiu viabilizar.
A viabilização do processo carece de aprovação pela
Câmara dos Deputados por dois terços dos deputados e tem em vista o seu envio
para o Senado onde será julgado. Este, por seu turno, terá de decidir por
maioria simples (41 votos) se aceita ou não o processo; se não aceitar, nada
acontecerá; se aceitar, a Presidente é imediatamente suspensa por 180 dias,
prazo durante o qual o cargo será exercido pelo Vice-Presidente e no qual o processo
terá de ser julgado pelo Senado; se o julgamento não ocorrer dentro desse
prazo, a Presidente retoma as suas funções aguardando no desempenho destas o
julgamento do Senado. A decisão condenatória do Senado, que implica a
destituição da Presidente, tem de ser aprovada por dois terços (54 votos) para
ter esta consequência.
Como é óbvio, a instrução de um processo desta
natureza por um órgão político, só poderá ser uma instrução orientada por
critérios políticos. O que no presente processo assume foros de profunda
rejeição e repugnância por uma mentalidade criada e formada à luz dos padrões
europeus é, por um lado, a vulgaridade do pretexto que serve de base ao impeachment
e, por outro, a volatilidade dos votantes, sendo que a maioria destes é
constituída pelos aliados de véspera.
A destituição de um Presidente da República,
eleito directamente pelo voto popular, é um acto de extrema gravidade na medida
em que opera a substituição da legitimidade democrática originária por uma
legitimidade derivada, visto o novo Presidente retirar a sua legitimidade do
voto do Congresso. É uma espécie de eleição indirecta que afasta o resultado da
eleição directa. Assim sendo, só por factos gravíssimos ela se poderá
justificar. A lei, em teoria, conta com a honorabilidade dos deputados
e exige uma maioria qualificada para garantir a justeza do resultado.
O grave da situação a que no domingo assistimos é,
insiste-se, a vulgaridade dos factos indiciados, relativamente aos quais quase
nenhum votante do SIM se referiu e a volatilidade do voto. Ou seja, aqueles que
ainda há um mês faziam parte da "base aliada"e votavam favoravelmente na Câmara as
propostas por apresentadas pelo Governo, passaram, do dia para a noite, a renegar o que
durante cerca de quinze anos tinham defendido.
Apesar de este procedimento já ser em si muito
grave, terá de reconhecer-se que muitíssimo mais grave é no Brasil quase toda a
gente achar isto perfeitamente normal. Essa a verdadeira tragédia brasileira!
Essa a razão por que o espectáculo de ontem repugnou às mentalidades
democráticas. Repugnou a ponto de causar vómitos não tanto a condução dos
trabalhos por um corrupto pertinaz e desavergonhado, como o ar de felicidade
incontida com que o Vice-presidente assistia na residência oficial à votação na
Câmara, ele que tinha sido eleito como aliado na “chapa” de Dilma. Um acto
público de traição como somente as personalidades completamente desprovidas de
carácter e de valores são capazes de protagonizar. Esta, sim, a verdadeira
tragédia brasileira. A completa ausência de valores que tudo faz parecer
normal, absolutamente normal.
Era mais que evidente para quem conhece
minimamente os meandros da política brasileira que o SIM só em casos muito
contados foi um voto ideológico. O SIM, os 367 votos que deram luz verde ao
envio do processo para o Senado, era no essencial um voto negociado. Um voto em
troca de favores de toda a espécie. Diz-se no Brasil – e este facto será fácil
de confirmar – que nunca o aeroporto de Brasília recebeu tantos “voos
executivos” como em 16 e 17 de Abril do passado fim de semana…
Com este acto, com a vergonhosa palhaçada que
acompanhou a votação de domingo, a “democracia” brasileira desacredita-se aos
olhos do mundo e, pior do que isso, será motivo de chacota em toda a América
Latina. Os “catedráticos” que ainda há dias desmereciam do operário “semi-analfabeto”
e exigiam que o Brasil fosse governado por gente culta, bem podem agora orgulhar-se
da vergonhosa imagem que deram do Brasil a que eles pertencem e do Brasil que
eles realmente querem "reconstruir"!