E AGORA, COMO VAI SER?
Tal como se esperava o Senado brasileiro aprovou por maioria
confortável a admissibilidade do pedido de destituição da Presidente Dilma
Rousseff. Esta deliberação tem como consequência imediata a suspensão da Presidente
eleita por 180 dias e a sua substituição no exercício do cargo pelo
Vice-Presidente. Se no prazo de 180 dias o processo não for julgado no Senado,
a Presidente retomará as suas funções, aguardando no exercício das mesmas a deliberação
do Senado. A deliberação de Senado para afastar a Presidente tem de ser tomada
por maioria qualificada de dois terços, ou seja, por 54 votos. Considerando que
a deliberação de admissibilidade do processo foi aprovada por 55 votos não será
necessário ser dotado de grandes dotes de adivinho para antecipar que a
Presidente será destituída.
Quem assistiu à longa maratona do processo de admissibilidade
desde logo percebeu que o Senado estava desde o primeiro minuto da reunião
interessado em manter as suas distâncias relativamente à Câmara dos Deputados
em tudo quanto respeita ao contexto da discussão e votação do processo de
admissibilidade, dando a imagem de um clima mais racional do que aquele que
votou na câmara baixa o início do processo.
A coreografia mudou tanto quanto possível, mas essência do
processo não se alterou. De facto, por mais que o Senado fizesse questão de dar
a ideia de que estava seriamente a discutir um problema grave, sublinhando muitos
senadores no início das suas intervenções com um ar fingidamente compungido que
não contavam ter sido eleitos para desempenhar aquele papel, acrescentando
outros que preferiam não estar ali naquele momento, a verdade é que, não obstante
esse ar de pretensa seriedade, nenhum dos senadores que votou a admissibilidade
conseguiu apagar o facto de com esse voto estar a ser cúmplice de um processo
iniciado com base numa chantagem política de um corrupto que, para tentar
salvar a pele, conseguiu negociar a admissibilidade de um processo de “impeachment” a troco de três votos favoráveis às suas pretensões na Comissão de Ética!
Ou seja, é tão moralmente condenável a conduta dos senadores quanto
a execrável actuação do, para já suspenso, Eduardo Cunha.
Em segundo lugar, esse ar de pretensa seriedade nunca foi ao
ponto de levar os senadores que votaram “sim” a discutir a verdadeira essência
do processo, ou seja, aquela que segundo a Constituição pode fundamentar um
processo de destituição. Essa questão – os fundamentos jurídicos da destituição
de Dilma – passou ao lado de quase todas as intervenções, que preferiram
trilhar o caminho mais simples e seguro de sublinhar a profunda divergência política
que (agora) os separa do governo do PT. Ou seja, sem se darem verdadeiramente
conta do papel que estavam a desempenhar, os senadores estavam com as suas
intervenções a cohonestar a tese de que substituindo-se ao voto popular
poderiam desde já assegurar o resultado que daqui a dois anos poderia ser
incerto.
De facto, não há no mundo nenhuma Constituição democrática
que consagre como fundamento do processo de destituição de um presidente eleito
pelo sufrágio universal a divergência política, seja ela superficial ou
profunda.
Em terceiro lugar, nenhum senador que votou favoravelmente a
admissibilidade do processo de destituição da Presidente Dilma Rousseff ousou
sequer iniciar um começo de resposta à brilhante argumentação produzida pelo
Advogado Geral da União, José Eduardo Cardozo, que demonstrou com factos inquestionáveis
que os fundamentos (“pedaladas fiscais” e decretos presidenciais) em que se
baseou a decisão do Senado eram comuns a todos os que exerceram a presidência
da república na vigência da Constituição de 1987 e, além disso, admitidos pelo
Tribunal de Contas da União. A partir do momento em que pela primeira vez, no
mandato de Dilma, a juridicidade desses actos foi questionada pelo Tribunal de Contas,
eles deixaram de ser praticados, o que obviamente desmonta a tese do dolo como elemento
indispensável à admissibilidade do processo e posterior condenação.
Mas de nada adianta invocar argumentos jurídicos
relativamente a um processo que, assentando pretensamente em fundamentos
jurídicos, é na essência político, como as intervenções dos senadores deixam
perceber. O poder legislativo entendeu que estavam criadas as condições
políticas para substituir o principal detentor do poder executivo e foi isso
que fez.
O que a seguir vai acontecer dependerá muito do grau de satisfação
e compatibilização dos múltiplos interesses que estão na base desta complicada
aliança. Interesses políticos pessoais (são muitos os deputados e senadores
indiciados por actos de corrupção) e interesses de grupo, isto é, de classe e dos
múltiplos estratos sociais que com o dealbar da crise económica pretendem
garantir-se contra a perda de privilégios. Vai ser certamente difícil dar
satisfação a todos estes interesses, mas já será mais fácil a políticos hábeis
e muito experimentados na demagogia política no curto espaço de 180 dias acalentar
a ideia de que está em curso uma verdadeira viragem política, consolidando assim
a transferência de poder que o processo de destituição proporciona
Certamente que Dilma não tem nada a perder se continuar a lutar, já que nada de pior do que lhe está acontecendo lhe poderá acontecer. Todavia, é ainda cedo para perceber como vai o PT actuar nos próximos 180 dias. Sendo certo que se oporá a qualquer política do novo Governo que tenda a pôr em causa as suas realizações mais emblemáticas e sendo certo também que apoiará Dilma no "julgamento" do Senado, o mais provável é que Dilma vá sendo lembrada apenas como vítima sem contudo continuar a desempenhar um papel de relevo na estratégia do partido.
Certamente que o PT foi vítima do seu próprio percurso e do
modo como interpretou o exercício do poder, só isso podendo explicar a
debandada dos seus múltiplos aliados que, guiados pelo oportunismo político,
interpretaram algumas manifestações da sociedade brasileira como o fim de um processo,
tentando pôr-se imediatamente a salvo das suas mais óbvias consequências mediante
a busca de alianças com os adversários da véspera, imprescindíveis para estes
no curto prazo.
Não obstante o quadro sociológico que possibilitou o golpe, contrariamente
ao que pensa a direita e os nossos comentadores bem pensantes que fingem não
ser de direita, o processo de destituição de Dilma Rousseff terá profundas
repercussões no Brasil e nos processos democráticos da América Latina, pois
ninguém à esquerda deixará de reflectir e tirar as devidas consequências desta
nova modalidade de golpe de Estado.