O QUE REALMENTE SE
PASSOU
Este post foi escrito no dia 17 de Julho. Depois de escrito
achei que não valia a pena publicá-lo pelo muito que sobre o assunto já se
tinha falado. Oito dias depois, como a questão das sanções mantém toda a
actualidade, acho que se justifica a sua publicação. E então aqui vai ele.
Um ou dois dias depois da última reunião do Conselho de
Estado (11 de Julho de 2016) foi notícia em quase todos os jornais a posição
assumida por Cavaco Silva sobre as sanções que a União Europeia pretende impor
a Portugal por incumprimento das metas do défice. Segundo as notícias
veiculadas por diversos órgãos de informação, Cavaco teria sido o único
conselheiro a mostrar compreensão pela posição da União Europeia, apesar de o
comunicado do Conselho, lacónico e pouco esclarecedor, como quase sempre, não dar
nenhuma pista nem sobre o que realmente se passou nem sobre a quebra de
unanimidade por parte de algum conselheiro.
Esta notícia originada, evidentemente, numa fuga de
informação, iria pôr direita em sobressalto e obrigá-la a desmentir, por meias
ou inteiras palavras, a posição de Cavaco.
Tendo-se tornado evidente que a direita tem sobre esta
matéria uma atitude dúplice, realmente quer as sanções, mas está
impossibilitada de o defender publicamente, o alegado comportamento de Cavaco,
estribado no seu sincero ultra-reaccionarismo, causar-lhe-ia uma incontornável
incomodidade política da qual só teria que se afastar, deixando-o formalmente
isolado. Ou então, para manter a solidariedade com o ex-Presidente da República,
o caminho mais fácil de trilhar seria dar como falsas e sem fundamento as
notícias veiculadas.
Esta segunda via só poderia ser seguida com algum êxito por
aqueles que, tendo participado na reunião do Conselho de Estado, pudessem, pelo
simples facto da sua presença nessa reunião, atestar a inveracidade das
declarações atribuídas a Cavaco.
Só que para seguir este caminho havia uma dificuldade difícil
de contornar: a natureza secreta das reuniões do Conselho de Estado. Para
aparecer à luz do público a desmentir com nome e com cara as notícias postas a
circular seria preciso violar o segredo de Estado.
Este segredo, como qualquer outro segredo de Estado, não é um
segredo cujo cumprimento ou incumprimento esteja na disponibilidade do
Presidente da República. Não é o Presidente da República que determina o que é
e o que não é segredo de Estado, da mesma forma que, por maioria de razão, também
não o Presidente da República que está autorizado a dizer quem tem e quem não
tem que cumprir o segredo de Estado. O segredo de Estado é imposto por lei e
somente a lei dirá em que termos pode esse segredo ser legitimamente afastado.
Ora, o Regimento do Conselho de Estado é claro a este
respeito: “As
atas do Conselho de Estado não podem ser consultadas nem divulgadas, durante um
período de 30 anos a contar do final do mandato presidencial em que se
realizaram as reuniões a que respeitam”.
Excepcionalmente, a consulta e a divulgação das actas pode ser autorizada no
todo ou em parte por decisão do Presidente da República.
Por outro lado, “Os membros do Conselho de Estado e o secretário têm o dever de sigilo
quanto ao objeto e conteúdo das reuniões e quanto às deliberações tomadas e
pareceres emitidos”, salvo nos casos em que a divulgação dos pareceres está
expressamente prevista na lei.
Em caso alguma a lei diz ou poderia dizer que o
Presidente da República pode autorizar o Conselheiro X ou o Conselheiro Y a
divulgar o que se passou no Conselho de Estado. Somente por manifesto atentado
à inteligência do espectador, do leitor ou do ouvinte se pode pretender fazer
passar a ideia que a dispensa do dever de sigilo pode ser casuisticamente
concedida pelo Presidente da República a este ou aquele conselheiro sobre o assunto
A ou B. Francamente, não é preciso ser jurista para compreender isto. E muito
menos é compreensível que um jurista o afirme!
Pois bem, não obstante esta evidência, o caminho que tanto
Lobo Xavier como Marques Mendes encontraram para poderem refutar as notícias
sobre a posição de Cavaco foi a de pedirem ao Presidente da República que os
dispensasse do cumprimento daquela obrigação, com base no argumento de que,
sendo eles comentadores políticos de televisão, curiosamente da mesma estação,
seria natural que o “pivot” dos programas
em que participam, os confrontasse sobre a “posição” de Cavaco. Posto perante
este “estado de necessidade”, Marcelo tê-los-á autorizado a desmentir a
notícia.
Este episódio é bem elucidativo, a dois títulos - qual deles
o mais importante - do modo de funcionar da direita: o primeiro, por nos
esclarecer eloquentemente como a direita encara a lei e as funções públicas; e
o segundo, por revelar, igualmente com muita nitidez, a incomodidade e a
perturbação que as notícias sobre a posição de Cavaco causaram à duplicidade
com que a direita tem agido neste domínio.
É claro que Cavaco por muito reacionário que seja e por muito
que queira causar dano ao Governo de António Costa (e quer) tem a experiência
política suficiente para se pôr a coberto das afirmações mais óbvias. Cavaco
não imitou, certamente, Maria Luís Albuquerque a qual, não obstante ter o
condão de mentir como quem respira, foi, por uma vez, sincera e verdadeira
quando a propósito do mesmo tema não teve dúvidas em afirmar categoricamente
que ”Comigo como Ministra não haveria
sanções”. Ou seja, não teve dúvidas em deixar claro que as sanções, a
acontecerem, teriam de ser entendidas como uma punição política ao Governo de
Costa.
Cavaco seguramente irmanado no mesmo desejo, mas com outra
experiência política, não terá afirmado, preto no branco, que as sanções eram
devidas. O que Cavaco realmente disse, reproduziu-o com bastante fidelidade
Raul Vaz, no programa “Contraditório” do dia 15 de Julho, na Antena 1.
Como a Raul Vaz lhe falta em inteligência e em experiência
política o que lhe sobeja em reaccionarice e em obediência partidária, também ele não
teve dúvidas, supondo que estava a defender Cavaco, em reproduzir com
suficiente fidelidade o que Cavaco realmente disse no Conselho de Estado.
E o que Cavaco realmente disse no CE foi que a falta de
confiança nas políticas do Governo afastava os investidores, que sem
investimento nenhuma recuperação económica seria sustentável, que a
competitividade da economia portuguesa (leia-se salários) também não era
atraente, que o relançamento da procura interna desequilibrava as contas
externas e que sem a continuidade das políticas de ajustamento agravar-se-ia
necessariamente o défice orçamental e o défice externo. Insistiu fortemente no
cumprimento das regras e dos “compromissos” internacionais e recusou-se a
aceitar, sem os citar, que comportamentos externos (como as ameaçadoras palavras
de Schäuble, as fugas de informação do BCE, as intervenções do holandês do
Eurogrupo, as declarações do FMI,, enfim, de todos os que têm feito o possível
por fazer com que os juros voltem a subir para Portugal) tivessem alguma
influência no desenrolar dos acontecimentos. Se as coisas correrem mal, como
ele acredita que vão correr, a responsabilidade seria toda de quem internamente
conduz a política económico-financeira do país.
Ou seja, Cavaco traçou um quadro negro da actual experiência
política em curso, reproduzindo quase ipsis
verbis o que internacionalmente tem sido dito pelos que estão apostados no
derrube do Governo, deixando, obviamente, subentendido que as sanções pela sua
natureza preventiva poderiam ser um “bem” para Portugal.
Portanto, fazendo fé nas palavras de Raul Vaz, que
manifestamente estava incumbido de reproduzir com fidelidade a posição de
Cavaco, bem se pode afirmar que das palavras do ex-Presidente da República
resulta indirectamente a defesa das sanções. Aliás, se assim não fosse, Cavaco
já teria posto termo a esta polémica, afirmando solenemente que é contra as sanções.
E para o fazer não precisava de violar qualquer regra do Conselho de Estado.
Bastava-lhe emitir a sua posição sobre o assunto se essa fosse discordante da
posição que a UE se prepara, prepotentemente, para tomar.
Cavaco não o fez nem o fará por coerência política. Cavaco defende
tão convictamente o derrube do Governo que foi obrigado a empossar, as políticas
de Schäuble e as política da Troika que se estaria a trair a si próprio se
viesse agora demarcar-se da consequência lógica e necessária do desalinhamento dessas
políticas.
Numa palavra: a conspiração da União Europeia contra o
Governo português tem aliados internos. Sempre assim foi na História de
Portugal. Não obstante…Portugal existe e vai continua a existir. E eles, os
aliados do inimigo externo, estão devidamente catalogados na História de
Portugal….