SOBRE A INDEPENDÊNCIA
DE ESTADOS
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O TEMA
A propósito da vontade do governo catalão promover um
referendo em que tenciona questionar o eleitorado sobre se a Catalunha – região
autónoma de Espanha – deve constituir-se em Estado independente, muita coisa
tem sido dita sobre o “direito à independência”.
Essa a razão por que convém tecer algumas considerações sobre
a independência e o direito à independência.
Um Estado diz-se independente quando à luz do direito
internacional existe uma realidade jurídico-política que o direito
internacional considera como tal.
Essa realidade existe com essa qualificação jurídico político
sempre que ela apresenta as seguintes características:
Um território; uma população; e um governo que exerça, sem
dependência de um poder superior, a sua jurisdição sobre esse território e
sobre essa população na defesa de interesses próprios.
O território não tem de ser rigorosamente definido, embora
tenha de existir um espaço territorial sobre o qual aquele poder se exerça, nem
tem de haver continuidade geográfica, embora essa seja a regra nos Estados
continentais, salvo quando engobam áreas insulares, como acontece com
variadíssimos Estados em todo o mundo.
A população não tem de ser etnicamente homogénea, nem
rigorosamente definida. Embora não possa ser uma população nómada, hoje está
num lugar, amanhã noutro, fora da jurisdição de que acima falámos.
Finalmente, tem de haver um governo. Não no sentido de um
poder executivo, mas de um poder, mais ou menos complexo, com ou sem separação
de funções, que represente essa colectividade, imponha a sua jurisdição sobre
aquele território e aquela população, no desempenho de um poder próprio, e não
como entidade subordinada a um poder superior.
Quando estas características estão reunidas essa entidade
será considerado um Estado e poderá estabelecer relações com outros Estados, se
como tal for por estes reconhecido.
O reconhecimento por outros Estados é decisivo para que
aquela entidade possa considerar-se e firmar-se como Estado, embora o
reconhecimento não tenha natureza constitutiva (isto é, um Estado não existe
porque é reconhecido; é reconhecido porque existe como Estado), mas meramente
declarativa (os outros Estados limitam-se a constatar, segundo a sua própria
apreciação, que aquela entidade constitui um Estado, sendo por isso reconhecida
como tal).
O reconhecimento não é obrigatório; não existe nenhuma norma
de Direito Internacional que imponha o reconhecimento verificados que sejam
determinados pressupostos. Mas o contrário, segundo a opinião dominante, já se não
verifica. Ou seja, não pode ser reconhecida como Estado uma entidade que não
reúna os pressupostos necessários à sua
qualificação como Estado.
A inexistência de uma norma sobre a obrigatoriedade do
reconhecimento é fácil de explicar. A prática dos Estados é, a este respeito,
muito fraccionária – umas vezes reconhecem, outras, perante uma situação
idêntica, não reconhecem. Mais: o mesmo
Estado usa frequentemente esta duplicidade de critérios em função dos seus
interesses – umas vezes reconhece como Estado uma determinada realidade, outras
não reconhece como tal uma outra realidade substancialmente idêntica.
Ora, se não há, se não existe um comportamento constante e
uniforme dos Estados acompanhado da convicção de que ele é juridicamente
obrigatório nenhuma norma geral se pode formar a esse respeito. E é isso o que
se passa no actual estadio do Direito Internacional.
Daqui resulta, portanto, que a independência é uma situação
de facto: ou se tem ou se não tem. A expressão jurídica dessa situação de facto
chama-se soberania. Um Estado é soberano – nenhum poder existe acima do seu – porque
é independente.
Hoje, no actual estadio das relações internacionais e da
ocupação das terras de todo o planeta (ou seja, não há terras de ninguém “res
nulius”, todas as terras estão ocupadas e têm dono) e em que todas as situações
coloniais estão auto-determinadas, um Estado só se pode formar à custa da
amputação de uma parte do território de um Estado pré-existente.
Aqui dois tipos de situações se podem considerar: uma é a das
Federações, outra a dos Estados unitários ou descentralizados, de natureza
não federativa.
De uma maneira geral as federações não reconhecem o direito
de as partes se separarem e declararem a respectiva independência. Com excepção
da União Soviética, cuja constituição previa expressamente o direito à
separação, nenhuma outra consagra esse direito. E o que se tem visto é que
quando uma das partes pretende fazê-lo contra o disposto na respectiva constituição, normalmente há guerra. Ou seja, vai ser pela força que a separação
se consuma ou a federação se mantém intacta.
Exemplo recente do primeiro caso é o da Jugoslávia; do
segundo, o mais significativo é o dos Estados Unidos da América, da terrível
guerra civil que se seguiu à secessão dos estados confederados do Sul – a guerra
mais mortífera e mais violenta de todo o século XIX, mais que as guerras napoleónicas!
Pode, porém, acontecer, independentemente do disposto na constituição,
que certas federações admitam por acordo separar-se, como aconteceu em finais
do século XX com a República da Checoslováquia; ou que outras, como o Canadá e
o Reino Unido, admitam submeter à vontade referendária da parte que se pretende separar a respectiva decisão, como aconteceu no seculo XX com o Québec (Canadá) e recentemente com a Escócia
(Reino Unido).
Em nenhum destes casos, porém, existia um direito
pré-existente à independência ou um direito a decidir. Foi um procedimento que se chegou por acordo político entre as partes.
Nos outros casos, em que não havia o direito à separação e a independência acabou por alcançar-se, foi pela força e o apoio bélico, ou não, de uma, ou mais, grande potência que a mesma se conseguiu, como aconteceu na desagregação da Jugoslávia (Croácia, Eslovénia, Bósnia-Herzegovina, Macedónia e Kosovo), já que o caso de Montenegro é ligeiramente diferente, embora decorrente daquele contexto.
Nos outros casos, em que não havia o direito à separação e a independência acabou por alcançar-se, foi pela força e o apoio bélico, ou não, de uma, ou mais, grande potência que a mesma se conseguiu, como aconteceu na desagregação da Jugoslávia (Croácia, Eslovénia, Bósnia-Herzegovina, Macedónia e Kosovo), já que o caso de Montenegro é ligeiramente diferente, embora decorrente daquele contexto.
Nos estados unitários, regionalizados ou não, a independência
de um novo Estado também só pode ocorrer mediante a amputação de uma parte do
território do Estado pré-existente. Com excepção da Eritreia, cuja independência se alcançou por
acordo entre as partes num quadro de grande fragilidade internacional da Etiópia, todos os
demais casos ou tentativas de independência ocorreram ou ocorrem num quadro
altamente conflituoso, normalmente bélico.
Convém ainda esclarecer um outro ponto sobre o qual reina uma
imensa confusão, mesmo em alguns dos meios mais eruditos
deste país, quando se invoca o direito à autodeterminação para justificar o direito a decidir ou à independência da Catalunha.
O direito dos povos à autodeterminação que a Carta das Nações
Unidas consagra e a Constituição da República Portuguesa reconhece e apoia (Art.º
7.º, CRP) respeita aos povos dos territórios não autónomos submetidos a
situações coloniais. As Nações Unidas, desde a sua instituição em fins da década de quarenta do século passado até à extinção de
todas as situações coloniais, travaram uma importantíssima batalha política contra as potências coloniais que se recusaram a reconhecer aquele direito aos povos dos territórios colonizados, nomeadamente contra aquelas que mais resistiram, como foi o caso de Portugal. Uma batalha longa, porém, totalmente vitoriosa já
que todos os povos desses imensos territórios do Médio Oriente, da Ásia, da Oceania, da
África, enfim, de todas as partes do mundo onde a situação existia, lograram exercer
o direito à autodeterminação, tendo a esmagadora maioria deles alcançado a independência por
essa via.
Como não há qualquer situação colonial na Catalunha nem,
felizmente, em qualquer outra parte do mundo, o direito à autodeterminação não
pode ser invocado como pressuposto da independência. O que ainda existe
relativamente a outros territórios – não na Catalunha, evidentemente – é uma “ocupação”
territorial com pretensões de anexação. Mas estas são situações diferentes,
sujeitas a um regime jurídico igualmente diferente. O direito internacional
regula as situações de “ocupação”, em regra decorrente de uma guerra, mas
proíbe peremptoriamente qualquer anexação que na sequência dessa ocupação se
pretenda fazer.
Analisada friamente a situação da Catalunha (ver sobre este assunto o excelente texto de Matos Gomes no Facebook), a conclusão que
racionalmente se impõe é a de que não existe qualquer “direito” da Catalunha à
independência ou sequer o “direito a decidir” sobre a independência.
Mas quer esta conclusão dizer que a Catalunha não pode ser um
Estado independente? De forma alguma, a Catalunha pode tornar-se um Estado
independente como tantos outros na Europa nestes últimos trinta anos igualmente
se tornaram sem que qualquer prévio direito à independência existisse. Para
isso a Catalunha vai precisar de lutar pelos meios que considerar mais eficazes
e vai ter de contar, para ter êxito, com o apoio de uma grande potência, sem a
colaboração da qual essa vontade estará quase a cem por cento votada ao
insucesso. De facto, foi por essa via que na Europa as independências mais recentes se
alcançaram, a acabar na do inacreditável Kosovo.
Como diria um conhecido revolucionário chinês a propósito da
Revolução, também nós aqui o poderemos dizer relativamente à independência: “A
independência não é um chá dançante!”.
Portugal, como pequeno e velho pais desta turbulenta Europa
sabe bem, a duras penas, o que é lutar pela independência. Quem estiver
convencido que isso se consegue com votos ou decisões democráticas ou com
tiradas morais mais ou menos grandiloquentes não só está redondamente enganado,
como também está a criar uma frustrante ilusão.
Este post nada tem a
ver com as simpatias ou antipatias do autor relativamente às partes envolvidas,
mas apenas e só com a crua realidade dos factos.
Se nenhuma simpatia política nutrimos
por Castela, pela arrogância castelhana, a ponto de politicamente quase
podermos subscrever a grande máxima do país basco: “Não há nada mais parecido com um
espanhol de direita do que um espanhol de esquerda”, não obstante a
simpatia pela excelente gastronomia espanhola e pela beleza paisagística e urbana da Espanha
mourisca e de todo o norte galego, asturiano e cantábrico, também não nos
sentimos minimamente reconhecidos à Catalunha por factos passados – Portugal nada
deve à Catalunha. Portugal é independente pelo heroísmo e engenho do seu povo
que soube ao longo de nove séculos resistir, lutar e conservar a sua
independência.
Também não temos opinião fundamentada sobre o que é melhor ou pior para Portugal, tema, aliás, sobre o qual gastaríamos de ouvir os leitores.