O GOVERNO TEM DE
ASSEGURAR O REGULAR FUNCIONAMENTO DAS INSTITUIÇÕES
O Ministério Público com o “caso Centeno” pisou
manifestamente a linha vermelha, aquela linha que nas relações entre as autoridades
de investigação criminal e os membros dos diversos órgãos de soberania separa a
defesa do princípio da legalidade e da vinculação a critérios de objectividade
da pura acção política. E quando assim acontece é o regular funcionamento das
instituições que é posto em causa, cabendo ao Governo tudo fazer para o
assegurar e garantir, tanto mais que essa é a única causa prevista na
Constituição que permite ao Presidente da República demiti-lo.
Como já aqui foi dito, ninguém pode acreditar, a começar pelo
próprio Ministério Público, que possa existir uma relação de causa e efeito
entre uma isenção tributária (prevista na lei e de competência autárquica) e a
oferta de dois bilhetes para assistir a um jogo de futebol num espaço exclusivamente
reservado a convidados. Por outro lado, também não há qualquer identidade entre
o beneficiário dessa isenção e o autor da dádiva. Portanto, por este lado, a investigação
com vista à demonstração e posterior acusação de que haveria um recebimento
indevido de vantagem estaria desde o início votada ao mais completo
insucesso, só mesmo podendo a dita investigação prosseguir se houvesse um juiz
de instrução criminal movido pelas mesmas razões que movem o Ministério
Público, o que, a acontecer, apesar de ser gravíssimo para o prestígio e
idoneidade da magistratura judicial, nem por isso deixaria de redundar no tal
insucesso de que acima falámos, por não haver juridicamente outra resposta para
esta bizarra situação.
Portanto, postos perante a investigação que o Ministério Público
tem a seu cargo e dos contornos que ela tem assumido, é de esperar que na
opinião pública, ou numa parte significativa dela, se tenda a fazer um juízo
semelhante ao que é comum nos tais “comentários futebolísticos” a que ontem aludimos.
E esse juízo é, obviamente, o seguinte: o filho do presidente do Benfica tinha
um assunto “encalhado” na Câmara Municipal de Lisboa, ora como o Centeno é
adepto do Benfica e é por vezes convidado para assistir aos jogos do clube no
Estádio da Luz, nada melhor do que fazer suspeitar de que aquele “empurrão”,
que permitiu ao filho de Vieira ver o seu assunto resolvido, tivesse sido dado
por Centeno, que assim retribuiu, em eventual prejuízo do erário público, as
amabilidades (interesseiras) que Vieira lhe prodigalizou. Ou seja, como ontem
disse, não sendo possível acusar Centeno da prática de um crime e muito menos julgá-lo
e condená-lo, já que isso seria juridicamente inviável, o que acaba por
acontecer é atingi-lo na sua honorabilidade e integridade política, exactamente
do mesmo modo que Passos e Cristas, ou seja, a oposição, pretenderam fazê-lo quando
andaram durante mais de um mês à volta do “assunto da CGD”.
Mas aqui é que a questão se complica e muito: em primeiro
lugar, para que esse efeito possa ser alcançado, posto que parcialmente, a investigação
do Ministério Público e os seus contornos tem de ser amplificada pelo eco que
dela é dado pela imprensa e demais órgãos de comunicação social. E como é que
isto se faz? Primeiramente, filtra-se para a imprensa um email dirigido a Vieira, enviado pelo filho, agradecendo-lhe o “empurrão”;
depois faz-se saber que Centeno pediu ao Benfica dois bilhetes para ver o
Porto-Benfica da época passada (além da devassa em curso da correspondência do
Benfica, há também toda a correspondência do clube apreendida nas buscas do MP,
pelo que o conhecimento desse pedido só pode resultar de uma dessas duas fontes);
a seguir o Ministério Público, depois de publicadas as primeiras notícias na
imprensa do costume, faz saber publicamente que “está a acompanhar” o caso
e cerca de um mês e tal depois emite uma nota anunciando que procedeu a buscas no
gabinete do Ministro das Finanças, ficando a cargo dos jornais que
recorrentemente publicam peças processuais ou trechos das investigações que o
Ministério Público tem a seu cargo e à sua guarda, o trabalho de ilustrar os
pormenores e qualificar essas buscas. A partir daí, os demais órgão de comunicação
social vão dando conta do caso e discutindo-o, mantendo-o na ordem do dia. Só assim,
com todo este aparato se pode tentar alcançar o objectivo acima assinalado.
Ora isto não pode ser permitido. De forma alguma. O Primeiro
Ministro já hoje interveio num tom pouco habitual nele sobre este caso, que de
facto seria ridículo, como ele próprio o qualificou, se não fosse dar-se a circunstância
de ele ser muito mais do que isso. Ele representa um irregular funcionamento
das instituições, sendo da competência do Governo garantir e assegurar o seu regular
funcionamento.
Ora, como não há qualquer notícia de que hierarquia do Ministério
Público tenha tomado posição sobre este assunto – como, de resto também não
tomou relativamente a outros em que objectivamente não impediu, se é que não
favoreceu, o julgamento dos investigados na praça pública – também não há que
ter ilusões sobre o que a este respeito fará. Assim, para além da luta política
que deve ser travada nos diversos quadrantes da sociedade portuguesa que se
opõem a este estado de coisas, para que num futuro próximo se não vejam
repetidos em Portugal exemplos que estão acontecendo noutros cantos do mundo, o
Governo deve usar os instrumentos institucionais que tem ao seu alcance para
actuar sem complexos nem receios de ser acusado de estar a interferir na acção
da justiça, já que é exactamente disso que se trata: ou seja, O Governo deve assegurar
que o Ministério Público participa correcta e legalmente na execução da
política criminal definida pelos órgãos de soberania (a violação permanente do
segredo de justiça com vista a servir objectivamente os interesses da
investigação, nos múltiplos contornos de que essa investigação pode revestir,
não pode deixar de responsabilizar quem tem o processo à sua guarda,
representando essa permanente violação uma execução indevida e gravosa da
política criminal definida pelos órgãos de soberania competentes); garantir que
o MP exerce a acção penal orientada pelo princípio da legalidade democrática (constituindo violação deste princípio uma investigação que tenda a julgar na praça
pública os investigados, retirando todo o conteúdo ao princípio da presunção de inocência); bem como assegurar a vinculação da autonomia do MP a
critérios de objectividade (impedindo que factos que jamais possam ser
incriminados ou sequer objecto de uma acusação sejam fonte de investigações amplamente
publicitadas nos órgãos de comunicação social com a inevitável consequência
que dessa actuação resulta para a idoneidade e personalidade moral do
investigado). O Governo tem de velar pela correcta execução destes princípios, sempre
que eles não sejam respeitados ou sofram perigosas distorções.
Como não há, nem tem havido da parte da hierarquia do
Ministério Público a preocupação de pôr termo a práticas desprestigiantes para
a justiça portuguesa, o Governo por intermédio do Ministra da Justiça deve participar
numa das próximas reuniões do Conselho Superior do Ministério Público para
fazer uma comunicação sobre estes temas bem como para solicitar os
esclarecimentos que considere necessários e dar dessa participação, bem como do
seu conteúdo, público conhecimento.
Somente assim se defenderá o princípio da legalidade
democrática consagrado na Constituição da República Portuguesa!