A PROPÓSITO DA CIMEIRA DE HELSÍNQUIA
Acabei de ouvir os comentadores da Quadratura do Círculo falar sobre
Trump a propósito da cimeira de Helsínquia. E estou muito longe de partilhar a
ideia, por eles unanimemente defendida, de que o actual Presidente dos Estados
Unidos é um louco, que actua erraticamente, sem qualquer estratégia, lançando o
caos nas relações internacionais, nomeadamente entre os seus tradicionais
aliados.
Apesar de já estar no poder há cerca de ano e meio não é tão fácil como
habitualmente interpretar a estratégia do Presidente norte-americano. E não é,
porque Trump, não sendo um homem do establishment, tem tido muita dificuldade
em impor aquilo a que se poderia chamar a sua linha política. Errou, do ponto
de vista dele, na formação do Governo e da composição da Casa Branca. Por isso,
teve de fazer alterações, por vezes bruscas, outras de difícil compreensão,
tudo isto em consequência das cedências e recuos que se viu obrigado a fazer.
Daí um certo comportamento errático, absolutamente inabitual num político saído
de dentro do sistema.
Por outro lado, Trump é pouco elaborado intelectualmente, mais
parecendo um “popular” que embora tenha uma ideia do que quer fazer e acredite
nela, a expõe quase sempre com desconcertante simplismo e ainda menor eloquência.
Como é sensível à reacção dos que o escutam, tanto dos que se situam no seu campo,
como daqueles cuja força da opinião lhe pode causar dano, não tem qualquer
dificuldade em dar a entender que mudou de posição, fazendo-o com a mesma
leveza com que deturpa a verdade, mas sempre com vista manter o essencial do
que considera importante para sua acção política.
Este tipo de comportamento, próprio do empresário para quem o objectivo
primordial é o lucro, influencia decisivamente a sua acção política.
Trump foi eleito, como se sabe, com os votos dos desempregados, das vítimas
da globalização, em suma, de todos daqueles que têm dificuldade em compreender
que sendo a América tão forte, tão poderosa, teoricamente presente nos quatro
cantos do mundo, tem tanta gente dentro das suas fronteiras não apenas vivendo
tão mal, mas, pior do que isso, tendo perdido completamente a esperança de
poder vir a viver melhor.
Daí que, no pano interno, os seus inimigos sejam aqueles que conduziram
a América a esta situação e os que, vindos de fora, estão a prejudicar os
verdadeiros americanos, ou seja, aqueles que durante mais de meio século constituíram
a classe média americana, oriunda das classes trabalhadoras.
Para combater esses inimigos é preciso cerrar as portas à imigração,
desde logo à gigantesca imigração ilegal na sua esmagadora maioria proveniente
da América Latina, e é preciso também onerar aqueles que estão a arruinar a
América vendendo-lhe produtos que deixaram de ser produzidos nos Estados Unidos,
exportando-lhe com eles desemprego e desolação.
No contexto desta perspectiva, Trump vê a América como uma empresa, uma
empresa sem outra ideologia que não seja o lucro. As empresas não têm por
função segregar ideologia ou fazer a defesa de “valores” que desempenhem um
papel fundamental no plano ideológico.
Nunca ninguém até hoje ouviu Trump falar na defesa dos “valores”
americanos, da “democracia”, enfim, de toda essa ladainha com que os americanos
desde há quase um século têm cimentado a sua hegemonia política.
Trump está fora desse mundo. Trump vê o mundo como um campo de acção concorrencial,
onde o mais forte tenta esmagar o mais fraco, retirando-o do mercado ou
limitando-lhe o mercado. Mas como qualquer empresário Trump também percebe que,
sendo esse o objectivo, dificilmente o poderá alcançar por inteiro. Daí que
tenha que negociar com a concorrência e aceitar a sua presença no mercado se
ela for suficientemente forte para não sucumbir às suas arremetidas.
É neste contexto que ganham sentido e racionalidade as suas relações
com a Rússia, com a União Europeia, com a Ásia, principalmente com a China.
Para Trump a Rússia não só não é concorrente perigoso como até lhe pode
ser útil na luta contra os seus verdadeiros inimigos. Como empresário, Trump
sabe do que fala. Sabe que a Rússia não ameaça a sua “America First”. Essa
ameaça vem de outras paragens. Desde logo dos seus vizinhos do Norte e do Sul
em consequência dos tratados negociados por políticos americanos que “desgraçaram”
a América e cujas vantagens ideológicas, que deles pretendiam obter, em nada
interessam a América, porque não a engrandecem, apenas a empobrecem. Depois vem
a União Europeia, um inimigo de peso, um inimigo que vive à custa da América,
que lhe custeia quase integralmente os custos de defesa militar e lhe “dá” como
contrapartida uma balança comercial fortemente deficitária, o que é na
mundividência de Trump é algo de absolutamente inaceitável. Daí que Trump tudo
tenha feito para desarticular a UE e, se bem se reparar, quando admite que alguém
na Europa o possa ajudar nesses objectivo (como chegou a supor que poderia
acontecer com o Reino Unido depois do Brexit) o que lhe oferece como recompensa
não é um tratado de defesa ou um reforço da sua capacidade militar, mas …um
vantajoso tratado de comércio!
Finalmente, a Ásia, principalmente a China, à qual, depois de ter
declarado guerra comercial, enfraquecendo-a, procura igualmente roubar aliados.
E é nesse contexto que tem de ser interpretadas as “negociações” com a Coreia
do Norte, muito difíceis de levar a cabo por se depararem com a feroz oposição do
establishment americano que tudo, mas tudo, fará para as boicotar. Trump está
mais interessado em “roubar” este aliado à China do que em manter na península
coreana uma pujante base militar que, para a sua “guerra”, de pouco lhe serve.
Os actos políticos de Trump mais difíceis de explicar são o abandono do
tratado nuclear com o Irão e a mudança da embaixada americana de Telavive para Jerusalém
Embora muitos vejam no petróleo a motivação fundamental destas suas decisões bem
como a consequente importância estratégica do Médio Oriente para os Estados
Unidos, a verdade é que não sendo estes os pressupostos que têm orientado a
política de Trump, seja mais fácil explica-los em função da influência israelita
na política americana a que Trump não consegue escapar. Mas serão actos que,
embora simbolicamente importantes, terão menos relevância do que se supõe. De
facto, a Rússia já se encarregou de desarmadilhar parte da sua importância
política, reiterando defender a segurança de Israel com múltiplas cumplicidades
militares à mistura, não obstante manter uma relação privilegiada com Teerão.
Quem sofre mais com tudo isto e quem tem mais dificuldade em compreender
o actual Presidente americano são os aliados tradicionais da América que, tendo
ficado ideologicamente órfãos, vão passar um mau bocado para se recompor. Tanto
pior quanto maior for a incerteza acerca da duração desta política.
Concluindo: será Trump um perigo para a humanidade, como amiúde se ouve
dizer e se teme? Trump, antes de poder ser um perigo para a humanidade, é um
perigo para si próprio. Não é de pôr de parte a hipótese de Trump ser um alvo a
abater se persistir em levar à prática as suas ideias. Mas acaba também por ser
um perigo para a humanidade por estar sujeito ao cerco feroz do establishment
americano, o que numa personalidade como a sua, alicerçada num populismo que
não pode admitir fraquezas, sob pena de se desmoronar, a pode levar à prática
de actos de grande exibicionismo político, de funestas consequências, para
manter intacta a ideia de que não sucumbe à acção dos concorrentes.
Esta é uma tentava de explicação, politicamente incorrecta, da acção
política de Trump.