Nunca tive uma especial simpatia pelo “Chavismo” quer na sua
versão original, quer na actual. Do mesmo modo que nunca me revi, como apoiante
convencido e empenhado, nas políticas de outros governos progressistas da
América Latina que chegaram ao poder por via eleitoral, nos últimos anos do
século passado e na primeira década deste século, depois da queda das ditaduras
militares e das primeiras experiências neoliberais no continente.
Sem nunca perder de vista a natureza excepcional do
continente americano, no contexto dos povos deste planeta, diferente dos
demais, por o exercício do poder, nas suas múltiplas vertentes, continuar
tributário de três fases inapagáveis do respectivo processo histórico – Conquista, Extermínio e Escravatura,
em que o colonialismo, que nada teve a ver com o colonialismo europeu em África
ou na Ásia e menos ainda com o colonialismo clássico, desempenhou um papel
secundário, salvo na criação e radicação das oligarquias de origem europeia e
sua posterior consolidação - teria sempre de aceitar que aquelas experiências,
embora muito limitadas nos seus objectivos e meios, representavam um progresso
relativamente à situação anterior por visarem dar alguma consistência prática a
direitos antes reconhecidos, mas sempre sem conteúdo efectivo, a centenas de
milhões de deserdados, herdeiros directos e indirectos daquelas três fases
acima assinaladas.
A via escolhida em toda a parte, ou quase, por esses governos
progressistas foi a de uma aliança com sectores das oligarquias, em alguns
países sem outro critério que não o do seu peso eleitoral, sem qualquer
preocupação de natureza ideológica, como foi o caso do Brasil, e a implementação
de uma política fundamentalmente assente na subsidiação dos estratos populacionais
mais carenciados ou mesmo miseráveis. É certo que, simultaneamente, houve
importantes investimentos no ensino, na saúde e na segurança social com vista a
dar alguma consistência prática a direitos teoricamente reconhecidos. O poder
económico, porém, continuou intangível com a mesma estrutura de sempre.
Dai resultou que os progressos alcançados nestas sociedades
que se mantinham, no essencial, duais, desde sempre se revelaram muito frágeis
e pouco consistentes já que bastaria uma mudança do ciclo político-económico para
que a maior parte destas conquistas se perdesse ou a sua consistência ficasse
exclusivamente dependente do ciclo económico-financeiro, agravado no caso dos
países latino-americanos por todos eles continuarem muito dependentes do mercado
internacional.
A isto, que já não era pouco, junta-se a prática de
comportamentos reprováveis assimilados do exercício do poder pelas oligarquias,
com a agravante de terem uma repercussão e consequências políticas incomparavelmente
muito mais graves quando praticados pelos novos dirigentes do que pelas velhas
oligarquias por nestas serem habituais esse tipo de comportamentos e ninguém
delas esperar outra coisa.
Os teorizadores desta via, por mais brilhantes que sejam ou
fossem – e alguns gozam na AL de um prestígio extraordinário –, parece terem
acreditado que estava aberto um novo caminho para a libertação dos povos da
América Latina, menosprezando a lição da História, tanto a resultante do que já
se passou nesse mesmo continente noutras fracassadas tentativas, como a que
decorre do que aconteceu na Europa, na Ásia e até em África, em tempos
diferentes, mas sempre com o mesmo sinal. Apesar de nenhum destes continentes
ter por herança a sucessão de fases idênticas às acima assinaladas, que
representam, repito, uma desvantagem única e irrepetível, mesmo assim a
conquista da cidadania efectiva, aqui ou ali mais ou menos amputada pela ausência de
poder económico, só se alcançou com lutas violentas e implacáveis sem as quais
nenhum poder estabelecido reconhece ou permite o exercício de direitos por
aqueles que os não têm. Não foi com “paz e amor” que as classes possidentes se
viram obrigadas a repartir o “bolo social” pelos demais sectores da sociedade.
Foi com lutas, por vezes terríveis, que se legou à posteridade a situação que,
apesar de tudo, hoje existe. De facto, sem as grandes revoluções político-sociais
que tiveram lugar na Europa, culminando lutas centenárias, mas também na Ásia e
em África, aqui mais sob a forma de lutas anticoloniais e antiapartheid, que
tiveram uma incidência decisiva sobre a estrutura económica das classes
derrotadas, e cujos efeitos, apesar de esbatidos pela contra revolução neoliberal,
se fazem sentir até hoje, nada teria mudado como efectivamente mudou.
Assim, apesar de se saber que aquela via estava condenada ao
fracasso, maior ou menor, mais ou menos implacável, impossível seria que quem
apoia as lutas pela emancipação do homem não a apoiasse a via progressista
ensaiada na AL nos últimos anos quando atacada pelas classes possidentes
oriundas das velhas oligarquias ou pelo imperialismo na sua campanha pelo
domínio geoestratégico do planeta. Seria até incompreensível que os sectores progressistas
assumissem uma posição de árbitro imparcial, dando razão a uns e outros, como
se o que estivesse em causa fosse uma luta entre iguais.
Nesta fase da luta, mesmo que a probabilidade de êxito seja
mínima, e talvez não seja, há que cerrar fileiras e apoiar os que, embora seguindo
um caminho de êxito duvidoso, têm em vista um objectivo condigno, contra os que
mais não pretendem do que perpetuar a dependência e a submissão. E mesmo os
recuos que eventualmente tenham de fazer-se devem sempre assumir uma natureza
táctica e ter em vista um objectivo oposto aos pretendidos pelo imperialismo e
seus aliados.
Está à vista, em toda a América Latina, que bastou que o
poder se consolidasse no capital financeiro em todo mundo capitalista, com o
seu cortejo de destruição de normas e de protecções sociais, acentuando
gravemente a cada ano que passa a desigualdade social e individual, para que
uma nova retórica política já despojada, por desnecessária, da velha hipocrisia
igualitária fundada numa pretensa democracia, passasse a imperar e estabelecesse
como objectivo estratégico a eliminação ou destruição de todas as experiências,
por mais suaves que sejam, que ousem afirmar a sua independência e autonomia.
Umas vezes isso faz-se internamente, com o apoio complacente
do imperialismo e seus aliados, afastando do poder político os antigos
dirigentes, prendendo-os se necessário for, com recurso a métodos nunca antes
vistos, mesmo em países que assumiam sem complexos a natureza de classe da
justiça, agora mediante a entrada em cena de juízes omnipresentes que prendem,
investigam, acusam, julgam e condenam!
Noutros, como acontece na Venezuela, promovem-se
conspirações, apoiam-se golpes, incentivam-se ingerências de toda a ordem,
aplicam-se sanções e impõem-se boicotes, fazem-se ameaças, enfim, viola-se
escandalosa e impunemente o Direito Internacional, preparando-se, inclusive,
uma intervenção militar para impor ao povo venezuelano o domínio imperialista e
a exploração das suas riquezas naturais.
É isto, no fundo, o que está em jogo. E quando o que está em
jogo é o essencial – submissão e domínio ou independência – nenhum outro valor
sobreleva o essencial. Tanto para os que pretendem a submissão e o domínio como
para os que apoiam a independência. Quem ficar a meio caminho, quem hipocritamente
quiser assumir a posição de árbitro, mais não está fazer do que a abrir via a
uma nova e mais penosa fase de dependência e submissão.
Entendido?