quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

A HOMENAGEM A ANTUNES VARELA PELA RELAÇÃO DE COIMBRA





OS DISCURSOS DA MINISTRA DA JUSTIÇA E DO PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Antunes Varela foi professor de Direito, em Coimbra, e ministro da Justiça de Salazar durante largos anos, 1954 a 1967.

Durante o longo período em que exerceu funções no Ministério da Justiça muitos crimes foram cometidos pelas forças repressivas da ditadura, nomeadamente as polícias, com destaque para a Pide. Muitos combatentes antifascistas foram assassinados e um número infindável de lutadores pela Liberdade foi preso e torturado. Foi durante a permanência de Varela no Ministério da Justiça que o General Humberto Delgado e a sua secretária foram assassinados pela Pide, em Espanha, em condições sobejamente conhecidas.

Varela não somente fechou os olhos a todos estes crimes como indirectamente neles participou, quer pela sua permanente acção doutrinária à frente da Justiça, na defesa da “Ordem” e da “Autoridade”, no mais completo desrespeito e total alheamento dos direitos dos cidadãos, quer pela sua acção como legislador repressivo e inclemente perante o sofrimento humano e a violação dos mais nobres valores de uma sociedade plural.

Varela enfileira sem nenhuma espécie de dúvida na tenebrosa galeria dos professores de direito para os quais tal “ciência” não passava de um meio de agressão aos cidadãos e de instrumento privilegiado de punição e silenciamento, por tempo indeterminado, das vozes discordantes do regime que se erguiam na defesa de valores universais.

Manuel Rodrigues, Mário de Figueiredo, Vaz Serra (apesar da preguiça o ter retido em casa por largos meses), Cavaleiro Ferreira, Antunes Varela, Pires de Lima (interino) e Almeida Costa fazem parte daquela galeria de ministros da justiça de Salazar, embora com responsabilidades diferentes e comportamentos desiguais. Dentre eles, Manuel Rodrigues, Cavaleiro Ferreira e Antunes Varela bem poderiam ter desempenhado paralelamente às funções ministeriais as de chefes das polícias sem que daí resultasse qualquer quebra de eficiência do aparelho repressivo salazarista. E também é justo que se diga que foi com Almeida Costa, já na presidência de Marcello Caetano, que o Código de Processo Penal, apesar das limitações inerentes a um regime antidemocrático, deixou de ser um instrumento de perseguição arbitrária para passar a conter normas minimamente aceitáveis para a generalidade dos cidadãos.

Pois foi este “brilhante” jurista e político da ditadura que o Tribunal da Relação de Coimbra, num acto que exorbita das suas funções constitucionais, pela natureza eminentemente política do seu conteúdo, decidiu homenagear, sabendo, como não poderia deixar de saber, que essa homenagem constituiria uma afronta à Liberdade, à Democracia e aos demais valores democráticos consagrados na Constituição, contra os quais, de resto, Varela não deixou de se manifestar na docência das suas prelecções, que continuou a exercer depois do 25 de Abril.

Aliás, este é outro aspecto da personalidade política deste jurista que não pode deixar de ser realçado. Enquanto doutrinador relevante e agente executivo do regime repressivo, Varela nunca deixou de exigir o respeito pela lei e pela vontade do legislador, não admitindo interpretações ou considerações teóricas que pudessem pôr em causa, questionar ou simplesmente apresentar ou sugerir alternativas que, de uma ou outra forma, pudessem contribuir para enfraquecer aquele entendimento. É com fundamento neste quadro mental que, como Ministro da Justiça, atacou na Revista de Legislação e Jurisprudência, em termos político-pidescos, as lições de Família do Prof. Pereira Coelho por este defender concepções liberalizantes no domínio das relações familiares, como a dignidade da mulher (ultrajada e mal tratada pelo Código Civil de Varela) ou o divórcio para os casamentos canónicos com base no princípio,  indiscutível, da separação entre o Estado e a Igreja. Mas é este mesmo Varela que depois do 25 de Abril em nome do “Direito natural” e de outros “valores transcendentais” ataca impiedosamente as regras e os princípios consagrados na Constituição por constituírem uma “violação” daquele “ direito superior” que surgiu à luz do dia logo depois de ele ter perdido a faculdade de arbitrariamente legislar e impor as suas concepções sem outra referência que não fosse a vontade do ditador e a defesa do regime. Nada de novo, aliás, já os juristas nazis da Alemanha tinham feito exactamente o mesmo depois da restauração da democracia, embora, reconheça-se, com mais pudor e outro saber.

Mas se esta homenagem a Varela por parte da Relação de Coimbra constitui uma afronta à democracia, essa afronta ficou séria e perigosamente agravada por nela terem participado a Ministra da Justiça, Francisca Van Dunen e o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, António Piçarra.

A intervenção da Ministra é a todos os títulos lamentável. Lamentável desde logo por ter participado, como representante de um governo democrático, na homenagem a uma das figuras mais repressivas da ditadura, mas igualmente lamentável pela ignorância política e histórica que as suas palavras deixam perceber (revelam). Francisca Van Dunen enaltece a construção de tribunais e prisões como elementos sinalizadores de uma política desenvolvimentista, apesar do “desafogo financeiro” com que então se vivia e da limitação que uma “política de contas certas” impunha, não obstante esses recursos provirem “essencialmente … do império colonial”, factos que em nada “desmerece(m) a acção” do homenageado, que “realizou uma obra como nunca antes nem depois alguém voltou a ter capacidade para fazer”!

Senhora Ministra, as suas palavras seriam dignas de figurar no anedotário político nacional se não fosse dar-se o caso de terem associada uma carga política negativa e altamente comprometedora para o Governo de que faz parte.

Em primeiro lugar, não há “desafogo financeiro” de nenhuma espécie. Há miséria e uma política miserabilista que desatendia às principais necessidades do povo, dissessem elas respeito à saúde pública, ao ensino, às vias de comunicação, aos transportes, à segurança social ou a qualquer outro domínio que não estivesse intimamente ligado com a actividade repressiva; em segundo lugar, os “recursos oriundos do império colonial” não passam de uma fantasia de que o povo nunca verdadeiramente beneficiou directa ou indirectamente. Aliás, os principais recursos do “império colonial” provinham da sobre exploração do trabalho e beneficiavam directamente uma parcela muitíssimo reduzida da população, os titulares dos respectivos meios de produção. Os recursos naturais das colónias portuguesas, fossem eles de natureza agrícola, piscícola ou mineral (com excepção parcial dos diamantes, explorados empresas estrangeiras), ficaram praticamente intactos e assim foram entregues aos novos Estados independentes após a descolonização. Por último, a Senhora Ministra não percebe que essa construção de tribunais, “palácios da justiça”, e de prisões por todo território nacional, bem como a promulgação de grandes “monumentos legislativos”, nada tem a ver com o conceito filosófico de Justiça e menos ainda com a sua realização, mas é antes fundada numa obsessão ideológica que vê na resolução dos conflitos sociais pela via judicial o modo normal funcionamento da sociedade plural e diferenciada reprimida nas suas concepções, objectivos e realizações. Enaltecer e aplaudir mais de meio século depois a imponência das “bases materiais” da justiça erguidas num país com muitas carências e acentuado analfabetismo e não saber distinguir entre a acção dos tribunais num regime ditatorial e num regime democrático, transplantando para o tempo de hoje, com os conceitos de hoje, a avaliação material e simbólica da obra realizada, é um anacronismo que somente a falta de cultura política e a persistente herança daquele “analfabetismo” podem justificar. Aliás, basta olhar para a Europa dos nossos dias para imediatamente se perceber que é pela via da “justiça”, da acção repressiva dos tribunais, que as grandes derivas antidemocráticas em curso tendem a consolidar-se. A monumentalidade da “justiça” que Varela tão bem interpretou e pôs em prática tem exactamente a ver com esta concepção ideológica de “justiça” como braço imperativo da ditadura. Daí a sua monumentalidade para inspirar respeito e temor! E o que lhe pode “pesar na consciência”, Senhora Ministra, não é pisar os mesmos espaços que antes foram ocupados pelos agentes da ditadura, é não ter percebido isto! Não ter percebido a natureza do regime que V. Exa teve, indirectamente, a desfaçatez de elogiar na pessoa de um dos seus mais repressivos executantes.

Pior ainda, impróprio de quem desempenha tão nobre função, é o discurso do presidente do Supremo Tribunal de Justiça, António Piçarra, ao pretender não apenas branquear a acção repressiva de Varela, mas ao erigir a personalidade política do homenageado em padrão de comportamento intemporal. Os “valores absolutos” de Varela que Piçarra tanto aprecia e que vão desde a “integralidade da nação” (certamente do Minho a Timor), passando pela rejeição de relativismos, até ao “perfeito sentido de missão e de serviço público”, não podem deixar de ser entendidos como “valores” que se sobrepõem aos de uma Constituição democrática, ao de um Estado democrático de direito e ao respeito pelas mais elementares regras de convivência política e social, como o homenageado se encarrega de explicitar sem subterfúgios nem meias palavras.

De facto, os tais “valores absolutos” de Varela podem sintetizar-se nestas simples palavras. No tempo da ditadura, o “legalismo” exprimia valores permanentes, nacionais e era limitado pela “moral e o direito” com o entendimento que lhe era dado pela Constituição de 1933 e pela doutrina constitucional da época; enquanto o de hoje, o da democracia, é meramente circunstancial, não exprime valores permanentes antes os nega daqui decorrendo, como consequência, mais um “valor absoluto” que Varela exprime nestes termos: antes, “a violação desse dever fundamental de subordinação à lei constitui um factor dissolvente da certeza e da segurança necessárias a toda a vida social, representa uma subversão da divisão constitucional dos poderes do Estado e pode em muitos casos […] constituir um perigo gravíssimo para a vida da comunidade”, enquanto agora, opor-se à lei, é a oportunidade para restaurar os “valores que devem orientar a sociedade civil portuguesa à luz dos sagrados princípios evangélicos”.

 Além destes “valores absolutos”, Piçarra está também fascinado pela monumentalidade da obra de Varela que, no seu entendimento, faz corar (certamente de vergonha) os governantes do 25 de Abril.

Perante um discurso desta natureza proferido pelo mais alto representante dos tribunais portugueses, pela gravidade dos elogios prodigalizados, pela sintonia que esses elogios pressupõem com as concepções jurídico-politicas do homenageado, que o homenageante não pode deixar de conhecer, é caso para perguntar se o mais alto responsável pelo regular funcionamento das instituições não tem uma palavra a dizer relativamente às palavras que rodearam esta homenagem, uma palavra que permita à Ministra e ao presidente do Supremo desdizerem-se, retratatarem-se com público pedido de desculpas ou, como alternativa, à indisponibilidade de uma e de outro, lhes aponte a porta da rua como local adequado à defesa e enaltecimento daquelas concepções..

sábado, 7 de dezembro de 2019

MARCELO, OS 100 ANOS DE JOSÉ HERMANO SARAIVA E O 17 DE ABRIL


A MEMÓRIA E OS FACTOS

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Já escrevi sobre o 17 de Abril de 69 não conto voltar ao tema por mais repetidas que sejam as comemorações. Esses dois textos que escrevi podem ser consultados, por quem não os tenha lido, no Facebook, o que nem sempre é fácil, e neste blogue, no mês de Abril deste ano.

Depreendo, pelas reacções que en passant fui lendo, que há um generalizado repúdio da intervenção de Marcelo a propósito do centenário de Hermano José Saraiva. Queixam-se os críticos de o Presidente na alocução comemorativa do centenário de Saraiva não ter mencionado a sua  conduta repressiva durante a crise académica de 1969.

Do comportamento de Saraiva durante a crise de 69, guardo na memória uma intervenção televisiva ridícula, mas altamente mobilizadora, sobre o que se estava a passar em Coimbra, proferida na melhor altura possível para os objectivos do movimento. A greve aos exames ficou muito mais fácil de ser votada depois daquele famosa ameaça final do ministro: “Isto não acontecerá em Portugal!”

Quanto ao mais, recordo também a presença da polícia de choque na cidade e nas imediações da Universidade a partir de 2 de Junho. Mas não me lembro de nenhuma carga policial, nem de confrontos violentos. Pode ser falta de memória minha…

Também me não recordo de estudantes punidos com expulsões da Universidade de Coimbra e menos ainda de todas as universidades, embora o mesmo já não possa dizer relativamente a todos os professores.

A memória é uma coisa terrível: participei na luta académica enquanto estudante e como jovem assistente durante toda a década de 60, mais concretamente até fim de Julho de 1969. Depois não, porque não me deixaram lá continuar.

E durante essa famosa década, de que tanto nos orgulhamos, dos três ministros da Educação Nacional que conhecemos, Saraiva foi, pelo menos até 69, o que menos reprimiu. Os anteriores, Lopes de Almeida e Inocêncio Galvão Telles, têm o seu curriculum recheado de dezenas de expulsões quer da universidade de que eram oriundos  estudantes castigados (Lisboa e de Coimbra), quer de todas as todos as universidades portuguesas. Dezenas e dezenas!

Lembro-me também, pelas notícias que me iam chegando, lá longe onde estava, de que depois de Saraiva houve ainda um outro ministro da Educação que criou os “gorilas”, que apoiou e ordenou espancamentos sistemáticos de estudantes, expulsões, tendo até num desses confrontos sido assassinado um estudante. Disso lembro-me e lembro-me também de, pouco depois do 25 de Abril, no Governo Palma Carlos, esse ex ministro de Marcello Caetano ter sido nomeado Embaixador de Portugal na ONU e mais tarde ministro de um governo socialista. Disso lembro-me…

Saraiva, depois do 25 de Abril, foi exonerado de Embaixador de Portugal em Brasília e por cá foi ficando ligado ao ensino  e à televisão na qual desempenhou uma meritória acção de divulgação da História de Portugal, em programas televisivos de grande audiência, e de ter divulgado, como ninguém antes dele, esse grande génio da Literatura portuguesa que é Fernão Lopes. Disso lembro-me. Mas não me recordo, por uma vez que fosse tivesse usado esses programas, que duraram décadas, para fazer a apologia do fascismo.
Mas recordo-me, isso também me recordo, de grandes fascistas e apoiantes da pide, que militavam no que de mais reaccionário havia no estertor do “Estado Novo”, promoverem publicamente verdadeiros “autos de fé”, lançando para a fogueira livros, “confiscados” às livrarias, que uma ténue abertura da censura permitiu passassem a ser editados e de hoje terem assento em programas televisivos, ora para nos darem “lições de democracia”, ora para nos “venderem as maiores reaccionarices”, sem esquecer os múltiplos lugares públicos de relevo já desempenhados.