OS DISCURSOS DA MINISTRA DA JUSTIÇA E DO PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Antunes Varela foi professor de Direito, em Coimbra, e ministro
da Justiça de Salazar durante largos anos, 1954 a 1967.
Durante o longo período em que exerceu funções no Ministério
da Justiça muitos crimes foram cometidos pelas forças repressivas da ditadura,
nomeadamente as polícias, com destaque para a Pide. Muitos combatentes
antifascistas foram assassinados e um número infindável de lutadores pela
Liberdade foi preso e torturado. Foi durante a permanência de Varela no
Ministério da Justiça que o General Humberto Delgado e a sua secretária foram
assassinados pela Pide, em Espanha, em condições sobejamente conhecidas.
Varela não somente fechou os olhos a todos estes crimes como
indirectamente neles participou, quer pela sua permanente acção doutrinária à
frente da Justiça, na defesa da “Ordem” e da “Autoridade”, no mais completo
desrespeito e total alheamento dos direitos dos cidadãos, quer pela sua acção
como legislador repressivo e inclemente perante o sofrimento humano e a
violação dos mais nobres valores de uma sociedade plural.
Varela enfileira sem nenhuma espécie de dúvida na tenebrosa
galeria dos professores de direito para os quais tal “ciência” não passava de
um meio de agressão aos cidadãos e de instrumento privilegiado de punição e
silenciamento, por tempo indeterminado, das vozes discordantes do regime que se
erguiam na defesa de valores universais.
Manuel Rodrigues, Mário de Figueiredo, Vaz Serra (apesar da
preguiça o ter retido em casa por largos meses), Cavaleiro Ferreira, Antunes
Varela, Pires de Lima (interino) e Almeida Costa fazem parte daquela galeria de
ministros da justiça de Salazar, embora com responsabilidades diferentes e
comportamentos desiguais. Dentre eles, Manuel Rodrigues, Cavaleiro Ferreira e Antunes
Varela bem poderiam ter desempenhado paralelamente às funções ministeriais as
de chefes das polícias sem que daí resultasse qualquer quebra de eficiência do
aparelho repressivo salazarista. E também é justo que se diga que foi com
Almeida Costa, já na presidência de Marcello Caetano, que o Código de Processo
Penal, apesar das limitações inerentes a um regime antidemocrático, deixou de
ser um instrumento de perseguição arbitrária para passar a conter normas
minimamente aceitáveis para a generalidade dos cidadãos.
Pois foi este “brilhante” jurista e político da ditadura que
o Tribunal da Relação de Coimbra, num acto que exorbita das suas funções
constitucionais, pela natureza eminentemente política do seu conteúdo, decidiu
homenagear, sabendo, como não poderia deixar de saber, que essa homenagem
constituiria uma afronta à Liberdade, à Democracia e aos demais valores
democráticos consagrados na Constituição, contra os quais, de resto, Varela não
deixou de se manifestar na docência das suas prelecções, que continuou a exercer
depois do 25 de Abril.
Aliás, este é outro aspecto da personalidade política deste
jurista que não pode deixar de ser realçado. Enquanto doutrinador relevante e
agente executivo do regime repressivo, Varela nunca deixou de exigir o respeito
pela lei e pela vontade do legislador, não admitindo interpretações ou
considerações teóricas que pudessem pôr em causa, questionar ou simplesmente
apresentar ou sugerir alternativas que, de uma ou outra forma, pudessem contribuir
para enfraquecer aquele entendimento. É com fundamento neste quadro mental que, como
Ministro da Justiça, atacou na Revista de Legislação e Jurisprudência, em
termos político-pidescos, as lições de Família do Prof. Pereira Coelho por este
defender concepções liberalizantes no domínio das relações familiares, como a
dignidade da mulher (ultrajada e mal tratada pelo Código Civil de Varela) ou o
divórcio para os casamentos canónicos com base no princípio, indiscutível, da separação entre o Estado e a Igreja. Mas é este mesmo Varela
que depois do 25 de Abril em nome do “Direito natural” e de outros “valores
transcendentais” ataca impiedosamente as regras e os princípios consagrados na
Constituição por constituírem uma “violação” daquele “ direito superior” que
surgiu à luz do dia logo depois de ele ter perdido a faculdade de
arbitrariamente legislar e impor as suas concepções sem outra referência que
não fosse a vontade do ditador e a defesa do regime. Nada de novo, aliás, já os
juristas nazis da Alemanha tinham feito exactamente o mesmo depois da
restauração da democracia, embora, reconheça-se, com mais pudor e outro saber.
Mas se esta homenagem a Varela por parte da Relação de
Coimbra constitui uma afronta à democracia, essa afronta ficou séria e
perigosamente agravada por nela terem participado a Ministra da Justiça,
Francisca Van Dunen e o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, António
Piçarra.
A intervenção da Ministra é a todos os títulos lamentável.
Lamentável desde logo por ter participado, como representante de um governo
democrático, na homenagem a uma das figuras mais repressivas da ditadura, mas igualmente
lamentável pela ignorância política e histórica que as suas palavras deixam
perceber (revelam). Francisca Van Dunen enaltece a construção de tribunais e
prisões como elementos sinalizadores de uma política desenvolvimentista, apesar
do “desafogo financeiro” com que
então se vivia e da limitação que uma “política
de contas certas” impunha, não obstante esses recursos provirem “essencialmente … do império colonial”, factos que em nada “desmerece(m) a acção” do
homenageado, que “realizou uma obra como
nunca antes nem depois alguém voltou a ter capacidade para fazer”!
Senhora Ministra, as suas palavras seriam dignas de figurar
no anedotário político nacional se não fosse dar-se o caso de terem associada
uma carga política negativa e altamente comprometedora para o Governo de que faz parte.
Em primeiro lugar, não há “desafogo financeiro” de nenhuma espécie. Há miséria e uma política
miserabilista que desatendia às principais necessidades do povo, dissessem elas
respeito à saúde pública, ao ensino, às vias de comunicação, aos transportes, à
segurança social ou a qualquer outro domínio que não estivesse intimamente
ligado com a actividade repressiva; em segundo lugar, os “recursos oriundos do império colonial” não passam de uma fantasia
de que o povo nunca verdadeiramente beneficiou directa ou indirectamente.
Aliás, os principais recursos do “império
colonial” provinham da sobre exploração do trabalho e beneficiavam
directamente uma parcela muitíssimo reduzida da população, os titulares dos
respectivos meios de produção. Os recursos naturais das colónias portuguesas,
fossem eles de natureza agrícola, piscícola ou mineral (com excepção parcial
dos diamantes, explorados empresas estrangeiras), ficaram praticamente intactos
e assim foram entregues aos novos Estados independentes após a descolonização. Por
último, a Senhora Ministra não percebe que essa construção de tribunais, “palácios da justiça”, e de prisões por
todo território nacional, bem como a promulgação de grandes “monumentos legislativos”, nada tem a ver
com o conceito filosófico de Justiça e menos ainda com a sua realização, mas é
antes fundada numa obsessão ideológica que vê na resolução dos conflitos
sociais pela via judicial o modo normal funcionamento da sociedade plural e
diferenciada reprimida nas suas concepções, objectivos e realizações. Enaltecer
e aplaudir mais de meio século depois a imponência das “bases materiais” da justiça erguidas num país com muitas carências
e acentuado analfabetismo e não saber distinguir entre a acção dos tribunais
num regime ditatorial e num regime democrático, transplantando para o tempo de
hoje, com os conceitos de hoje, a avaliação material e simbólica da obra
realizada, é um anacronismo que somente a falta de cultura política e a
persistente herança daquele “analfabetismo” podem justificar. Aliás, basta
olhar para a Europa dos nossos dias para imediatamente se perceber que é pela
via da “justiça”, da acção repressiva dos tribunais, que as grandes derivas
antidemocráticas em curso tendem a consolidar-se. A monumentalidade da
“justiça” que Varela tão bem interpretou e pôs em prática tem exactamente a ver
com esta concepção ideológica de “justiça” como braço imperativo da ditadura.
Daí a sua monumentalidade para inspirar respeito e temor! E o que lhe pode
“pesar na consciência”, Senhora Ministra, não é pisar os mesmos espaços que
antes foram ocupados pelos agentes da ditadura, é não ter percebido isto! Não
ter percebido a natureza do regime que V. Exa teve, indirectamente, a
desfaçatez de elogiar na pessoa de um dos seus mais repressivos executantes.
Pior ainda, impróprio de quem desempenha tão nobre função, é
o discurso do presidente do Supremo Tribunal de Justiça, António Piçarra, ao
pretender não apenas branquear a acção repressiva de Varela, mas ao erigir a
personalidade política do homenageado em padrão de comportamento intemporal. Os “valores absolutos” de Varela que Piçarra
tanto aprecia e que vão desde a “integralidade
da nação” (certamente do Minho a Timor), passando pela rejeição de
relativismos, até ao “perfeito sentido de
missão e de serviço público”, não podem deixar de ser entendidos como “valores” que se sobrepõem aos de uma Constituição
democrática, ao de um Estado democrático de direito e ao respeito pelas mais
elementares regras de convivência política e social, como o homenageado se
encarrega de explicitar sem subterfúgios nem meias palavras.
De facto, os tais “valores
absolutos” de Varela podem sintetizar-se nestas simples palavras. No tempo
da ditadura, o “legalismo” exprimia valores permanentes, nacionais e era limitado
pela “moral e o direito” com o entendimento que lhe era dado pela Constituição
de 1933 e pela doutrina constitucional da época; enquanto o de hoje, o da
democracia, é meramente circunstancial, não exprime valores permanentes antes os
nega daqui decorrendo, como consequência, mais um “valor absoluto” que Varela
exprime nestes termos: antes, “a violação
desse dever fundamental de subordinação à lei constitui um factor dissolvente
da certeza e da segurança necessárias a toda a vida social, representa uma
subversão da divisão constitucional dos poderes do Estado e pode em muitos
casos […] constituir um perigo gravíssimo para a vida da comunidade”, enquanto
agora, opor-se à lei, é a oportunidade para restaurar os “valores que devem orientar a sociedade civil portuguesa à luz dos
sagrados princípios evangélicos”.
Além destes “valores
absolutos”, Piçarra está também fascinado pela monumentalidade da obra de
Varela que, no seu entendimento, faz corar (certamente de vergonha) os
governantes do 25 de Abril.
Perante um discurso desta natureza proferido pelo mais alto
representante dos tribunais portugueses, pela gravidade dos elogios
prodigalizados, pela sintonia que esses elogios pressupõem com as concepções
jurídico-politicas do homenageado, que o homenageante não pode deixar de
conhecer, é caso para perguntar se o mais alto responsável pelo regular
funcionamento das instituições não tem uma palavra a dizer relativamente às
palavras que rodearam esta homenagem, uma palavra que permita à Ministra e ao
presidente do Supremo desdizerem-se, retratatarem-se com público pedido de
desculpas ou, como alternativa, à indisponibilidade de uma e de outro, lhes
aponte a porta da rua como local adequado à defesa e enaltecimento daquelas concepções..