CRIMES DE
RESPONSABILIDADE DOS TITULARES DE CARGOS POLÍTICOS
Segundo a Constituição,
art.º 117.º, os titulares de cargos políticos respondem política, civil e
criminalmente pelas acções e omissões que pratiquem no exercício das suas
funções, cabendo à lei ordinária determinar os crimes de responsabilidade dos
titulares de cargos políticos, bem como as sanções aplicáveis e os respectivos
efeitos.
No artigo 130.º
prevê-se a responsabilidade do Presidente da República pelos crimes praticados
no exercício das suas funções, sendo a iniciativa do processo da Assembleia da
República e a competência para o julgar do Supremo Tribunal de Justiça
Durante mais de dez
anos a lei ordinária não deu cumprimento ao disposto na Constituição, tendo
finalmente, a Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, estabelecido a tipologia dos crimes
de responsabilidade bem como o respectivo regime.
Esta lei foi alterada posteriormente
várias vezes, sendo última alteração de 2015, Lei n.º 30/2015 de 22 de Abril.
Para analisar a
responsabilidade criminal do Presidente da República convirá fundamentalmente
atender aos artigos 8.º e 9.º da Lei n.º Lei n.º 34/87 de 16 de Julho.
Art.º 8.º - ATENTADO CONTRA A
CONSTITUIÇÃO
O titular de cargo
político que no exercício das suas funções atente contra a Constituição da
República, visando alterá-la ou suspendê-la por forma violenta ou por recurso a
meios que não os democráticos nela previstos, será punido com prisão de cinco a
quinze anos, ou de dois a oito anos, se o efeito se não tiver seguido.
Art.º - 9.º - ATENTADO
CONTRA O ESTADO DE DIREITO
O titular de cargo
político que, com flagrante desvio ou abuso das suas funções ou com grave
violação dos inerentes deveres, ainda que por meio não violento nem de ameaça
de violência, tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de direito
constitucionalmente estabelecido, nomeadamente os direitos, liberdades e
garantias estabelecidos na Constituição da República, na Declaração Universal
dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, será
punido com prisão de dois a oito anos, ou de um a quatro anos, se o efeito se
não tiver seguido.
DESENVOLVIMENTO
Analisemos em primeiro lugar o artigo 8.º. Este artigo prevê
duas situações: a alteração ou a suspensão da Constituição por meios violentos ou
por recurso a meios que não os democráticos nela previstos.
Relativamente à primeira situação não se vê como possa o
crime consumado ser punido, parecendo antes que na sua previsão apenas poderá
caber a tentativa ou a frustração. Vejamos porquê. Se o titular de um cargo
político no exercício das suas funções atenta contra a Constituição com vista a
alterá-la ou suspendê-la por forma violenta e logra obter esse objectivo, a
partir desse momento a lei que penaliza o atentado contra a Constituição deixa
de aplicar-se, porque a legalidade vigente passa a ser outra - a legalidade
decorrente do acto de força que permitiu alterar ou suspender a Constituição; se, porém,
o titular do cargo político não conseguir alcançar o objectivo, então estaremos perante uma tentativa que a
lei igualmente prevê e para a qual estabelece uma punição mais branda. A menos que se entenda que a lei não consagra a tentativa por se bastar com o facto de o agente visar alterar ou suspender a Constituição. Só que nesse caso deixa de ter sentido a previsão da pena para a simples tentativa. Uma coisa, porém, é certa, se o objectivo for alcançado por meios violentos (manu militari) a punição não terá lugar pelas razões acima aduzidas. Por muito cínica que esta interpretação possa parecer, ela é a que resulta do princípio da efectividade.
Já o mesmo se não poderá dizer relativamente à alteração ou
suspensão da Constituição por meios não democráticos. O recurso a meios não
democráticos só pode querer significar o recurso a qualquer outro meio que não os
previstos na Constituição para a sua alteração ou suspensão. A questão que a
este respeito naturalmente se põe é a de saber se a alteração ou a suspensão a
que o artigo 8.º se refere tem de consubstanciar-se num acto formal ou se pode
também resultar de uma prática que deixa formalmente inalterado o texto constitucional,
mas da qual resulta de facto uma verdadeira alteração ou suspensão da Constituição.
Relativamente à alteração ou suspensão da Constituição por
meios não democráticos também se poderia começar por afirmar que o crime consumado não poderá ocorrer porque o acto que formalmente consagra aquela violação é juridicamente inexistente, uma vez que se mantém a estrutura essencial do Estado de direito. No entanto, neste caso, parece óbvio que o essencial para que a consumação ocorra é a prática do acto, independentemente da sua validade jurídica. Todavia, apesar de a prática, por meios não
democráticos sem recurso à violência, de um acto formal, porém inexistente, ser
punível e de relativamente a ele se não levantarem os mesmos problemas que
filosófica e praticamente estão associados à prática de um acto da mesma
natureza por meios violentos, temos de admitir que, para além da prática de
actos formais, o artigo em questão se refere também às práticas que igualmente
visem a alteração ou a suspensão da Constituição levadas a cabo sem a existência
de actos formais que a consubstanciem. Ou seja, práticas que produzam um
resultado equivalente ao que resultaria de uma alteração ou suspensão formal.
A dificuldade com que esta interpretação se depara é que nem
toda e qualquer prática contrária à Constituição de um titular de órgão de soberania deve ser criminalmente punida. Teria de se fazer a distinção entre
as práticas contrárias à Constituição e as práticas que visam de facto alterá-la
ou suspendê-la por subverterem gravemente os princípios democráticos nela
consagrados.
Optar por este caminho para punir o titular de um órgão de
soberania seria certamente um caminho árduo e difícil de ser percorrido com
êxito. Mas nada impede de o tentar percorrer desde que os factos que provam a
existência dessa prática e o animus
de quem os pratica sejam manifestamente informados pelo desprezo pelos princípios
democráticos consagrados na Constituição.
Já quanto ao artigo 9.º da lei acima citada, a configuração
do crime de atentado contra o Estado de direito refere situações mais
plausíveis e mais prováveis de acontecer sem que a subsunção dos respectivos
comportamentos na previsão normativa levante o mesmo tipo de interrogações.
Aquele que abusar das suas funções, que delas se desviar gravemente ou que
gravemente violar os seus deveres para tentar destruir, alterar ou subverter o
Estado de direito constitucionalmente estabelecido incorre numa pena de dois a
oito anos de cadeia ou de um a quatro se os seus intentos não tiverem sido
alcançados.
Aqui tudo é mais simples e plausível ,como acima se disse.
Desde que uma determinada conduta de um titular de um órgão de soberania se
traduza numa flagrante violação das suas funções ou represente um uso abusivo
dessas funções ou uma grave violação dos seus deveres para por essa via tentar destruir,
alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente consagrado
estaremos claramente numa situação em que o comportamento do agente preenche
(integra) a previsão normativa, havendo, portanto, lugar ao desencadeamento das
consequências jurídicas que a concretização daquela previsão acarreta.
Do ponto de vista prático – e era aqui que queríamos chegar –
a questão que se põe é portanto a de saber como qualificar o comportamento de
Cavaco, enquanto titular de um órgão de soberania, se fizer tábua rasa da
decisão do Parlamento e mantiver em funções o actual Governo, na sua actual
composição ou remendado, recusando-se a indigitar um outro Primeiro ministro.
Vejamos o que diz a Constituição. Cabe ao Presidente da
República nomear o Primeiro Ministro, ouvidos os partidos políticos
representados na Assembleia da República, tendo em conta os resultados
eleitorais. Esta é uma competência do Presidente da República.
A competência de um órgão compreende os poderes que por lei lhe
são atribuídos para o desempenho da sua função. Todavia, os poderes
compreendidos na competência de um órgão não são todos da mesma natureza. Há
poderes que esse órgão exerce discricionariamente (não confundir com
arbitrariamente), embora sempre em vista do fim para que foram concedidos,
compreendendo essa discricionariedade umas vezes a prática ou a não prática de
um acto; outras, a escolha de uma via entre várias possíveis, devendo em
qualquer caso a decisão, embora baseado num juízo pessoal de quem decide, ser
aquela que, segundo esse juízo, melhor serve o objectivo, o fim, em vista do
qual aquele poder foi concedido.
Todavia, nas competências de um órgão não estão apenas
compreendidos poderes discricionários. Pelo contrário, a maior parte desses
poderes são poderes vinculados, poderes que têm de ser exercidos nos termos
prescritos pela lei, havendo, entre estes, poderes que não podem deixar de ser
exercidos por a inacção representar a violação de um dever.
É o que se passa com a nomeação do Primeiro Ministro pelo
Presidente da República.
O Presidente da República não pode deixar de nomear o
Primeiro Ministro. Não pode, por exemplo, o Presidente da República deixar de
nomear um novo Primeiro Ministro saído de eleições legislativas, mantendo o
anterior Governo em funções, por não lhe agradar ou não concordar com a
orientação política do partido vencedor ou por qualquer outra razão. O
Presidente da República não tem o poder de nomear ou não nomear. Tem de nomear.
A que regras está subordinada essa nomeação? A Constituição é
muito clara: como já atrás dissemos, o Presidente da República nomeia o
Primeiro Ministro, tendo em conta os resultados eleitorais, depois de ouvidos
os partidos representados na Assembleia da República.
Ter em conta os resultados eleitorais significa olhar para a
correlação de forças no Parlamento resultante do acto eleitoral. E há situações
saídas dos resultados eleitorais que não suscitam quaisquer dúvidas, em que
ouvir os partidos não passa de uma mera formalidade. Assim, inequivocamente,
quando há um partido ou uma coligação de partidos que ganha as eleições com
maioria absoluta dos deputados. Também não há qualquer espécie de dúvida quando
depois das eleições se constituiu uma coligação formada por dois ou mais
partidos com maioria absoluta de deputados no conjunto dos partidos coligados. E
o mesmo se poderá dizer quando dois ou mais partidos negoceiam depois das
eleições um acordo de incidência parlamentar que assegura, a um deles, o apoio
maioritário no Parlamento. Em todos estes casos a decisão do Presidente da
República só pode ser – tem de ser – a indigitação como Primeiro Ministro da
personalidade que chefia o partido mais votado, a coligação de partidos ou o partido
que beneficia do acordo de incidência parlamentar.
Em qualquer destes casos se o Presidente da República não
nomear Primeiro Ministro a personalidade acima indicada, se estiver a fazer depender
essa nomeação de exigências ou da aceitação de condições que a Constituição não
prevê – e a Constituição não prevê nenhumas! –, terá de entender-se que o
Presidente da República estará a tentar alterar a Constituição por meios não
democráticos ou, no mínimo, a abusar das suas funções, a violar os seus deveres
e a tentar alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente
consagrado por estar a impedir o regular funcionamento das instituições.
Mesmo nos casos em que a interpretação dos resultados
eleitorais não seja tão óbvia como nas situações acima descritas, o Presidente também
não goza de um poder discricionário de interpretação dos resultados eleitorais.
O seu poder é sempre limitado e compreende-se que o seja porque o que está em
causa é o voto do povo numa democracia representativa. Numa democracia
representativa o deputado não recebe um mandato imperativo, como toda a gente
sabe. O deputado não tem tutores, nem explicadores sobre o que deve ou não fazer,
estando apenas condicionado pelo voto popular na eleição seguinte. Numa
democracia representativa de feição partidária o partido assume igualmente um
papel de relevo, sem que contudo a autonomia jurídica do deputado seja posta em
causa, embora do ponto de vista prático essa autonomia esteja obviamente
condicionada pelas regras partidárias, que, todavia, o deputado pode não
aceitar, desligando-se do partido sem deixar de ser deputado. Isto para dizer
que ninguém, com excepção do deputado, no sistema constitucional português se
pode arrogar o direito de interpretar o sentido do voto popular. Daí que os
poderes do Presidente na República sejam muito limitados quando se trata de
atender aos resultados eleitorais.
Assim, fora dos casos acima previstos, o Presidente da
República deve indigitar para Primeiro ministro a personalidade que chefia o
partido mais votado. Contudo, se durante as negociações para a formação de governo,
o Primeiro Ministro indigitado chegar à conclusão de que não consegue assegurar
o voto favorável do Parlamento ou a abstenção que lhe permita governar impõe a
lealdade institucional que tal facto seja comunicado ao Presidente que, depois
de ouvidos novamente os partido, deverá convidar o segundo partido mais votado
para formar governo já que nenhuma outra alternativa lhe resta, pois, como se
sabe, a AR não pode ser dissolvida nos seis meses subsequentes à sua
eleição.
Se, porém, o Primeiro Ministro indigitado for empossado porque
não comunicou ao Presidente que não dispunha de apoio parlamentar ou porque
acreditava que esse apoio poderia vir a alcançar-se e o seu Governo não passar
no Parlamento em consequência de uma moção de rejeição aprovada por maioria
absoluta de votos dos deputados em efectividade de funções e entretanto se
tiver formado uma coligação pós eleitoral ou um acordo de incidência
parlamentar que assegure, em qualquer dos casos, um apoio maioritário a essa
coligação ou a um partido, o Presidente da República deve – está obrigado –
nomear Primeiro Ministro a personalidade que chefia a coligação ou o partido
que dispõe desse apoio parlamentar maioritário. O Presidente da República não
pode deixar ficar o país sem Governo, sem um Governo no pleno exercício de efectividade
de funções.
A Constituição não atribui ao Presidente da República
qualquer poder susceptível de condicionar essa nomeação. O Presidente não pode
impor-lhe condições para o nomear, nem exigir-lhe compromissos de nenhuma
espécie, salvo obviamente o respeito pela Constituição. Se o Presidente não
nomear o novo Primeiro Ministro por não concordar com a “cor” política do novo
Governo ou por entender que esse Governo não está em condições de cumprir as
exigências (inconstitucionais) que ele lhe impôs, ou por qualquer outro motivo,
e deixar em gestão por tempo indeterminado o governo rejeitado, o Presidente da República estará de facto a
tentar alterar a Constituição ou, no mínimo, a abusar dos seus poderes e das
suas funções, a violar gravemente os seus deveres e a tentar por essa via
subverter ou alterar o Estado de direito consagrado na Constituição por estar dolosamente
a impedir o regular funcionamento das instituições.
No caso de Cavaco, o dolo nem sequer é difícil de provar
porque ele expôs com muita clareza o seu pensamento e as suas intenções no
discurso de indigitação de Passos Coelho. Por outro lado, o comportamento de
Cavaco subsequente à rejeição aponta no mesmo sentido. A decisão de ouvir os
chamados “parceiros sociais”, em vez de ouvir os partidos, como a Constituição
lhe impõe, resolver partir de férias ou de viagem de recreio para a Madeira,
protelando a decisão sobre uma situação urgente, não podem deixar de constituir
indícios mais que seguros de um comportamento doloso de desprezo pela
Constituição que assim estava sendo subvertida com base num sectarismo
absolutamente inaceitável.
Se esse for o caso, se o actual Governo for mantido em gestão até á realização de novas eleições, a Assembleia da República, mediante
proposta de um quinto dos deputados (46), deverá iniciar o processo-crime por
atentado contra a Constituição e contra o Estado de direito com vista à sua
aprovação e posterior remessa ao Supremo Tribunal Justiça afim de nele ser
instruído e julgado.
ADITAMENTO
Tendo em conta o conselho do António Hespanha e também o e
nsinamento de Vital Moreira, que entretanto consultei, não pode deixar-se de parte, na análise da responsabilidade do Presidente da República por crime de responsabilidade praticado no exercício de funções, o disposto no artigo 10.º da Lei n.º 34/87 de 16 de Julho e posteriores alterações.
O artigo 10.º contempla a chamada “Contempt of Parliament”, nos seguintes termos:
COACÇÃO CONTRA ÓRGÃOS CONSTITUCIONAIS
1 - O titular de cargo político que por meio não violento nem de ameaça de violência impedir ou constranger o livre exercício das funções de órgão de soberania ou de órgão de governo próprio de região autónoma será punido com prisão de dois a oito anos, se ao facto não corresponder pena mais grave por força de outra disposição legal.
A não nomeação do Primeiro Ministro, depois da realização de eleições legislativas e a substituição do Governo rejeitado pelo Parlamento depois daquelas eleições, traduz-se numa efectiva obstrução ou, no mínimo, num forte constrangimento às funções da Assembleia da República.
A Assembleia da República, embora possa fiscalizar o Governo em funções, está de facto e de jure impedida de exercer as suas funções em plenitude, pela própria natureza do Governo em exercício - competência limitada a actos de gestão corrente.
A Assembleia da República além de ficar privada de ter em funções um Governo da sua confiança, no mínimo, um Governo que ela não rejeitou, fica em consequência das limitações constitucionais dos Governos de gestão amplamente limitada no exercício das suas funções por manifesta obstrução do Presidente da República.
Além de que, a rejeição do Governo pela AR obriga o PR a empossar outro Governo, como acima se demonstrou.
(Por agora este aditamento fica por aqui, sendo minha intenção desenvolvê-lo em post posterior)
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