sábado, 31 de janeiro de 2015

QUE SEGREDO É QUE CAVACO TEM PARA GUARDAR?


 

CAVACO NUNCA SE EXPLICA
O Presidente da República não presta “esclarecimentos adicionais”
 
Cavaco finge julgar-se um ser superior para nunca ter de explicar os negócios e outros assuntos polémicos em que está envolvido. Já assim foi com as acções do BPN e com a casa da Coelha. Refugia-se numa pretensa superioridade moral – “Teriam de nascer duas vezes para serem mais sérios do que eu” – para não ser submetido ao contraditório democrático. Já assim actuava quando era Primeiro Ministro a propósito dos mais elementares assuntos de Estado por a sua personalidade autoritária e a sua conhecida instabilidade emocional não lhe permitirem participar num debate mais tenso sem o apoio imediato da emergência médica que é em democracia uma espécie de erzatz das medidas que noutro contexto as mentalidades ditatoriais gostariam de aplicar.
O mesmo se passa agora a propósito do BES. Cavaco recusa-se a prestar explicações à CPI, alegando a natureza reservada das conversas havidas nas audiências que concedeu, além de que já não se lembrar muito bem do que lhe foi dito.
Sobre o segredo nos assuntos públicos nem sequer valerá a pena pela enésima vez citar Kant, porque Cavaco não o reconhece como economista nem sequer como gestor de sucesso. Achará muito provavelmente que é mais um desses inúteis que anda a complicar as coisas simples para desconforto e prejuízo das pessoas que trabalham.
Mas talvez valha a pena ser mais terra a terra e dizer duas coisas muito óbvias ao sr. Cavaco Silva. Em primeiro lugar, quem define o que é e o que não é segredo de Estado é a lei, não é o Sr. Cavaco. E em segundo lugar, a reserva que acha que deveria manter por cortesia para com o seu interlocutor não tem neste caso qualquer razão de ser, porque é o próprio interlocutor que desvenda o teor da conversa que tiveram.
Cavaco não tem nenhum segredo de Estado para guardar. O segredo que Cavaco quer guardar é um segredo de polichinelo: conhecia a real situação do BES por informação prestada pelo seu principal responsável e continuou a afirmar publicamente que a situação do Banco era sólida, refugiando-se numa outra mentira do Banco de Portugal.
Cada vez se torna mais claro que todos, mas mesmo todos – Cavaco, Passos, Portas, Maria Luís, Carlos Costa, Bruxelas –, mentiram e mentiram muito sobre o BES. Mentiram nas declarações públicas que fizeram sobre a real situação do Banco, mentiram quanto ao modo como decidiram intervir, mentiram quanto à decisão e ao tempo da intervenção, mentiram ainda quanto às mensagens veiculadas para benefício de uns e prejuízo de outros.  
Esta gente deveria ser responsabilizada pessoalmente, não como mandatários de funções públicas, porque o Povo não confere aos seus mandatários a faculdade de mentir, de aldrabar e de enganar, mas a título individual por comportamento doloso. E nem sequer vale a pena pensar em responsabilidades criminais, porque essas só atingem os mais pequenos, os que não tem dinheiro para se defender. O mais apropriado e o que mais lhes doeria seria responsabilizá-los civilmente pelos danos que causaram a tantos e tantos milhares de pessoas.
 
 
 
 
 

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

PARTIDOS DE PROTESTO E “ARCO DA GOVERNAÇÃO”


 

O QUE INTERESSA ESCLARECER


 

Como toda a gente sabe, está entre nós muito difundida ideia de que há na vida política institucional portuguesa dois tipos de partidos: os que fazem parte do “arco da governação” e os que apenas protestam e não querem governar.

A imagem de “arco da governação” tanto quanto me recordo foi criada por Pina Moura, nos tempos em que era um todo-poderoso membro do executivo de Guterres, de que foi primeiro secretário de Estado e depois ministro. Já completamente afeiçoado ao politicamente correcto e em trânsito acelerado para o neoliberalismo e às benesses do grande capital, Pina Moura queria deixar bem vincada a mensagem de que os assuntos de governo eram exclusivos do PS, do PSD e, um pouco por caridade tendo em conta os primeiros anos da vida política pós 25 de Novembro, também do CDS. Os outros, como não pertenciam a este conjunto de “eleitos”, não tinham por direito próprio e imposição dos primeiros acesso aos “assuntos de Estado”. À época, ainda no rescaldo da Queda do Muro e da desintegração da União Soviética, tinha-se em vista especialmente o PCP e esta ostensiva exclusão da participação na vida política dos comunistas mais não era que um dos vários meios que estavam sendo utilizados com vista à sua eliminação como partido comunista e a sua transformação numa qualquer outra “coisa”.

Com o aparecimento do Bloco de Esquerda e a resiliência do PCP em se deixar absorver e enquadrar pelas malhas essenciais do “pensamento único”, cada vez mais dominante, a ponto de praticamente ter liquidado a social-democracia e as bases político-económicas em que a mesma se fundava, a noção de “partidos de protesto” foi gradualmente assumindo um tom propositadamente pejorativo com dois sentidos e um único objectivo: afastá-los da governação e inculcar no eleitor a convicção de que não valeria a pena votar neles porque nunca estariam dispostos a governar, mas apenas a protestar.

Esta é uma das tais “verdades” fabricadas pela ideologia dominante que se tem revelado muito útil pelo papel conformador das mentalidades que vem desempenhando. O eleitor médio está mesmo convencido que os partidos que não fazem parte do tal “arco da governação” não querem ter a responsabilidade de governar, o que querem é protestar, dizer não a tudo, fazer manifestações, etc.!

Procurando oportunisticamente tirar partido desta situação, apareceram alguns movimentos, um deles já transformado em partido, a afirmar categoricamente: “Nós somos de esquerda e queremos governar. Queremos impedir que a direita esteja no poder, seja isoladamente, seja em coligação com o PS”. Estes salvíficos movimentos tinham portanto uma missão a cumprir: um imperativo democrático impelia-os corajosamente para os braços do PS com o fim de evitar que este caísse nas malhas da direita. E então num discurso em que o “Eu” permanentemente se sobrepunha ao “nós”, ao “colectivo”, estes “denodados homens de esquerda” prontificavam-se, num espírito de sacrifício digno de louvor, a cair no regaço do PS não apenas para o impedir de se enamorar da direita, mas também para, finalmente, colocarem a esquerda no poder. Mais ou menos envergonhadamente iam acenando com o exemplo do Syriza (quando este ainda era uma esperança, porém feita de História) e também, embora mais reticentemente, com o do “Podemos”, apesar de nada, absolutamente nada, os equiparar a gregos e a espanhóis.

Como a história e os factos passados demonstram e o futuro, se for caso disso, acabará por confirmar, não há maior falácia do que esta.

A primeira grande falácia é a de que tanto o PC como o Bloco ou qualquer outro partido que entretanto apareça e se recuse a alinhar nos compromissos do PS sejam partidos de protesto. Não. São exactamente o contrário. São partidos de poder. E exactamente por serem partidos de poder – isto é, por aplicarem se forem Governo a medidas que advogam como oposição – é que sobre eles recai essa imensa propaganda que permanentemente os ostraciza e diariamente conforma as cabeças de milhões de eleitores, fazendo-os crer que eles apenas protestam porque nada do que propõem tem viabilidade prática. Nada que fuja às regras e aos ditames do pensamento único – hoje mais rigidamente implantado na UE do que alguma vez esteve nos próprios Estados Unidos - tem qualquer possibilidade de medrar…Por isso votar nestes partidos é perder o voto. Este o discurso do "arco da governação" e dos seus recentes aliados.

Segunda falácia, a de que o Livre e C.ª querem governar para dar voz à esquerda. Em primeiro lugar, nem sequer é seguro que o PS recorra a eles, mas se recorrer não será certamente para viabilizar alguma das suas políticas, mas antes para legitimar à esquerda ou em certo sector da esquerda a sua própria política. Admitir antecipadamente que se concorre para fazer alianças com o PS ou fazer alianças com o PS sem questionar os fundamentos essenciais da sua política – austeridade, tratado orçamental, regras de distribuição da riqueza, defesa do interesse nacional sempre que houver contradição com as “regras de Bruxelas”, questão da dívida, legislação laboral, etc. – serve  apenas e só para cohonestar a política do PS, responsável tanto como o PSD (ou até mais) pelo neoliberalismo europeu de que foi entusiástico apoiante com Guterres e com Sócrates. Votar nesses partidos é votar no CDS do PS.

Finalmente, o PS. O Partido Socialista é um partido que tem um discurso no poder e outro completamente diferente na oposição. No presente, dado o silêncio de Costa, pode até dizer-se que somente se deixa enganar quem quer ser enganado. Os grandiosos propósitos que o PS se propõe atingir não são alcançáveis – nenhum deles – por meios que dependam do próprio partido, mas todos, sem excepção, por via de políticas e procedimentos que o PS nem sequer remotamente controla, ou seja, pelas decisões do BCE sobre a moeda e o crédito (que obviamente mesmo quando nacionalmente controláveis tem limites, como toda a gente sabe), pela esperada “compreensão” do FMI para com os países do sul da Europa e (a maior das fés) por uma nova política do Conselho Europeu…que a realidade se encarregará de impor. Não há para adultos ou até mesmo talvez para crianças um conto de fadas mais fantasioso do que este.

O PS vai portanto fazer a mesma política que até agora tem sido seguida, porventura mais próxima do grande capital (que sempre se deixa seduzir pela facilidade do lucro fácil e rápido), com alguns arredondamentos e arestas menos vincadas que a ortodoxia de Passos /Albuquerque e perversidade do CDS puseram em prática numa humilhante demonstração de subserviência nacional. Quanto ao resto, o essencial, tudo ficará rigorosamente na mesma…com a diferença de ser feito, dirão os que governam, em nome da esquerda, enquanto a outra parte do PS, a que realmente gostaria de outra política mas que nunca teve a coragem de votar em quem a poderia efectivamente pôr em prática, protestará, protestará …mas nunca com a intensidade e organização suficientes para provocar uma verdadeira viragem na política nacional.

Esta esquerda do PS, este eleitorado do PS, que realmente gostaria de ver aplicada outra política mas que nunca teve a coragem de escolher quem a poderia pôr em prática, lavará regularmente a alma com declarações altissonantes, como aquelas que foram feitas durante os mandatos de Guterres e de Sócrates, refugiar-se-á, se for eleita para o Parlamento, na última fila numa ostensiva manifestação silenciosa de protesto, mas votará favoravelmente os instrumentos essenciais da política do governo, porventura com uma ou outra declaração de voto e continuará a protestar silenciosamente e através de uma oratória dispersa mas nunca sem pôr em causa a continuidade do governo.

Ou seja, o verdadeiro Partido de Protesto é o PS. É um partido que nunca porá em prática as medidas que na oposição preconizou ou que nunca atingirá os fins que prometeu e simultaneamente garante uma falange de protestantes à sua própria política numa esquizofrénica demonstração de fidelidade e contestação partidária.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

OS EFEITOS PERVERSOS DA VITÓRIA DO SYRIZA EM PORTUGAL


 

A DIREITA E O PS

A vitória do Syriza representa uma grande vitória da dignidade contra a humilhação. Ela é também uma vitória contra o medo, uma vitória do novo contra o velho, uma vitória da mudança. Uma vitória de quem aposta no futuro e de quem tem confiança na sua construção.

Por isso a maior parte dos comentários que se têm ouvido, dos comentadores do “arco do poder”, da direita e do PS, são o espelho do que é a negação da ideia que o Syriza encerra, independentemente da possibilidade da sua concretização.

Do lado da direita dificilmente seria possível expressar mais reaccionarismo do que aquele que Coelho e Portas se encarregaram de difundir. Cada um à sua maneira, mas ambos irmanados no mesmo objectivo, foram a amostra fiel da subserviência, do retrato da humilhação nacional, do mais puro conservadorismo. As ameaças veladas ou as falsas diferenças, que e outro veicularam para justificar a “via portuguesa” para a miséria, inserem-se no que de mais vil e abjecto existe no ser humano: defender os interesses do dono, exagerando nessa defesa, como se esses fossem os seus próprios interesses.

Do lado do PS a situação é diferente, porventura mais perigosa para a esquerda. A vitória do Syriza na Grécia aparece aos olhos da nomenklatura do PS e de todos aqueles que na base a apoiam como o quid indispensável à vitória de uma candidatura que “aposta na mudança” e na “luta contra a austeridade”. Puro oportunismo de nefastas consequências. Como se pode acreditar que um partido que liderou em Bruxelas, juntamente com outros da mesma linha política, a institucionalização do neoliberalismo na “Europa”; que colocou em mãos privadas a riqueza nacional, e que antes disso já tinha internamente aplainado o caminho para que todas essas grandes mudanças se pudessem fazer sem constrangimentos jurídicos; que colocou o poder europeu nas mãos de um directório restrito dominado pela Alemanha (e que disso tanto se vangloriou: “Porreiro, pá!”); que conduziu internamente uma política económica de favorecimento do grande capital; que aplicou e continuou a defender  gravosas medidas de política de austeridade; que institucionalizou essa política ligando Portugal a compromissos de difícil retractação; que nunca claramente afirmou que estaria disponível pelos seus próprios meios para reverter as consequências dessa política; que espera (com fé) que sejam outros a resolver os nossos problemas; enfim, como se poderá supor que um partido que fez tudo isto, e o mais que, mesmo resumidamente, aqui não cabe, seja capaz de protagonizar a mudança?

O PS está umbilicalmente ligado a tudo o que de negativo a Europa tem para nos oferecer. É que não há duas Europas: há apenas uma Europa, a que sempre existiu, a que paulatina, mas persistentemente, vem desde a sua fundação advogando e pondo em prática, primeiramente com algumas restrições, mas depois abertamente sem limitações, um liberalismo económico sem freios, inteiramente dominado pelo lucro e pela ganância, com desprezo pelos mais elementares direitos dos povos e dos cidadãos. Uma “Europa”, como aquela que já existe entre nós, onde somente as empresas contam e onde as pessoas mais não são que números descartáveis para as fazer crescer e dar lucros. Uma “Europa” onde aumenta a desigualdade e cresce a marginalização, onde os ricos são cada vez mais ricos, onde a classe média está a desaparecer e os pobres são cada vez mais numerosos.

Outra Europa só será possível destruindo esta e construindo outra completamente diferente, assente num pacto entre nações semelhante ao pacto que no interior certos Estados vigorou entre o capital e o trabalho. Um pacto de distribuição de riqueza e de protecção do mais fraco. Se isso não for possível, ou se o que for possível for exactamente o contrário disto, então é preferível não ter Europa nenhuma.

É por não ter compreendido isto, por não concordar com outra matriz da Europa que não seja aquela que os tratados encerram e o directório põe em prática, que o PS se mostra muito surpreendido com a aliança do Syriza na Grécia. É que no contexto neoliberal em que nos encontramos os aliados são os combatem o neoliberalismo e não aqueles que apenas lhe pretendem “fazer uma cócegas” ou “arredondar-lhe as arestas” mais vincadas. A estratégia do Syriza, tanto quanto se percebe, é que aponta para uma luta dura contra a União Europeia para o êxito da qual precisa do apoio da maioria do povo grego e no decurso da qual conta também colher simpatias e apoios nos povos semi-adormecidos do sul da Europa.

Não há em Portugal neste momento – essa é que é a verdade – quem esteja em condições de travar vitoriosamente essa luta. Quem poderia travá-la não tem votos suficientes para chegar ao poder; quem poderá vir a ter votos para alcançar o poder não está em condições de a travar.

Essa a razão por que a vitória do Syriza pode ter em Portugal consequências perversas. Criar a ilusão de que existe uma oposição à política do Governo e apresentar como meios para por em prática essa oposição as decisões do Sr. Draghi, as frases soltas da Sra Christine Lagarde ou a “nova” política do Conselho Europeu só pode ter como consequência a frustração de quem mais uma vez acreditou nos “políticos” e uma vez mais se sente enganado com tudo o que daí necessariamente decorrererá mais tarde ou mais cedo.
Dir-se-á: e qual é a alternativa? Sim, qual a alternativa – esse o problema. Uma coisa porém é certa: a inexistência de alternativa não faz da não alternativa uma alternativa. A alternativa é lutar, sem sectarismos nem tentações hegemónicas,  por uma alternativa.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

MARCELO E JUDITE RIDÍCULOS


 

RIDÍCULOS, MAS NÃO SÓ


 

Para não terem de abrir o programa com a entrevista de José Sócrates à TVI, Marcelo e Judite alteraram o seu formato e fizeram o comentário da semana dia a dia, cronologicamente. Ridículos, sumamente ridículos. No caso dela acumula o ridículo com a falta de ética profissional.

Sócrates acabou por entrar como penúltimo tema do comentário. Algo, porém, Marcelo aprendeu entretanto sobre a prisão de Sócrates. Mais vale tarde do que nunca. Aprendeu que Sócrates está preso por enriquecimento ilícito. E reconheceu que para o condenar vai ser preciso que a acusação prove que o dinheiro que Santos Silva entregou a Sócrates é realmente deste e não daquele. E reconheceu também que não basta esta prova. A acusação vai ter ainda de provar que Sócrates adquiriu esse dinheiro ilicitamente, por corrupção ou qualquer outro meio ilícito.

Ou seja, reconheceu que a situação de Sócrates é exactamente aquela que descrevemos no último post. Mas não tirou a conclusão que se impunha: que estando Sócrates preso por um crime que não existe no ordenamento jurídico português e não existindo também neste momento prova que justifique a ilicitude daquele enriquecimento, que por sua vez é meramente presumido, Sócrates deve ser libertado. Deve ser libertado porque nem sequer a condição necessária da prisão preventiva existe e muito menos se verifica qualquer uma das três situações (subsequentes) que a podem legitimar.

Marcelo não tirou esta conclusão e agora é a nossa vez de presumir: presumivelmente porque tendo sido criado e educado no seio do fascismo, paredes meias com o salazarismo e em grande intimidade com o marcelismo, nem sequer lhe passa pela cabeça que deva ser posto em liberdade alguém sobre quem recaem suspeitas de ter praticado ilegalidades, apesar de não haver provas que juridicamente sustentem essa suspeita. Isto, porque no fascismo a prisão preventiva tinha exactamente esse objectivo: obtenção da prova e atemorização do suspeito. Afinal, estamos mais próximos da Santa Inquisição do que supúnhamos.

A nossa presunção só não será legítima se Marcelo demonstrar que foi por outra razão que não tirou a conclusão que se impunha. Uma vez que é a ele, de acordo com a lógica que justifica a prisão de Sócrates, que cabe ilidir a presunção mediante apresentação da contra-prova. A nós basta-nos a presunção…

sábado, 3 de janeiro de 2015

AINDA A PRISÃO DE SÓCRATES



A DISCRICIONARIEDADE EM PROCESSO PENAL
 

 

A arbitrariedade é o pecado capital em processo penal. Ela é a consequência normal da ampla discricionariedade concedida ao juiz neste tipo de processo. Já aqui fizemos referência a este fenómeno e às suas consequências sobre os direitos, liberdades e garantias constitucionalmente assegurados.

Contrariamente ao que se passa no direito administrativo em que teórica e praticamente há a possibilidade de impedir a execução de um acto discricionário da administração manifestamente ilegal por via de recurso contencioso, antecedido de uma providência cautelar na qual se peça a suspensão da sua execução, no direito processual penal essa garantia não existe.

Se o juiz de instrução criminal, a pedido do Ministério Púbico, concede a prisão preventiva ao abrigo do seu poder discricionário, por maior que seja a ilegalidade por ele cometida, por mais arbitrária que a sua decisão tenha sido, desde que determinados requisitos formais mínimos tenham sido garantidos (inaplicabilidade do regime de Habeas Corpus), não há juridicamente meio de impedir a execução dessa decisão. O arguido, suspeito da prática de crime doloso, punível com pena de prisão em princípio superior a três anos, vai mesmo para a cadeia, e somente por via do recurso para a instância superior poderá pôr termo à execução da medida de coacção decretada. Mas o tempo que passou na prisão já ninguém lho tira e o juízo que a opinião pública faz do facto que lá o levou ambém não. Isto sem esquecer que o tribunal de instância superior goza igualmente de grande discricionariedade na apreciação da decisão tomada pelo tribunal inferior.

Como também já foi referido noutro post, o facto de nas faculdades de direito não haver uma cadeira de Teoria do Direito, na qual a discricionariedade pudesse ser estudada como categoria autónoma, leva a que ela somente seja estudada em Direito Administrativo a propósito da actuação da administração.

Portanto, para além da ampla discricionariedade concedida aos juízes em processo penal, junta-se a impreparação da maior parte dos juristas para atacar este específico problema e, principalmente, para criar o necessário clamor público que leve a reformulação da lei e dos princípios em que essa mesma lei até agora tem assentado.

É de facto chocante que alguém esteja preso sem julgamento sem sequer ter conhecimento dos específicos crimes de que o acusam, dos concretos factos em que os mesmos se fundamentam e que nem o processo possa consultar para fazer eficazmente a sua defesa. Este regime abre a porta a todas as arbitrariedades e permite que a luta política se infiltre na justiça pela porta dos fundos, sempre que o suspeito é uma personalidade política.

O caso de Sócrates é exemplar. O Ministério Público e o juiz são os responsáveis por o processo ter vindo para a praça pública. Desde a prisão à chegada de Paris, passando pelas buscas da Rua Braamcamp até aos factos meticulosamente filtrados para os jornais veículos das teses da investigação tudo foi criteriosamente trabalhado. O que se pretendia demonstrar era uma situação típica da luta política não inteiramente coberta pelo direito mas de grande eficácia junto da opinião pública capaz de gerar instintivamente um sentimento de revolta e de condenação perfeitamente compreensível. Ou seja, que um ex-governante vivia muito acima das suas possibilidades e que levava um estilo de vida insusceptível de ser compreendido à luz dos rendimentos por ele declarados.

Este é o ponto de partida e constitui o facto mais facilmente demonstrável. Este facto, porém, não constitui crime no direito penal português. Por outras palavras, o enriquecimento ilícito não é um tipo legal de crime, consequentemente ninguém pode ser preso por viver acima das suas possibilidades ou por ser titular de um património que está muito para além dos seus rendimentos. Se fosse possível, a maior parte daqueles que em Portugal não trabalham por conta de outrem, ou seja, desde os pequenos e médios comerciantes, industriais e agricultores, passando pelas profissões liberais, pelos artífices e prestadores de serviços de todo o tipo até aos grandes patrões do comércio, da indústria, da agricultura e dos serviços, estaria presa e não haveria cadeias que chegassem para albergar tanta gente…

Para que tais situações possam ser criminalmente atacáveis é preciso que a acusação, o Ministério Público, faça prova dos específicos crimes que podem levar àquele resultado, como, por exemplo, é o caso, entre muitos outros, da corrupção, da fraude fiscal, do branqueamento de capitais, da participação ilícita em negócio, etc., etc.

Acontece, porém, que o processo penal tal como está regulado na nossa lei permite que uma acusação menos escrupulosa e um juiz parcialmente justiceiro possam (não quer dizer que devam ou que tal comportamento seja legal) prender uma pessoa porque suspeitam que um estilo de vida manifestamente acima das possibilidades de quem o leva assenta em actos criminosos. E sabem que ao fazê-lo, principalmente nos termos em que o fazem, isto é, relativamente a um político, que isto cai bem numa opinião pública sedenta de “sangue” e exangue por força das brutais medidas de austeridade que lhe têm sido impostas para pagar a falcatrua dos bancos, a insensatez dos governantes e os desvarios de um sistema que não olha a meios para aumentar os lucros à custa da exploração desenfreada da maior parte.

Simplesmente, isto é o fim do estado de direito. É mesmo um atentado ao estado de direito e quem perpetra este tipo de acções não pode deixar de ser responsabilizado. Em processo penal não vale tudo e muito menos vale usar o processo penal como instrumento de luta política.

Os factos ontem dados a conhecer por José Sócrates, e de cuja existência já se suspeitava, configuram uma situação da máxima gravidade a que urge rapidamente pôr termo. A Justiça não pode prender um cidadão por suspeita de crimes não indiciados por factos específicos, e muito menos negar-se a exibir perante o detido as provas em que fundamenta a sua detenção. A prisão não pode ser o instrumento primeiro da investigação nem pode servir para aterrorizar ou humilhar o arguido.

A prisão de Sócrates é, como desde a primeira hora se tinha depreendido, ilegal. Portanto, não pode ser mantida apesar de gozar da aceitação de uma parte da opinião pública, dos partidos do Governo e da relativa compreensão da nomenklatura do PS, suficientemente satisfeita desde que Sócrates possa fazer a “defesa da sua verdade”.

Como acabou de se ver, depois da intervenção de Marques Mendes na SIC desta noite, há uma perfeita sintonia entre as teses do PSD e as da acusação e do juiz de instrução. Também Marques Mendes apenas está interessado em sublinhar a tal divergência acima assinalada, que, como é óbvio, é a que “rende” na opinião pública.

Estado de direito, democracia, respeito pelos princípios essenciais do direito penal são conceitos despidos de conteúdo sem quaisquer consequências práticas. Marques Mendes tem a vantagem de nem sequer disfarçar, embora na pequenez do seu raciocínio esteja convencido do contrário.