A DISCRICIONARIEDADE EM
PROCESSO PENAL
A arbitrariedade é o pecado capital em processo penal. Ela é a
consequência normal da ampla discricionariedade concedida ao juiz neste tipo de
processo. Já aqui fizemos referência a este fenómeno e às suas consequências sobre
os direitos, liberdades e garantias constitucionalmente assegurados.
Contrariamente ao que se passa no direito administrativo em
que teórica e praticamente há a possibilidade de impedir a execução de um acto
discricionário da administração manifestamente ilegal por via de recurso contencioso, antecedido de
uma providência cautelar na qual se peça a suspensão da sua execução, no
direito processual penal essa garantia não existe.
Se o juiz de instrução criminal, a pedido do Ministério Púbico,
concede a prisão preventiva ao abrigo do seu poder discricionário, por maior
que seja a ilegalidade por ele cometida, por mais arbitrária que a sua decisão
tenha sido, desde que determinados requisitos formais mínimos tenham sido
garantidos (inaplicabilidade do regime de Habeas Corpus), não há juridicamente
meio de impedir a execução dessa decisão. O arguido, suspeito da prática de
crime doloso, punível com pena de prisão em princípio superior a três anos, vai
mesmo para a cadeia, e somente por via do recurso para a instância superior poderá
pôr termo à execução da medida de coacção decretada. Mas o tempo que passou na
prisão já ninguém lho tira e o juízo que a opinião pública faz do facto que lá o levou ambém
não. Isto sem esquecer que o tribunal de instância superior goza igualmente de
grande discricionariedade na apreciação da decisão tomada pelo tribunal
inferior.
Como também já foi referido noutro post, o facto de nas faculdades de direito não haver uma cadeira de
Teoria do Direito, na qual a discricionariedade pudesse ser estudada como categoria
autónoma, leva a que ela somente seja estudada em Direito Administrativo a propósito
da actuação da administração.
Portanto, para além da ampla discricionariedade concedida aos
juízes em processo penal, junta-se a impreparação da maior parte dos juristas
para atacar este específico problema e, principalmente, para criar o necessário
clamor público que leve a reformulação da lei e dos princípios em que essa mesma lei até agora
tem assentado.
É de facto chocante que alguém esteja preso sem julgamento
sem sequer ter conhecimento dos específicos crimes de que o acusam, dos
concretos factos em que os mesmos se fundamentam e que nem o processo possa
consultar para fazer eficazmente a sua defesa. Este regime abre a porta a todas
as arbitrariedades e permite que a luta política se infiltre na justiça pela
porta dos fundos, sempre que o suspeito é uma personalidade política.
O caso de Sócrates é exemplar. O Ministério Público e o juiz
são os responsáveis por o processo ter vindo para a praça pública. Desde a
prisão à chegada de Paris, passando pelas buscas da Rua Braamcamp até aos
factos meticulosamente filtrados para os jornais veículos das teses da investigação
tudo foi criteriosamente trabalhado. O que se pretendia demonstrar era uma
situação típica da luta política não inteiramente coberta pelo direito mas de
grande eficácia junto da opinião pública capaz de gerar instintivamente um
sentimento de revolta e de condenação perfeitamente compreensível. Ou seja, que
um ex-governante vivia muito acima das suas possibilidades e que levava um
estilo de vida insusceptível de ser compreendido à luz dos rendimentos
por ele declarados.
Este é o ponto de partida e constitui o facto mais facilmente
demonstrável. Este facto, porém, não constitui crime no direito penal
português. Por outras palavras, o enriquecimento ilícito não é um tipo legal de
crime, consequentemente ninguém pode ser preso por viver acima das suas possibilidades
ou por ser titular de um património que está muito para além dos seus rendimentos.
Se fosse possível, a maior parte daqueles que em Portugal não trabalham por
conta de outrem, ou seja, desde os pequenos e médios comerciantes, industriais
e agricultores, passando pelas profissões liberais, pelos artífices e
prestadores de serviços de todo o tipo até aos grandes patrões do comércio, da indústria,
da agricultura e dos serviços, estaria presa e não haveria cadeias que chegassem
para albergar tanta gente…
Para que tais situações possam ser criminalmente atacáveis é
preciso que a acusação, o Ministério Público, faça prova dos específicos crimes
que podem levar àquele resultado, como, por exemplo, é o caso, entre muitos
outros, da corrupção, da fraude fiscal, do branqueamento de capitais, da participação
ilícita em negócio, etc., etc.
Acontece, porém, que o processo penal tal como está regulado
na nossa lei permite que uma acusação menos escrupulosa e um juiz parcialmente
justiceiro possam (não quer dizer que devam ou que tal comportamento seja
legal) prender uma pessoa porque suspeitam que um estilo de vida manifestamente
acima das possibilidades de quem o leva assenta em actos criminosos. E sabem
que ao fazê-lo, principalmente nos termos em que o fazem, isto é, relativamente a um político, que isto cai bem numa
opinião pública sedenta de “sangue” e exangue por força das brutais medidas de
austeridade que lhe têm sido impostas para pagar a falcatrua dos bancos, a
insensatez dos governantes e os desvarios de um sistema que não olha a meios
para aumentar os lucros à custa da exploração desenfreada da maior parte.
Simplesmente, isto é o fim do estado de direito. É mesmo um
atentado ao estado de direito e quem perpetra este tipo de acções não pode
deixar de ser responsabilizado. Em processo penal não vale tudo e muito menos
vale usar o processo penal como instrumento de luta política.
Os factos ontem dados a conhecer por José Sócrates, e de cuja
existência já se suspeitava, configuram uma situação da máxima gravidade a que
urge rapidamente pôr termo. A Justiça não pode prender um cidadão por
suspeita de crimes não indiciados por factos específicos, e muito menos
negar-se a exibir perante o detido as provas em que fundamenta a sua detenção.
A prisão não pode ser o instrumento primeiro da investigação nem pode servir
para aterrorizar ou humilhar o arguido.
A prisão de Sócrates é, como desde a primeira hora se tinha
depreendido, ilegal. Portanto, não pode ser mantida apesar de gozar da aceitação
de uma parte da opinião pública, dos partidos do Governo e da relativa
compreensão da nomenklatura do PS, suficientemente satisfeita desde que
Sócrates possa fazer a “defesa da sua verdade”.
Como acabou de se ver, depois da intervenção de Marques Mendes
na SIC desta noite, há uma perfeita sintonia entre as teses do PSD e as da
acusação e do juiz de instrução. Também Marques Mendes apenas está interessado
em sublinhar a tal divergência acima assinalada, que, como é óbvio, é a que “rende”
na opinião pública.
Estado de direito, democracia, respeito pelos princípios
essenciais do direito penal são conceitos despidos de conteúdo sem quaisquer consequências
práticas. Marques Mendes tem a vantagem de nem sequer disfarçar, embora na
pequenez do seu raciocínio esteja convencido do contrário.