A DECISÃO DO TRIBUNAL ALEMÃO
Parte II
A estratégia espanhola - a não internacionalização o conflito catalão, a
recusa de o encarar como problema político, vendo-o antes como simples questão do foro judicial a
dirimir pelos tribunais, isto é, a reprimi-lo mediante a aplicação de
pesadíssimas sanções penais - corre o risco de derrapar exactamente a partir da
actuação do país que para Espanha era mais importante – a Alemanha – e do qual
menos esperava uma resposta negativa. E foi o que aconteceu.
A ordemde detenção europeia emitida pelo Supremo Tribunal para o tribunal alemão
competente – no caso, o Tribunal Superior de Schleswig-Holstein – não foi
atendida no que respeita ao crime de rebelião e ficou suspensa da apresentação
de novas e mais concludentes provas quanto ao crime de “malversacion”, tendo consequentemente Puigdemont sido libertado sob fiança.
Independentemente da interpretação a adoptar sobre a execução de uma
euro ordem – e já lá iremos -, não há dúvida de que este expediente judiciário, decorrente do acordo de Schengen, vigente no seio dos Estados
que ratificaram este tratado, implicando a obrigação de cooperação judiciária assente na confiança recíproca, é diferente do procedimento de extradição, que, envolvendo igualmente uma intenção de cooperação, não deixa
de ser, pela forma como, em regra, está regulada nos acordos bilaterais que a
consagram, uma manifestação da soberania dos Estados. Embora a confiança recíproca seja a pedra angular da cooperação judiciária “europeia”, é bom não esquecer a imensa
polémica que este procedimento levantou quando foi discutido e aprovado no
Conselho Europeu, principalmente entre a Espanha (sempre a Espanha…) e a
Bélgica, seguramente motivada não apenas por ressentimentos históricos, mas já
por força da desproporcionalidade manifestada pelo sistema penal espanhol
relativamente a certo tipo de crimes.
E daí a polémica que tem rodeado a execução das ordens de detenção europeia, polémica
que, como é óbvio, se não manifesta relativamente à generalidade dos crimes de
direito comum, mas a crimes ou a procedimentos penais em que possam estar a ser
subvertidos princípios fundamentais do Estado de Direito e, inclusive, os
direitos fundamentais, como acontece, ou pode acontecer, nas áreas penais de
maior incidência política. Por outras palavras, um Estado democrático, seguro
dos seus princípios, sensível à opinião pública democrática, por maior que seja
- ou diga que é - a confiança que deposita nos seus parceiros de Schengen, não
deixará de avaliar aquelas questões no cumprimento das ditas euro ordens.
E tanto assim que somente esta legítima preocupação pode justificar as
duas interpretações em confronto sobre a execução das euro ordens. De um lado,
o sistema judiciário espanhol - fiscalia (ministério público), juízes,
advogados, alguns professores de direito -, segundo o qual o Estado que recebe
a euro ordem não tem que julgar as qualificações jurídicas feitas perlo Estado
solicitante, mas apenas verificar se os factos imputados integram ou não um
tipo legal de crime no Estado solicitado; se integram, qualquer que ele seja, a
euro ordem deve ser executada; se não integram, não haverá entrega da pessoa
detida. Outra, porém, foi a interpretação do tribunal alemão mais próxima do
entendimento que aponta no sentido de que cabe ao Estado solicitado analisar se
o tipo legal de crime pela prática do qual a pessoa detida está acusada existe
no seu ordenamento ou outro substancialmente equivalente; se não existir, não
entrega; se existir, poderá julgar se os elementos constitutivos do dito tipo legal
estão ou não integrados pelos factos descritos.
Na Alemanha não existe o crime de rebelião, mas um outro
substancialmente idêntico – o de alta traição -, tendo o tribunal considerado
que não se verificava um dos requisitos fundamentais para integração desse tipo
legal de crime – a violência, razão pela qual denegou a entrega de Puigdemont.
Evidentemente, que o tribunal alemão, para considerar que os factos
descritos na euro ordem emitida pelo tribunal espanhol não configuravam uma
situação de violência, teve de os julgar. E isto é que tirou os espanhóis do
sério. Mas não somente isto, que apesar de tudo era algo que mantinha a questão
no foro judicial. Pior foram as declarações da Ministra da Justiça da Alemanha,
a social-democrata Katarina Barley, de apoio à decisão do tribunal,
considerando-a “absolutamente correcta”, esperando que os juízes deixassem
Puigdemont em liberdade sob fiança, (que foi, como se sabe, o que veio a
acontecer), tendo ainda acrescentado que se o Supremo espanhol não justificasse
a prática de outros delitos, Puigdemont passaria a ser “um homem livre num país
livre, quer dizer, na Alemanha".
Por outro lado, um dos
vice-presidentes do grupo parlamentar social-democrata, Rolf Mütznich, disse
que “ o Governo espanhol tem de aceitar que os tribunais alemães decidam
independentemente dos requisitos políticos”, insistindo que deve ser encontrada
uma solução política para a questão da Catalunha, “podendo (a Espanha) contar,
se precisar de ajuda, ou com países europeus ou com a própria União Europeia
como interlocutores adequados”, terminando por comparar o sistema judicial
espanhol com o da Polónia e o da Turquia, razão pela qual as euro ordens devem
ser analisadas de modo a ficar garantido o respeito pelos princípios legais e democráticos.
A entrada em cena da Alemanha, como país solicitado pela euro ordem, fez com
que, além destas, outras vozes críticas relativamente ao que se passa em
Espanha se tivessem manifestado, não apenas nas hostes social-democratas, e,
obviamente na Esquerda (Die Linke), mas também nos Verdes e na própria CDU
(democracia cristã).
Como seria de esperar os espanhóis
lançaram uma forte ofensiva tendente a neutralizar os efeitos devastadores da
sentença do tribunal alemão. O governo de Rajoy fez saber que se sentiu
incomodado por a Ministra da Justiça ter apoiado politicamente a decisão, tendo
esta ficada encarregada, por Merkel, de pôr termo ao assunto, dizendo que se
tratou de um “mal-entendido”. Por seu turno, a “Fiscalia” espanhola sentindo-se
ligeiramente apoiada pelo ministério público alemão promoveu um encontro em
Haia, na sede do departamento para a cooperação judiciária europeia, para
convencer os seus congéneres alemães a pedir ao tribunal uma reapreciação do
caso.
Este
procedimento é juridicamente viável, se a decisão do tribunal alemão não tiver sido uma decisão definitiva, mas uma simples decisão preliminar, que aguarda a presentação dos elementos solicitados. Fora deste caso, a decisão do tribunal alemão só poderá ser alterada pela via do recurso. A frenética actividade da "Fiscalia" espanhola reunindo "provas às pazadas” (404 actos de violência!), para tentar convencer o tribunal alemão de que houve violência no dia da
realização do referendo, faz supor que se trata de uma decisão preliminar.
Todavia, pela leitura dos passos da decisão do tribunal alemão a que tivemos acesso, percebe-se que o que está em causa é a desproporção da pena relativamente aos actos praticados. As analogias que o tribunal faz para considerar que os factos constantes da acusação não podem ser considerados violentos e consequentemente integrar um tipo legal de crime com a gravidade do crime de rebelião deixa supor que não será pelo facto de os espanhóis apresentaram mais uma dúzia ou quatrocentas provas mais ou menos da mesma natureza das anteriores que a decisão se vai alterar. Aliás, esta estratégia espanhola de apresentação de mais provas dá o flanco, por estar a validar a interpretação seguida pelos alemães e não aquela que os espanhóis
defendiam. Portanto, não é nada provável que o tribunal alemão venha a mudar a
decisão. Na Alemanha sabe-se muito bem o que se passou no dia 1 de Outubro de
2017 e sabe-se também que os espanhóis buscam desesperadamente um pretexto para
aplicar uma pesadíssima e desproporcionada pena aos independentistas
catalães.
Em teoria, restaria ainda aos
espanhóis, ao Juiz Llarena, recorrer para o Tribunal de Justiça da UE para que
se pronuncie sobre a Interpretação que o tribunal alemão fez da regulamentação
das euro ordens, o que de momento não ponderam fazer.
Não vale a pena ter ilusões, esta
decisão do tribunal alemão constitui uma forte censura ao sistema judiciário
espanhol e ao modo como o governo de Rajoy está lidando com a questão catalã. E
sendo feita, como é, por um órgão de Estado independente, deixa o Governo
alemão teoricamente à margem da polémica, mas provavelmente satisfeito, pelo
menos uma parte dele, por ter havido na Alemanha quem tenha levantado o
problema, que é uma forma eficaz de o trazer para debate na opinião pública
europeia.
Para quem por cá ainda tenha
(honestamente) dúvidas sobre o sistema judiciário espanhol, bastará dar o
seguinte exemplo recente que, além de ter em si um valor absoluto, também
ilustra bem a estupidez com que os espanhóis actuam. A “fiscalia” da Audiência
Nacional (essa espécie de tribunal plenário da Espanha “democrática”), no dia
seguinte à ocorrência dos eventos acima relatados, acusou por terrorismo dois
membros dos Comités de Defesa da Republica – CDR – e ordenou a sua detenção por
terem promovido (tentado) cortes nas estradas (difusão de mensagens em que se
apelava ao corte pacífico, sem violência, de algumas vias públicas), bloqueios
das portagens e formação de piquetes! Esta acusação, se tivesse sido aceite
pelo juiz, faria incorrer os acusados em penas de prisão superiores a 50 anos,
tal a moldura penal daquele tipo legal de crime no ordenamento jurídico
espanhol. O juiz teve, porém, o bom senso de reconverter a acusação em delito
de perturbação da ordem pública, ordenando a libertação os acusados, embora com
medidas cautelares.
Apesar de a reforma penal de 2015
permitir, sem grande esforço, integrar nos crimes de terrorismo certos
comportamentos que em Estados democráticos jamais poderiam merecer essa
qualificação, também não é de pôr de parte, relativamente ao episódio acima
relatado, a hipótese de se tratar de uma encenação destinada a demonstrar que
em Espanha existe um estado de direito e que os juízes actuam com independência
relativamente ao poder político. De facto, a situação é tão absurda, mormente
numa altura em que se debatia a decisão do tribunal alemão e as suas
consequências políticas e jurídicas, que não é de pôr de parte aquela Interpretação, além
do mais por tudo se ter passado num tribunal como a Audiência Nacional. Enfim,
é uma hipótese, não é uma certeza.
Entretanto, a imprensa espanhola
vai-se desdobrando em editoriais, artigos de opinião e opiniões de juristas
tendentes a demonstrar que tanto os Estados membros da UE, em especial, como os demais devem aceitar os tipos legais de crime previstos no direito
criminal espanhol e respeitar os tempos e as garantias do Estado de Direito
espanhol.
Relativamente a Puigdemont, pedra
angular de ambas as estratégias – a de Espanha, esperando que lho entreguem
para ser julgado e a da Catalunha como elemento fundamental para a
internacionalização do conflito –, a Espanha parece admitir rebaixar a acusação
para o crime de sedição (punível com prisão até 15 anos) se tiver indícios de
que o tribunal alemão aceitará essa acusação com base nos factos que lhe foram
remetidos. O que a verificar-se – e não é crível que se verifique - teria
consequências terríveis para a justiça espanhola, que mantém relativamente aos membros
da Generalitat presos e outros a acusação de rebelião, uma vez que todo o
processo tem sido instruído nesse sentido. Esta divergência, mesmo num país
como a Espanha, seria política e juridicamente insustentável!
Por outro lado, o crime de “Malversacion”
dificilmente será reconhecido pelos tribunais estrangeiros, não apenas por se
tratar de um acto da responsabilidade de um colectivo, mas principalmente por
falta de provas, nomeadamente depois de Junqueras ter voltado a garantir que
não se gastou um único euro do orçamento no “procés”.
Sem Puigdemont a Espanha limitar-se-á
a fazer valer a sua estratégia apenas dentro das suas fronteiras e a vê-la
fracassar no estrangeiro, assim se deslegitimando as acusações que estão em curso. Entretanto,
a cada dia que passa, a Catalunha vai ficando mais longe de Espanha…