O ESPANHOLISMO E O GOLPE BRASILEIRO
A única grande diferença entre o sistema judiciário brasileiro e o
espanhol é que o brasileiro perpetrou um golpe de Estado, iniciado com a
destituição inconstitucional de Dilma e continuado com a prisão ilegal, e
também inconstitucional, de Lula, com a manifesta intenção de afastar a
esquerda do poder e reentregá-lo, indiviso e arbitrário, à oligarquia que tem governado
o Brasil praticamente desde a sua existência como unidade política
relativamente autónoma, enquanto o sistema judiciário espanhol actua em nome do
“espanholismo”, que é um conceito bem mais abrangente que o anterior,
representando nas suas actuações um sentimento comum às forças políticas
dominantes, integradas por vários estratos sociais, com interesses porventura
divergentes em múltiplas facetas da vida social, mas estranhamente unificadas
por um sentimento de grandeza perdida, a todo o momento exaltado por representações
fantasiosas que a realidade se encarrega de negar, daí resultando uma
frustração que se abate ferozmente sobre os que o não compartem, ou, pior que
isso, o combatem, desprezando-o.
Se o que se passa no Brasil com a destituição de Dilma e a prisão de
Lula falam por si no que respeita a princípios fundamentais de uma sociedade
democrática, como a presunção de inocência, a separação de poderes, o princípio
da legalidade, enfim, o respeito pelos direitos fundamentais, nomeadamente a coarctação
da liberdade física, já o que se passa Espanha com os independentistas catalães
é porventura pior, porque é o exemplo acabado do desprezo que um Estado pode
ter pelo ser humano que se não integra na sua mundividência, a ponto de
relativamente a ele considerar normal e aceitável uma actuação vingativamente
desproporcionada, que é sempre o suporte e o fundamento de todas as arbitrariedades.
E a arbitrariedade é indiscutivelmente a matriz e o meio por via do qual as organizações
políticas exibem o seu sectarismo e materializam o fundamentalismo que as
norteia na sua acção política.
Vem tudo isto a propósito do que se está a passar “aqui ao lado” com os
presos políticos da Catalunha. A Espanha tem, como se sabe, desde a sua
fundação como Estado unificado, um problema por resolver entre as partes que a
compõem. Umas vezes adormecido, outras severamente punido, este problema mantém-se
vivo e actuante na Espanha dos nossos dias, principalmente por o “espanholismo”
ser incapaz de reconhecer que a génese do seu Estado encerra um problema
político que só politicamente pode ser resolvido. A ideia de que a força bruta
resolve os problemas políticos é uma ideia tipicamente antidemocrática que a
consciência social do nosso tempo rejeita e repudia, não obstante a existência
de algumas vozes minoritárias que fora de Espanha a apoiam ou até a aplaudem. Mas
não nos iludamos, não é esse o sentimento dominante na opinião pública da Europa
que conta.
A Espanha alicerçou toda a sua estratégia relativamente ao problema
catalão na imposição da ideia de que é um problema que compete aos tribunais resolver,
ou seja, um problema do foro judicial, tendo envolvido nesta estratégia
tipicamente “espanholista”, além do PP, seu mentor e executor, os Ciudadanos, o
PSOE e também, com nuances, o próprio
Podemos. Os independentistas catalães, pelo contrário, basearam a sua
estratégia na ideia oposta, na ideia de que o procés é um problema político, que importa internacionalizar o mais
possível já que somente neste foro poderá ser resolvido.
Neste confronto de estratégias, pareceu a muita gente que a Espanha
tinha a guerra ganha com a prisão arbitrária de vários dirigentes
independentistas e de alguns conhecidos propagandistas do catalanismo, mais a
instauração de um sem número de processos a dirigentes que lograram manter a liberdade
mediante o pagamento de avultadas fianças, bem como com o apoio institucional
que a União Europeia e alguns dos seus dirigentes lhe prodigalizaram com a “langue
de bois” do costume em tais circunstâncias, como o respeito pelo primado da Constituição,
do Estado de direito, das decisões dos tribunais, etc e tal. O que nem a
Espanha nem os seus defensores e apoiantes no estrangeiro contavam é que um razoável
número de dirigentes catalães, ameaçados de severas, desproporcionadas e
injustificadas penas de prisão, tivessem tido a brilhante ideia de se exilar em
países europeus, a partir dos quais pudessem tentar a internacionalização do
conflito por pressão da opinião pública democrática.
A Espanha colocada perante um facto com que não contava não hesitou nem
um segundo na estratégia a seguir. Sempre com o “Carlos V metido na cabeça até à raiz dos neurónios”, o Supremo
Tribunal de Espanha, convencido de que estava a transmitir uma ordem a um vulgar
guardia civil, que obedientemente perfilado de tricórnio a cumpriria para honra
da Benemerita, emitiu uma “euro ordem” solicitando à Bélgica extradição dos “fugados”,
Puigdemonte e outros ex- membros do Governo da Catalunha. Dentro da tal lógica
de que acima falámos, os crimes por que os “extraditáveis” estavam sendo
acusados – rebelião, sedição, “malversacion” -, fariam incorrer os seus autores
em penas de prisão superiores a meio século!
É evidente, para qualquer democrata que se preze, que um pedido com
estas consequências – um pedido que muito provavelmente nem Erdogan teria
coragem de fazer – fez acender de imediato as luzes vermelhas anunciadoras dos
mais graves e arbitrários desvios aos princípios democráticos. Quando os
espanhóis perceberam que iam ser derrotados na barra, retiraram o pedido de extradição
com a sobranceria típica de quem considera a Bélgica um parceiro menor,
porventura recordados daqueles patriotas da Flandres que as cervejarias de
Bruxelas exibem pendurados pelo pescoço por obra e ordem do caridoso e mui pio
Filipe II de Espanha (e I de Portugal).
Deixou-se cair a prisão de Puigdemont, fizeram-se outras prisões, instruíram-se
outros processos e impediram-se, prendendo-os, os eleitos de exercer os seus
cargos. Ou seja, a estratégia manteve-se intocável, mas circunscrita ao
território espanhol. Até que Puigdemont foi convidado para debater o problema
catalão em Helsínquia. E logo o Supremo Tribunal de Espanha (e seguramente o
governo de Rajoy) entendeu que estava agora criado o circunstancialismo que
permitiria, finalmente, trazer de volta a Espanha o “fugado” catalão. E sem
hesitação emitiram nova euro ordem, desta vez para a Finlândia, que se desincumbiu
do encargo com a manha típica que os do norte costumam atribuir aos do sul,
dizendo que não sabiam onde ele se encontrava e que muito provavelmente já
teria transposto as suas fronteiras. Como o homem vinha de carro, os serviços
secretos espanhóis conseguiram detectar o seu percurso, de modo que mal ele
deixou a Dinamarca (país igualmente não confiável) e entrou na fronteira norte
da Alemanha, foi de imediato expedida nova euro ordem desta vez para a
fidelíssima Alemanha, solicitando a sua extradição para Espanha pela prática dos
crimes de rebelião e “malversacion” de fundos públicos (o dinheiro gasto na
realização do referendo foi em Espanha qualificado como dinheiro público gasto
indevidamente em proveito próprio).
Com esta acção a Espanha julgava acabar de vez com o caso Puigdemont no
estrangeiro, já que nem por sombras terá passado pelas iluminadas mentes do STE
que os juízes alemães fossem questionar o bem fundado das qualificações
jurídicas espanholas, nomeadamente a integração dos factos nos tipos legais de
crimes pela prática dos quais era solicitada a extradição.
Pois bem, onde a Espanha considerou estarem finalmente criadas as
condições para resolver um problema de acordo com a sua estratégia de sempre,
pode muito bem ter começado uma outra forma de o encarar, primeiro pela justiça
alemã, depois pela opinião pública europeia.
(Para não sobrecarregar mais este texto, amanhã será publicada a segunda
parte, que versará sobre a decisão do tribunal alemão, as reacções em Espanha e
as prováveis consequências daquela decisão na Europa).
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