O QUE REPRESENTA ESTA SENTENÇA
(Texto reformulado)
1 - Vamos tentar por palavras simples
explicar o que se passa. O assunto é complexo e a complexidade não pode
simplificar-se, mas pode tentar-se por palavras que todos entendam explicar
essa complexidade.
2 - Como é do conhecimento de todos que se interessam por estes assuntos, o
Banco Central Europeu (BCE) iniciou no primeiro trimestre de 2015 um programa
de compra de dívida emitida pelos Estados, tendo por essa via contribuído para
uma apreciável descida da taxa de juro nos mercados, que muito tem favorecido
os Estados mais endividados, a ponto de frequentemente se ouvir dizer que o BCE
de Mario Draghi salvou o euro com este programa que, de outro modo estaria
ameaçado, pela subida constante da taxa de juro ou pela sua fixação a um nível
altíssimo, que levaria necessariamente à falência de vários Estados membros e,
como é óbvio, à sua saída do euro.
3 - Como também se saberá, os tratados proíbem o financiamento dos Estados pelo
Banco Central Europeu (art.º 123.º do Tratado). O BCE já é, portanto, um banco
central gizado nos moldes neoliberais, dito independente do poder político, à
semelhança, à época, do Bundesbank, actuando num quadro completamente diferente
dos tradicionais bancos centrais, cujos estatutos foram também sendo
gradualmente substituídos por textos condizentes com a vulgata neoliberal, dominante
no mundo ocidental depois dos governos Thatcher/Reagan, e tornada hegemónica
depois da Queda do Muro e subsequente implosão da URSS.
4 - A primeira questão que aquela
política do BCE levanta é a de saber se a compra da dívida soberana emitida pelos
Estados membros da UE constituí ou não uma violação dos tratados, ou seja, da
norma que proíbe o Banco de financiar directamente os Estados membros da UE.
Formalmente, não se pode dizer que
aquela política do BCE seja uma violação dos tratados, porque o BCE não compra
a dívida directamente aos EM. O BCE compra-a no mercado secundário, ou seja,
compra-a a quem a comprou directamente aos Estados. Claro, que os juros baixam,
porque os que compram a dívida sabem que BCE a recomprará a seguir e que não
terão, portanto, nenhuma dificuldade em a revender com lucro.
Substancialmente, parece assemelhar-se àquilo
em que em Direito se chama fraude à lei. Ou seja, pela prática de um ou vários
actos lícitos, logra-se obter um resultado que a lei previu e proibiu. Mas a
questão não é clara, dada a letra do já referido artigo 123.º que refere
expressamente apenas a proibição de “compra directa de títulos da dívida…”
5 - Chegados aqui os problema que se põe
é o seguinte: quem tem competência para decidir sobre a regularidade da
actuação do BCE?
A União Europeia actua na base das
competências que lhe foram transferidas pelos seus Estados membros. Umas vezes
essa competência é exclusiva, outra é partilhada. Tanto num caso como noutro
somente a UE pode praticar juridicamente actos vinculativos, sejam esses actos
legislativos ou jurisdicionais, a menos que os Estados tenham sido habilitados
pela UE a fazê-lo ou, sendo a competência partilhada, no caso de a UE a não
exercer ou deixar de a exercer. Contudo, sempre que a exerça, os seus actos
prevalecem sobre os dos Estados membros.
6 - Portanto, a resposta àquela questão é fácil: Quem decide sobre a
regularidade da actuação do BCE ou de qualquer outro órgão comunitário são os
tribunais comunitários, o Tribunal de Justiça da União Europeia.
A regularidade jurídica dos actos
praticados pelas instituições comunitárias, sejam eles de natureza legislativa
ou administrativa, é jurisdicionalmente aferida pelos tribunais comunitários. É
aos tribunais comunitários que compete apreciar se o acto praticado pelas
instituições comunitárias está ou não conforme aos regulamentos (lei
comunitária) ou aos tratados.
Nem de outro modo faria sentido que
fosse. Se os Estados atribuem determinada competência a uma organização
internacional ou se para ela transferem parte da sua soberania não podem ser os
tribunais nacionais a fazer a fiscalização dos actos por ela praticados, sob
pena de essa competência se aplicar de forma diferente ao conjunto dos Estados
que a transferiram, quando o objectivo era exactamente o de criar um regime
único aplicável a todos eles.
Insistindo no absurdo de outra solução, imaginemos
que os Estados membros das Nações Unidas se reservavam o direito de controlar
por via dos seus órgãos jurisdicionais competentes as deliberações vinculativas
tomadas pelo Conselho de Segurança nos termos da Carta, impedindo que lhes
fossem aplicadas ou não as acatassem sempre que os seus tribunais nacionais
tivessem concluído que o CS havia actuado ultra
vires (para além das suas competências).
7 - Então, como se justifica a intervenção do Tribunal Constitucional alemão
relativamente à prática de um acto proveniente das instituições comunitárias?
Agora será preciso explicar como se
relaciona juridicamente a União Europeia com os seus Estados membros.
Os Estados que integram a União Europeia
aceitaram pela via dos tratados que ratificaram criar uma organização
internacional bem diferente das que normalmente existem na comunidade
internacional, criadas pelos Estados.
A generalidade das instituições
existentes na comunidade internacional, criadas pelos Estados soberanos, não
dispõe de poderes normativos relativamente aos Estados que delas fazem parte.
Estas instituições não podem elaborar normas destinadas a vigorar no território
dos seus Estados membros. São antes organizações de cooperação internacional
que só excepcionalmente gozam do direito de praticar actos vinculativos para os
Estados que as constituem (não normativos, embora decididos ao abrigo de uma
norma) e quase sempre, quando isso acontece, com a prévia e específica
concordância desses Estados.
Diferentemente se passam as coisas na
União Europeia. A UE pode, nos termos dos tratados constitutivos, emitir normas
directamente aplicáveis no território dos Estados membros. São os chamados regulamentos. E pode também pela via
das directivas obrigar os Estados a
emitir normas destinadas a alcançar os fins nelas previstos, embora deixando
aos Estados a escolha dos meios adequados para os alcançar.
8 - Chegados aqui, perceberão os leitores que, por força desta configuração sui generis da União Europeia, cada
Estado membro passa a ter no seu território normas provenientes de legisladores
diferentes: do seu próprio legislador e do legislador comunitário. Aliás,
qualquer Estado terá sempre como normas reguladoras da sua actuação, além das
normas que ele próprio edita, as normas de direito internacional a que está
sujeito. Mas vamos deixar este assunto de parte para não complicar
exageradamente a exposição e atermo-nos apenas à relação entre as normas acima
referidas em vigor no território dos Estados membros – as internas e as
provenientes da UE.
9 - Que relação existe entre estas
normas? Como se afere da sua hierarquia? Qual o valor relativo de cada uma
delas?
Num sistema jurídico, qualquer que ele seja, as normas não têm todas o
mesmo valor normativo. Há entre elas uma relação de hierarquia, consoante a
fonte de onde emanam. Esta hierarquia vem modernamente regulada nas
Constituições dos Estados.
Na Constituição Portuguesa ela está regulada, para os efeitos que aqui nos
interessa ter em conta, no artigo 8.º da Constituição. Para efeito da relação
de hierarquia entre as normas de direito interno, ver arts.ºs 112.º e 277.º da
Constituição.
No referido artigo 8.º, a Constituição dispõe o seguinte:
1- “As normas e os princípios
de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito
português”.
2 - “As normas
constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas
vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem
internacionalmente o Estado Português”.
3- “As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações
internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem
interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados
constitutivos”.
4 - “As disposições
dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas
instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na
ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos
princípios fundamentais do Estado de direito democrático”.
A União Europeia legisla por meio de actos
normativos a que se dá, como já vimos, o nome de “Regulamentos”, não havendo
hoje qualquer dúvida, quer à luz dos Tratados, quer à luz da doutrina seguida
nos diversos EM, de que as normas daqueles regulamentos têm valor supra
legislativo. Quer isto dizer que qualquer norma interna de natureza
legislativa cede perante a norma comunitária que a contrarie. Se a norma
comunitária revoga ou não a norma de direito interno que a contrarie, essa já é
outra questão. Ao direito comunitário basta-lhe assegurar a eficácia das suas
normas, embora hoje pareça indiscutível que, nos domínios de competência
exclusiva da UE, as normas internas de natureza legislativa (Leis da AR e
DL do Governo) anteriores são revogadas pelas normas comunitárias posteriores
que as contrariem ou, se forem posteriores às normas comunitárias, serão
ilegais, logo nulas, se as contrariarem. Já nos domínios de competência
partilhada entre a UE e os Estados não será necessário ir tão longe: à UE
basta assegurar a eficácia das suas normas; por isso há quem entenda que nestes
casos as normas internas têm a sua vigência apenas suspensa enquanto vigorarem
as normas comunitárias. Em ambos os casos, porém, está garantido o valor supra
legislativo das normas da União Europeia relativamente às normas de natureza
legislativa dos EM em todas as matérias que, segundo os Tratados, sejam da
competência da União Europeia.
10 - Quanto a esta
questão, nenhuma dúvida. Só que há um outro problema de mais difícil resolução,
que é o seguinte: como acima já se disse, as normas internas dos Estados
membros não têm o mesmo valor normativo (art.º 112.º, e também art.º 277.º da
Constituição). Na hierarquia das normas internas, partindo das que valem menos
para as que valem mais, nós podemos distinguir três categorias de normas: os
regulamentos, as leis e as leis constitucionais. E a regra, nos modernos
Estados de direito, é em todo o lado a mesma: os regulamentos não podem
contrariar as leis, sob pena de ilegalidade; e as leis não podem contrariar a
Constituição, sob pena de inconstitucionalidade.
Ora, vimos atrás que
as normas emitidas pela União Europeia têm valor supra legislativo, mas
relativamente à Constituição qual será o seu valor? Que acontece se elas forem
contrárias à Constituição? Poderá um Estado Membro declarar a
inconstitucionalidade de uma norma comunitária? Antes de mais nada convém dizer
que, se a resposta fosse afirmativa, a inconstitucionalidade dessa norma
declarada por um tribunal nacional não acarretaria a sua nulidade no âmbito
europeu (ela continuaria a vigorar no território dos demais EM) mas apenas a
sua ineficácia no território do Estado que declarou a sua
inconstitucionalidade.
11 - Convém ainda
dizer que o problema de constitucionalidade que se põe para as normas de
natureza, digamos, “legislativa” (regulamentos) da União Europeia
poderia pôr-se igualmente para os tratados. Só que nesse caso há um remédio
prévio que pode e deve ser usado.
Explicando: Os
Estados vinculam-se internacionalmente por via dos tratados que negoceiam e
ratificam. A vinculação por meio de um tratado pressupõe um conjunto de fases
que termina com a ratificação que é o acto (ou um conjunto de actos) pelo qual
o Estado manifesta e comunica o seu consentimento a ficar por ele vinculado. O
Estado não deve ratificar um tratado que seja contrário à sua Constituição, já
que não há qualquer dúvida de que um tribunal nacional pode declarar a
inconstitucionalidade das disposições desse tratado que ofendam a sua
Constituição. Com efeito, a Constituição diz expressamente: “As normas constantes das convenções
internacionais regularmente ratificadas, vigoram na ordem interna
…” O que significa que, se não forem regularmente ratificadas, estão
feridas de inconstitucionalidade.
As normas do tratado
têm, assim, um valor supra legislativo (é neste sentido a doutrina
dominante entre nós, apesar de esse princípio se não poder inferir
inequivocamente do texto constitucional, acima citado) mas infra
constitucional. Se o Estado tiver dúvidas sobre a constitucionalidade do
tratado ou de algumas das suas disposições, antes de o ratificar, deve
remetê-lo ao Tribunal Constitucional para apreciação da constitucionalidade das
suas normas. E se TC detectar alguma inconstitucionalidade, o Estado terá,
teoricamente, três hipóteses: uma é não o ratificar ou ratificá-lo com reserva
das disposições inconstitucionais, caso o tratado admita reservas; outra, é
tentar renegociá-lo (mas isso depende sempre da vontade das outras partes, já
que com a assinatura do tratado se encerra a fase das negociações); e a
terceira, é alterar a sua própria Constituição de modo a pô-la conforme ao
tratado. Este último caminho foi o seguido por vários Estados europeus, Portugal inclusive, antes de ratificação de alguns
tratados constitutivos da UE.
12 - Há, portanto, um
problema em aberto, quanto à relação entre as normas comunitárias e as normas
constitucionais dos seus Estados membros, embora os tratados constitutivos da UE
nos termos amplos em que se exprimem sobre o primado do direito comunitário
pareçam querer abarcar toda a legislação de fonte europeia decorrente das
competências transferidas pelos Estados membros. Por seu turno, a generalidade
das constituições dos EM também não resolve expressamente a questão, como fazem
relativamente às normas e os princípios de direito internacional geral ou
comum, consideradas parte integrante do direito português. Ora, se fazem parte
integrante do direito português, terão, no mínimo, um valor idêntico ao da
Constituição.
Quanto à questão
anterior, do valor infra ou supra constitucional das normas
comunitárias, embora a posição da União Europeia, e antes dela da CEE, tenha
sido, muito por força da criação jurisdicional de direito comunitário, no
sentido do primado das normas comunitárias sobre as normas nacionais quaisquer
que elas sejam (legislativas ou constitucionais), ela continua em aberto em
certos Estados, como a Alemanha, onde os seus órgãos jurisdicionais se não
coíbem, como agora aconteceu, de declarar inconstitucional a actuação do BCE
por ter infringido o princípio da proporcionalidade na aplicação do art.º 123.º
do Tratado.
13 - A mesma Alemanha,
que agora questiona a actuação do BCE, já tinha, no contexto normativo anterior
a Maastricht, advertido, também pela via do seu tribunal constitucional, que as
jurisdições alemães se reservavam o direito de, em matéria de direitos,
liberdades e garantias, fiscalizarem a conformidade das normas europeias com a
Lei Fundamental (Constituição) da RFA. A justificação era convincente e óbvia:
enquanto os tratados constitutivos da CEE não contivessem normas sobre aquelas
matérias, a jurisdição alemã não deixará de o fazer, considerando inaplicáveis
em território alemão as normas comunitárias que ofendam aqueles princípios.
Por outras palavras: o Tribunal
Constitucional alemão reservava-se o direito de aferir, em matéria de direitos,
liberdades e garantias, da constitucionalidade das normas comunitárias,
qualquer que fosse a matéria por elas tratadas, em virtude de, na altura, a
Comunidade Económica Europeia não ter sido destinatária de qualquer tipo de
transferência de competência relativa a direitos, liberdades e garantias.
14 – Contrariando de
certa forma a ideia que fundamentava aquela intervenção do Tribunal
Constitucional, em matéria de direitos, liberdades e garantias, aquela mesma
jurisprudência a propósito da apreciação da constitucionalidade do Tratado de
Maastricht, em 1993, ampliou com base num fundamento diferente a competência
daquele tribunal relativamente a matérias inequivocamente agora transferidas
para a órbita da União Europeia, por as ditas matérias representarem
importantes limitações de soberania nacional em áreas do maior significado para
qualquer Estado soberano, ou seja, a criação de uma moeda única, de um banco
central e de uma política comum de crédito. O que levou logo alguns a dizer que
o Tribunal Constitucional Alemão tinha elevado o dinheiro à categoria de direito
fundamental! Como veremos adiante, embora esta seja a verdadeira razão pela
qual o tribunal constitucional se julga no direito de aferir da
constitucionalidade das normas dos tratados que a contrariem ou dos actos com
base nessas normas praticados, acaba por ser nos “direitos liberdades e
garantias” que o tribunal fundamenta, em última instância, a sua decisão.
15 – Ou seja, enquanto
até 1993 o que poderia justificar a intervenção fiscalizadora do Tribunal
Constitucional Alemão, e por extensão dos tribunais congéneres, ou com a mesma
competência, dos outros Estados Membros, em matéria de direitos, liberdades e
garantias, era o facto de a competência relativa a estes assuntos não ter sido
transferida para a então Comunidade Económica Europeia, a partir daquela data o
que passaria a justificar idêntica intervenção do tribunal era a importância da
matéria transferida.
O facto de o Estado
se ter visto privado da sua própria moeda, em virtude da sua substituição por
uma moeda única, comum a vários Estados, e de tal privação representar uma
importantíssima limitação de soberania, passaria doravante a ser razão
suficiente para justificar a acção fiscalizadora do tribunal em matéria de política
monetária da UE, nomeadamente do seu banco central – o Banco Central Europeu
(BCE), passando, assim, o tribunal nacional a ter competência para aferir da
conformidade da política monetária da UE/BCE com os termos do Tratado, obviamente
de acordo com a interpretação que o tribunal faz da norma questionada. Segundo
esta doutrina, se o tribunal concluir pela divergência entre a prática das
instituições comunitárias relevantes na matéria e os preceitos normativos que a
regulam, haverá uma violação da Lei Fundamental alemã, geradora de
inconstitucionalidade o que torna, por um lado, ineficazes os ditos actos
relativamente à Alemanha e dita, por outro, a proibição de os órgãos do Estado
alemão (Parlamento, Governo e Bundesbank) participarem na execução dessa
política.
Esta “ameaça” a que
na altura ninguém ligou dado clima de euforia que reinava entre os Estados
aderentes de “moeda fraca” – o que interessava era pertencer ao “pelotão da
frente” - acabou, depois de algumas tentativas falhadas, por concretizar-se
cerca de 30 anos mais tarde.
16 - Que dizer então da decisão do TC Alemão?
A primeira coisa que
deve referir-se é que as duas situações não são idênticas e que a extensão da
competência para fiscalizar a constitucionalidade de matérias não transferidas
a matérias transferidas, consideradas de importância relevante para o Estado em
questão, levará à de desagregação da União Europeia bem como à pluralidade de
regimes jurídicos relativos ao mesmo assunto, consoante a perspectiva de cada
Estado, ou - o que é inaceitável – a atribuição a um Estado forte, ou mais
forte que os demais, o “direito” de impor pela via jurisdicional uma política
que não logra pôr em prática pelas vias institucionais da organização a que
pertence.
A verdade é que não há
nenhuma razão objectiva que permita comparar as duas situações. Enquanto o
facto de uma matéria estar ou não transferida é uma questão objectiva que pode
ser facilmente aferida pela simples letra dos tratados, já a importância da
matéria transferida será avaliada por cada Estado de acordo com os seus
interesses relativamente ao assunto em causa, tratando-se, portanto, de uma
decisão de natureza eminentemente subjectiva.
Assim sendo, é de
manter a distinção que não permite ou permite a intervenção dos tribunais
nacionais relativamente às normas emanadas pelos órgãos comunitários, consoante
versem ou não sobre matéria transferida. Deste ponto de vista não se trata
tanto de defender o primado do direito “europeu” relativamente ao direito
constitucional nacional, mas antes de uma questão de competência jurisdicional.
Os tribunais nacionais estarão legitimados para intervir sempre que o seu juízo
tenha por base matéria não transferida, como acontece em direitos, liberdades e
garantias, e deixarão de a ter relativamente à matéria transferida qualquer que
seja a sua importância.
Na primeira situação, o tribunal (nacional)
apreciará a regularidade constitucional de uma norma comunitária relativamente
a matérias que são da competência exclusiva dos Estados por não ter havido nesse
âmbito, segundo os tratados, qualquer transferência de competências.
Na segunda situação,
o tribunal (comunitário) apreciará a regularidade da norma ou do acto com base
nela decidido por referência às normas dos tratados que regulam a matéria
transferida.
Analisando as duas
situações no seu contexto, constata-se que no primeiro caso a divergência entre
a norma europeia e a constituição nacional decorre, principalmente, de aquela
norma violar um direito fundamental, liberdade ou garantia; enquanto no outro,
a divergência entre a norma europeia e a constituição nacional decorre de a entrada
em vigor de uma norma europeia violar a norma do tratado relativa a matéria da
competência transferida.
No primeiro caso, o
princípio do primado do direito comunitário não se aplica, porque este
princípio só se aplica relativamente às matérias cuja competência foi
transferida, exclusiva ou parcialmente, para a União Europeia. Numa situação
destas os tribunais nacionais tem competência para analisar a regularidade da
norma, concluindo pela sua inconstitucionalidade se houver uma divergência
entre a norma e a constituição.
No segundo caso, como
se trata de um acto praticado com base numa norma que regula uma matéria
transferida, somente um tribunal da União Europeia poderá decidir sobre a sua
regularidade, ou seja, dizer se está ou não conforme aos tratados.
O primado do direito
comunitário neste segundo grupo de cassos decorre das normas dos tratados que
atribuem à UE a competência exclusiva para praticar actos vinculativos no
domínio das matérias transferidas e decorre também de uma prática de décadas
cimentada por uma jurisprudência que foi com o tempo dando natureza vinculativa
a uma interpretação que, sem esforço, se infere dos tratados, a ponto de hoje
ser geralmente acatada com a convicção de que se trata de um comportamento
imposto pelo direito. Se esta competência fosse alargada à jurisdição dos
Estados não somente se estava a infringir o princípio do primado do direito
comunitário, como também se estaria a fomentar a pluralidade de regulamentações
da mesma matéria transferida.
17 - Apesar de a decisão do Tribunal Constitucional alemão incidir sobre a
alegada divergência entre as competências transferidas pelo tratado e as
competências exercidas pelo BCE, visto ter sido a actuação ultra vires do banco central que motivou a censura do tribunal, não
por violação do art.º 123.º, mas por violação do art.º 5.º que impõe aos órgãos
comunitários o respeito pelo princípio da proporcionalidade, ela acaba em
última instância por se fundamentar na violação dos direitos fundamentais. O
raciocínio do tribunal alemão, bem como dos autores da acção, é o seguinte: se
a União Europeia, ou um órgão desta, ultrapassar as competências transferidas
pelos tratados (actuar ultra vires) será
posto em causa o consentimento do parlamento alemão, cuja legitimidade para o
prestar assenta no voto popular, daí resultando uma violação do direito de voto
do cidadão (art.º 38.º da Lei Fundamental).
Esta argumentação tem em vista, como logo se percebe, fundamentar
a decisão não na tal divergência entre a competência transferida e a exercida,
mas numa matéria da competência exclusiva dos Estados como é toda a matéria
relativa a direitos, liberdades e garantias.
Quanto a esta fundamentação, a primeira coisa que se pode
dizer é o que tribunal parece confundir transferência de competência com
exercício de competência. O Banco Central Europeu para atingir os fins que o
tratado lhe assinala (garantir a estabilidade dos preços) pode e deve utilizar
os meios que considera adequados à prossecução daqueles fins, ou seja, o princípio
da proporcionalidade obriga-o a não ir além do necessário para atingir aqueles
fins e a ter em conta os interesses em presença, mas não o obriga a actuar de
acordo com critérios que não sejam os seus, nem a actuar segundo instruções ou
recomendações de terceiros.
O exercício desta competência não é sindicável pelos tribunais
nacionais, mas pelo tribunal europeu, único a aferir da legalidade de actuação dos
órgãos da União Europeia, relativamente ao que está prescrito nos tratados.
Ao imiscuir-se nesta matéria o tribunal alemão, a pretexto da
defesa de direitos fundamentais, está na realidade a violar o princípio da “independência
do BCE”, inscrito no tratado como condição imposta pela Alemanha para aceitar a
moeda única; a violar o art.º 267.º do TFUE que estatui sobre a competência do Tribunal
de Justiça da União Europeia; e, por último, a violar o princípio da igualdade
entre os Estados, inscrito no art.º 4.º do TUE.
O grande sofisma em que assenta a decisão do tribunal alemão
consiste em os tratados terem atribuído ao tribunal europeu o direito de os interpretar
e de decidir vinculativamente sobre a regularidade de actuação dos órgãos da UE
por referência ao prescrito naqueles textos, como consequência da vontade
expressa dos parlamentos nacionais e demais órgãos competentes dos respectivos
Estados membros, os quais, em nome e em representação do voto popular,
transferiram aquelas competências para a União Europeia, pelo que vir agora
fundamentar a sua decisão na violação do direito de voto, desse mesmo voto que
permitiu aquelas transferências de poderes para a União Europeia, é abrir uma
porta pela qual tudo pode entrar, desde as actuações da UE em matérias de pouco
relevância a matérias de grande relevância e importância para a acção de todos,
EM e UE.
A invocação do voto popular para justificar a fundamentação
da decisão não deixa de raiar a demagogia, tantos têm sido os sentidos
atribuídos a esse voto, como a Alemanha sabe melhor que qualquer outro país;
mesmo admitindo o conhecimento preciso do sentido dado a esse voto, sabe-se que
nas democracias representativas não há uma sanção jurídica para um exercício de
poder divergente do sentido do voto, mas apenas uma sanção política que consiste
na não renovação do mandato de quem não respeitou o sentido com que aquele voto
foi atribuído.
Enfim, se cada Estado Membro interpretasse a transferência de
poderes nos termos em que o faz o tribunal alemão, ou seja, considerando-se
vinculado apenas e segundo a sua própria interpretação, teríamos no seio da UE,
relativamente a cada assunto da sua competência, tantos regimes quantas as
interpretações dos tribunais nacionais.
18 - – Apenas mais duas notas para
concluir a posição defendida no número anterior. Dir-se-á que a atribuição da
jurisdição aos tribunais nacionais para aferir da constitucionalidade das
normas “europeias” em matéria de direitos liberdades e garantias, como matéria
não transferida, está hoje prejudicada, não apenas por os tratados europeus,
principalmente a partir de Maastricht, terem passado a incluir normas sobre
aquelas matérias, mas também pela aprovação em 2016 da Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia. A nossa interpretação está porém longe de ir
nesse sentido. Tanto as referências aos direitos fundamentais nos tratados como
a aprovação da Carta dos Direitos Fundamentais apenas significam que a UE se obriga
a actuar de acordo com aquelas regras e princípios, mas de forma alguma quer
dizer que os Estados Membros tenham transferido essas matérias para a
competência, exclusiva ou partilhada, da União Europeia (ver art.º 6.º do TUE).
Nestas matérias, os Estados não abdicaram dos fundamentos que regulam a sua
actuação relativamente às pessoas em geral e aos seus cidadãos em particular,
nem transferiram essa competência para nenhuma outra entidade ou organização de
que façam parte, podendo dizer-se, contrariamente ao que sucede com a
generalidade das outras matérias, que, neste estrito domínio, foram os Estados
que obrigaram” a União Europeia a agir segundo aqueles padrões e não o
contrário, como acontece com a generalidade dos assuntos de natureza económica
e financeira, por exemplo.
Neste sentido, o citado art.º 8.º, n.º 4
da Constituição Portuguesa, “(…) com respeito pelos princípios fundamentais do
Estado Democrático”.
A segunda questão tem a ver com a
objecção que se poderia levantar ao primado do direito comunitário no domínio
das matérias transferidas. Pode dizer-se, e é verdade, que entregando aos
órgãos jurisdicionais da UE a competência para aferir da regularidade dos actos
praticados pela UE, eles, como sempre acontece com os órgãos das organizações
internacionais, terão tendência a concentrar nessas organizações o máximo de
poder possível, dai resultando prejuízo para os Estados que se vêem privados de
pelos seus próprios órgãos imporem algumas limitações àquelas tendências.
Embora haja muito de verdade nesta
afirmação, o que parece evidente é que não poderá ser pela via das jurisdições
nacionais que o problema deva ser resolvido. Os Estados poderiam e deveriam,
pelo menos relativamente a um núcleo de matérias por eles consideradas
essenciais, ter admitido a possibilidade de em caso de diferendo poderem recorrer
a um terceiro imparcial que dirimisse a questão. Uma espécie de tribunal
arbitral constituído por árbitros indicados por cada uma das partes e outros
por acordo de ambas as partes. Se o não fizeram, poderão a todo o tempo
fazê-lo…
19 - A recente
decisão do tribunal alemão sobre a actuação do BCE é, assim, uma decisão que
incide sobre matéria para a análise da qual aquele tribunal carece de
competência. É que nem sequer se trata de analisar se a actuação do BCE é
conforme ao art.º 123.º, ou seja, se o viola ou não aquele preceito, mas sobre
se a interpretação e aplicação daquele artigo por parte do BCE respeitou um
princípio prudencial de proporcionalidade. O tribunal alemão actuou como se
estivesse a analisar um acto interno de natureza administrativa praticado ao
abrigo de um poder discricionário, aferindo da oportunidade da actuação como se
estivesse a aferir da sua legalidade. Supondo que o poderia fazer – e não pode –
mesmo internamente um acto daquela natureza somente poderia ser anulado se se
tivesse provado uma escandalosa situação de desproporção na actuação do seu
autor, usando, por exemplo, um meio manifestamente excessivo para alcançar um
resultado a que se poderia chegar por outra via ou a que não é legítimo chegar
mediante a utilização de um meio manifestamente desproporcional face ao
resultado pretendido.
20 - A sentença,
aliás, assenta num sofisma inadmissível: O TC alemão diz que aceita o primado
do direito da União Europeia e simultaneamente arroga-se o direito de impor a
sua interpretação das normas comunitárias às autoridades europeias e exigir a
sua aplicação segundo a interpretação que ele próprio faz. O que o tribunal
alemão pretende, em última instância, é impor uma política do euro conforme aos
interesses da Alemanha. E por aqui também se pode concluir que as tais reservas
que o TC alemão manifestou em 1993 quando permitiu a ratificação do Tratado de
Maastricht adquirem com o decurso do tempo, principalmente tendo em conta a
posição que a Alemanha sempre tem defendido em matéria de política monetária, a
configuração de uma espécie de reserva mental – a Alemanha aceita a moeda única
desde que ela seja a moeda alemã!
21 – É, aliás,
duvidoso que o TC alemão, internamente, tivesse da sua jurisdição,
relativamente ao Bundesbank, uma compreensão tão ampla como a que tem
relativamente ao BCE. A sua badalada independência certamente o impediria de trilhar
uma via semelhante à trilhou para censurar a política do BCE. Por isso, não
será ousado afirmar que a sentença do tribunal alemão é um gesto inadmissível
de arrogância política. É um atentado ao multilateralismo baseado no puro
interesse nacional. Ela está para a UE como as sanções americanas ao Irão ou à
Rússia para a comunidade internacional. Actos de puro terrorismo político.
22 - O Tribunal Constitucional o que no fundo
está a dizer é que somente aceita uma política do Banco Central Europeu que
seja conforme aos ditames do Bundesbank. O que além de ser uma aberração
jurídica, é uma covardia política, já que o acto jurisdicional não é o meio
adequado para proferir uma afirmação de natureza eminentemente política.