quinta-feira, 12 de novembro de 2009

ATÉ ONDE VAI JURIDICAMENTE A PROTECÇÃO DO PM?



O VALOR DAS “ESCUTAS”

Tem suscitado comentários despropositados algumas considerações aqui feitas sobre o valor das “escutas”, apesar de muito semelhantes, nos seus resultados, às de conhecidos especialistas que sobre o tema se têm pronunciado.
Como aqui já foi explicado, as escutas, sejam elas telefónicas ou de outra natureza, envolvem, por definição, pelo menos, outra pessoa. Realmente não é nada provável, embora seja possível, que o alvo das escutas se ponha a falar sozinho em voz alta…Portanto, a autorização judicial de violação da “intimidade” ou “privacidade” do alvo das escutas, envolve também, necessariamente, a autorização de violação da “intimidade” ou “privacidade” da pessoa que com ele fala. Nem poderia ser de outro modo, uma vez admitidas as escutas, sob pena de as mesmas se tornarem incompreensíveis. Já o mesmo se não passará necessariamente com a intercepção de comunicações de outra natureza, sem contudo deixar de ter em conta que a compreensibilidade de algumas delas possa igualmente justificar a violação da privacidade do “interlocutor do alvo das suspeitas”.
Como o nosso legislador material nem sempre pensa bem e reage muitas vezes sob o impulso de uma situação concreta acontece se expressar algumas vezes da forma mais conveniente. Embora esta situação não deva ser considerada normal, nem ser aceite sem crítica, quanto mais não seja para evitar que sucessivamente se repita, a verdade é que o Direito se depara a cada passo com situações deste género competindo aos aplicadores da lei interpretá-la de forma a manter a coerência do sistema.
No caso da nova regulação das escutas, tudo começou com o caso “Casa Pia”. O então Secretário-geral do PS, alvo de escutas devidamente autorizadas pela autoridade judicial, logo que teve conhecimento de que era considerado suspeito na investigação então em curso, mas sem ainda saber que estava a ser escutado, telefonou ao Presidente da República da época, Jorge Sampaio, manifestando-lhe todo o seu repúdio por uma actuação judicial que considerava completamente despropositada e inserida numa conspiração destinada a desacreditar a direcção política do Partido Socialista.
Os jornais transcreveram algumas destas conversas, nas quais, nalgumas delas, o Presidente da Republica se expressava com a descontracção típica de quem fala com um amigo. A exibição pública destas conversas chocou muita gente, principalmente por nelas estar envolvido o Presidente da República, cuja figura deveria ser preservada.
Logo que se tornou poder, o PS com a colaboração do seu parceiro de Bloco Central – o PSD – e ainda acolitado pelo CDS, votou no Parlamento uma lei que remetia para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça a autorização para a “intercepção, gravação e transcrição das conversações ou comunicações em que intervenham o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, o Primeiro Ministro…”
O Partido Socialista rejeitou claramente a formulação alternativa, muito mais razoável, que limitava a intervenção do PSTJ às conversações ou comunicações efectuadas por aquelas personalidades. O Partido Socialista quis, assim, assegurar uma protecção mais completa aos titulares daqueles órgãos de soberania, para evitar que as conversações ou comunicações com eles mantidas pudessem, por um lado, ser do conhecimento público (mesmo que em violação do segredo de justiça) e, por outro, constassem dos respectivos processos judiciais.
Este é o sentido da protecção. É porventura uma protecção exagerada, mas é sem dúvida a protecção que o legislador quis consagrar. Mas isso não significa que o legislador possa ter querido levar a aplicação da sua lei ao ponto de indirectamente proteger em todas as circunstâncias o alvo das escutas em consequência desta limitação e muito menos significa que o legislador – ou, de um modo mais objectivo – a lei alguma vez possa ser interpretada no sentido de conceder imunidade penal aos titulares daqueles órgãos de soberania. Se esse fosse o sentido da lei, ela seria claramente inconstitucional por violar flagrantemente o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei. Portanto, a protecção que o legislador quis conceder aos titulares daqueles órgãos de soberania cessa onde a cessa a razão de ser da protecção!
Daqui resultam duas consequências importantes:
Primeira – Se as conversações ou comunicações interceptadas em que intervenha uma das entidades “protegidas” forem na economia da investigação processual decisivas ou muito importantes para a descoberta da verdade no processo que tem como “alvo” a pessoa que está sob investigação, elas devem ser aceites como prova, independentemente da sua validação pelo PSTJ;
Segunda – Se das conversações ou comunicações interceptadas em que intervenha alguma das entidades “protegidas” resultarem indícios da prática, por alguma dessas personalidades, de actos ilícitos criminalmente puníveis, susceptíveis de prova mediante intersecção de conversação ou comunicação, deve das mesmas ser extraídas certidão e validada a intersecção pelo próprio juiz de instrução. Ou seja, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça não tem que se pronunciar sobre estes casos por eles não estarem compreendidos na hipótese normativa que lhe atribui competência para autorizar a intersecção de conversações ou comunicações.
Só assim se respeitará a Constituição e o Direito! Qualquer outra resposta jurídica que tenda a eliminar o valor probatório daquelas comunicações ou conversações é jurídica e moralmente mais indigna do que as leis imunitárias de Berlusconi, que, embora sem êxito, em virtude de terem sido declaradas inconstitucionais, consagravam de forma directa e frontal a completa imunidade do Presidente do Conselho de Ministros, enquanto em exercício de funções!

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