sexta-feira, 16 de julho de 2010

AS INSANÁVEIS CONTRADIÇÕES DE SÓCRATES



A PROPÓSITO DO ESTADO DA NAÇÃO

Quem tenha ouvido com um mínimo de atenção o discurso de Sócrates, hoje à tarde, sobre o “Estado da Nação”, logo percebeu que o ataque verbal dirigido ao liberalismo fundamentalista de Passos Coelho era todo ele destinado a permitir-lhe posicionar-se, eleitoralmente, face ao BE e ao PCP nas mais que previsíveis próximas eleições.
Teoricamente, do ponto de vista da esquerda, a construção de Sócrates até parecia suficiente para, face ao perigo da direita, cativar uma boa parte do eleitorado dos dois partidos de esquerda. Só que há posicionamentos muito visíveis da política de Sócrates que nenhuma retórica pode iludir.
De facto, Sócrates sabe ou deveria saber que Portugal não cresce praticamente nada desde há dez anos e que nesse mesmo período a dívida, pública e privada, aumentou exponencialmente. O ténue crescimento português é sempre conseguido à custa de um crescimento muito superior da dívida, facto que se torna a prazo – ou já se está tornando – incomportável, quer se seja optimista ou catastrofista.
Enquanto esta lógica se não inverter – e ela somente se inverte, mantendo-se Portugal na União Europeia, se houver uma radical mudança de políticas em Bruxelas – de nada adianta estar a demarcar território face ao PSD, porque, na hora da verdade, a triste realidade aí está para se impor cada vez mais cruamente.
Esta é a primeira insanável contradição em que Sócrates está envolvido. A segunda tem a ver no modo como internamente, dentro do contexto descrito, Sócrates afasta o Estado dos lugares onde cada vez mais se justifica que ele esteja. Referimo-nos às actividades económicas em que o Estado desempenha um papel empresarial importante.
Como se pode acreditar que Sócrates e o seu partido não querem afastar o Estado da vida dos portugueses, desprezando completamente o saudável equilíbrio que a sua presença pode trazer em vários domínios da actividade económica, se é esse mesmo Sócrates que se prepara para, em negócios ruinosos, entregar à iniciativa privada áreas de intervenção económica que nem em sonhos o mais ousado liberal do PS aqui há uns quinze anos atrás suporia poder privatizar?
A primeira questão, Sócrates ilude-a, sempre que começa a ser apertado, afirmando acriticamente que a Europa é uma coisa boa e que é essa atitude do partido a que pertence que verdadeiramente marca a sua diferença relativamente aos outros dois partidos de esquerda. Obviamente que esta resposta não contém um argumento sobre o qual se possa discutir racionalmente, antes encerra uma crença que, como todas as crenças, é do domínio da fé e por isso inalterável, pelo menos até ao dia em que alguém do PS resolva fazer algo de semelhante ao que aquele ex-fiel da IURD fez ontem em Faro num dos centros da dita organização.
É que não basta, para se ser minimamente credível, afirmar uma vez que a Comissão prossegue um fundamentalismo neoliberal. O fundamentalismo neoliberal está nos tratados que Sócrates tanto ajudou a concluir, está no Conselho Europeu, nos Tribunais, no Parlamento, enfim está por toda a parte. É preciso, portanto, travar lá diariamente essa luta, por mais exóticas que a defesa dessas posições possam parecer a quem vive completamente mergulhado na ideologia dominante. Pelo menos, até ao dia em que se reconhecer que não adianta continuar.
A segunda questão, Sócrates ou a omite, como fez hoje, ou a justifica com base na crença, resultante da crença acima referida, de que tudo o que possa contribuir para “acertar as contas públicas” é bom para a economia portuguesa, esquecendo-se mais uma vez de encarar a realidade tal como ela é. A delapidação do património do Estado para amortizar muito levemente uma dívida que não cessará de crescer enquanto se não alterar substancialmente o contexto político-económico ditado pelas políticas de Bruxelas não ajudará a resolver qualquer problema, antes agravará cada vez mais irremediavelmente a situação existente.
Se esta política, no seu conjunto, prosseguir sem quebra de rumo – e esta política não é apenas a política do Governo: é a política do sistema em que nos deixámos enredar -, é muito provável que em data não muito distante ocorra em Portugal uma profunda ruptura que nada terá a ver com os procedimentos a que estamos habituados para justificar as alterações de políticas.

1 comentário:

ntónio Marquês disse...

O poder a qualquer custo é isto mesmo: um constante golpe de rins, uns malabarismo linguísticos ou uma falta de escrúpulos ideológicos que se justificam com os tempos que correm. Mas claro que não tem que ser assim: apesar de tudo ainda é possível a honestidade na política e a inteireza de carácter no que fazemos e dizemos. No entanto, e infelizmente, parece que o espectáculo também tomou conta da nobre arte de governar os povos.
É contra isso que o autor deste blog luta e terá sempre o apoio daqueles que, como eu, entendem que a política não está obrigada a isto. Obrigado, novamente.