OU A MISTIFICAÇÃO HISTÓRICA
O Estado Novo tem sido estudado e reestudado por muitos
historiadores contemporâneos e existe hoje sobre ele uma abundantíssima
bibliografia, muito desigual na sua qualidade e frequentemente mistificadora daquilo
que foi o mais duradoiro regime político do século XX português, se não mesmo
um dos mais duradoiros do século XX, nomeadamente se tendermos a identificar a
essência do regime com o governo de um homem que lhe deu forma, sentido e
características individualizantes, não completamente coincidentes com outros da mesma época, não obstante a tendência para encontrar paralelismos em regimes já
implantados noutros países ou que logo depois se implantaram.
Por outro lado, para além das obras gerais abarcando a historiografia
política, económica e social, há inúmeros estudos parcelares e sectoriais que,
partindo quase sempre de uma visão de conjunto, tendem a encontrar nesse
específico sector objecto de estudo as linhas políticas dominantes
caracterizadoras do regime. A verdade é que a realidade foi quase sempre mais
inventiva do que o enquadramento que os esquemas preconcebidos deixam
compreender. E se há sectores onde as notas dominantes do regime estavam muito
presentes, outros há onde as diferenças entre o que se passava cá e lá fora são
quase nulas ou, a existirem, funcionavam num sentido de certo modo oposto ao
que por vezes se pretende sugerir.
Um dos sectores da vida social e política portuguesa da época
que não tem merecido a atenção dos grandes nomes da nossa historiografia
contemporânea é sem dúvida o desporto e, dentro dele, o futebol.
São poucas e pouco relevantes as obras sobre o Estado Novo e
o futebol. Há muitos artigos dispersos, alguns deles de duvidosa qualidade, há
as referências ligeiras numa ou noutra obra generalista, mas escasseiam as
obras que tenham estudado o fenómeno com objectividade e rigor.
E é talvez por isso que hoje, perdida, ou quase perdida, que
está a memória dos que foram contemporâneos do fenómeno se assiste a uma verdadeira
reinvenção daquilo que foi a vivência do futebol no Estado Novo ou da sua
importância política.
O futebol nunca foi para o estado Novo uma prioridade.
Obviamente que o Estado Novo não era alheio ao desporto e ao seu enquadramento como
factor de educação da juventude escolarizada. E, para começar, é bom que se
atente no adjectivo. Praticamente não havia desporto escolar no ensino
obrigatório. Somente nos liceus, e em muito menor medida nas escolas
comerciais, é que a “educação física” adquiria alguma relevância como cadeira
curricular. Mas nela o futebol não desempenhava nenhum papel, absolutamente
nenhum, como também não desempenhava nas actividades da Mocidade Portuguesa.
Pelo contrário, o futebol era reprimido nos tempos livres e a sua prática sujeita
a sanções – é certo cada vez mais difíceis de aplicar e por isso tolerado
sempre que o local onde se jogava não perturbava a actividade dos recreios, o
que era difícil.
Esta atitude contra o futebol nas escolas, era acompanhada
por uma marcada distanciação do regime em relação ao futebol em geral,
nomeadamente ao futebol “não amador”, que era o futebol jogado pelos clubes da
Primeira Divisão. Pelo menos, por alguns, já que outros, como a Académica, se
mantiveram fieis ao desporto amador, apesar de essa qualificação não passar, em
grande medida, de uma ficção.
Não se infira, porém, daqui que o desligamento do Estado Novo
relativamente ao futebol era total. O Estado Novo, apesar de muito parco em
apoios à actividade desportiva e de praticamente não subsidiar financeiramente
a construção de infraestruturas indispensáveis à prática do desporto, não se
coibiu de construir o Estádio Nacional, inaugurado em 10 de Junho de 1944, como
uma espécie de santuário, não verdadeiramente da prática desportiva, mas de desfiles
desportivos sempre ligados a datas históricas que o regime queria homenagear e
criar, à luz delas, a sua própria imagem identitária.
Durante a década de cinquenta muitos atletas, nomeadamente
futebolistas, oriundos das colónias começaram a fazer parte das equipas
portuguesas. Alguns estavam na “Metrópole” como estudantes, como é o caso dos futebolistas
ultramarinos dessa época que alinhavam na Académica, outros vieram
expressamente para integrar as equipas nacionais. O desenvolvimento do futebol,
principalmente em Angola e em Moçambique – mais em Moçambique -, devido ao
apoio que algumas empresas coloniais prestavam aos clubes, se é que não tinham
elas próprias o seu clube, a criação de filiais das grandes equipas
“metropolitanas” nas colónias, a ida para África de treinadores e outros
profissionais do desporto favoreceram esse recrutamento que começou, como se
disse, em grande escala na década de cinquenta e que depois se manteve sempre
em crescendo até ao 25 de Abril.
Na década de 50, brancos e pretos oriundos das colónias, que
depois se tornaram famosos no futebol português, chegaram a Lisboa e ao Porto
para representar o Benfica, o Sporting, o Belenenses e o Porto. Dentre os
brancos, José Águas, Juca, Costa Pereira e Acúrsio foram certamente os mais
notáveis. Entre os pretos e mestiços, no Belenenses, o lendário Matateu, mais
tarde o seu irmão Vicente; no Benfica, Santana e Mário Coluna, o grande capitão
da história do Benfica; no Porto, Albasini, Miguel Arcanjo, Carlos Duarte e
Perdigão; no Sporting, Mário Wilson e Hilário, entre outros; na Académica,
Torres. Só mais tarde, em Dezembro de 1960, Eusébio chegou ao Benfica.
Quando Eusébio chegou à “Metrópole” já era um dado adquirido
a presença de grandes jogadores “ultramarinos” nas equipas “metropolitanas”.
Eusébio seria apenas mais um, se as credenciais de que vinha acompanhado se
confirmassem.
Evidentemente, que o Estado Novo não levantava qualquer tipo
de objecção a que os jogadores “ultramarinos” integrassem as equipas
“metropolitanas”, mas daí a dizer-se que o regime desempenhava nesse
recrutamento um grande papel ou que se prevalecia da sua presença no território
de “Portugal continental” para disso tirar dividendos políticos vai uma
distância que a história não confirma. E dizer, como faz, o autor (Nuno Domingos) do primeiro
artigo da série hoje iniciada no Público - Racismo e Colonialismo – que Eusébio
era uma espécie de ícone do regime, não passa de uma mistificação construída a
partir de uma realidade puramente imaginada.
Dá-se até o caso de praticamente todos os que chegaram na
década de 50, com uma pequena nuance para
Matateu, serem pessoas mais evoluídas que os seus colegas metropolitanos, que
falavam mal o português, tinham muita dificuldade em se exprimir, exactamente
por o futebol estar muito ligado ao analfabetismo e às camadas menos instruídas
da população, enquanto os que vinham de Moçambique e de Angola se exprimiam
bem, com alguma fluência, dando a ideia de que provinham de um ambiente bem
mais aberto e esclarecido que o metropolitano donde eram oriundos os seus
colegas de equipa - não todos, obviamente, mas a maior parte deles.
Neste plano, com Eusébio, assistiu-se a uma acentuada
regressão. Aliado à muita timidez de um miúdo nascido e criado na Mafalala, sem
contacto com a “cidade do cimento” e as suas vantagens, constatava-se uma quase
completa ausência de educação “assimiladora” - Eusébio quase não sabia falar
português, exprimia-se muito mal, por monossílabos e embora se depreendesse do
seu olhar e dos gestos uma inteligência viva, específica, faltavam-lhe sempre
as palavras para exprimir as ideias que nunca conseguia verbalizar. Ficaram
famosas as primeiras entrevistas televisionadas conduzidas por Artur Agostinho,
em que o popular locutor perguntava e respondia por Eusébio a partir de uma
prévia conversa à margem das câmaras ou do que dele conhecia pelas muitas
viagens que faziam juntos.
Com Eusébio em Lisboa, sob a permanente luz da ribalta, pelos
extraordinários feitos desportivos de que era o principal intérprete, abriu-se,
para quem desconhecia a realidade colonial, uma frecha que deixava ver com
muita mais clareza o que era em África a vida e a instrução dos africanos.
Obviamente que as vitórias do Benfica e os êxitos da selecção
nacional, nomeadamente a memorável participação no Mundial de 1966, em
Inglaterra, deram a Eusébio e aos demais companheiros uma visibilidade mundial
que antes não tinham. Nessa mesma época, a televisão iniciava os primeiros
passos nas transmissões em directo, propagando os feitos dos que se
notabilizavam pelos cantos do mundo que tinham o privilégio de a eles poder assistir
em directo ou, mais tarde, em resumos. A outra parte do mundo – e era a maior
parte -, ainda sem televisão, continuava a receber essas notícias apenas pela rádio
e pela imprensa.
Também não é minimamente verdade que a idolatria por Eusébio
tivesse sido fomentada pelo Estado Novo. Quem propagava os feitos de Eusébio
era a imprensa independente e em muito menor escala a nascente televisão, mais pela força da imagem do que pela palavra. Era na Bola, jornal formado por oposicionistas ao regime de
Salazar e com uma redacção constituída por democratas (com duas execepções),
alguns até próximos do Partido Comunista, que os feitos de Eusébio eram
propagandeados e assim chegavam (sempre tardiamente) às colónias,
principalmente a Angola e a Moçambique. No estrangeiro, nomeadamente na
Inglaterra, era o único nome do futebol mundial que rivalizava com Pelé.
A imprensa da época, tanto a oficiosa como a que se esforçava
por se manter independente, não dava qualquer relevo ao desporto. Serão muito
poucas as primeiras páginas de jornais generalistas anunciando ou celebrando
feitos desportivos individuais ou colectivos. Na rádio, a mesma parcimónia. O
desporto quando era notícia – e maior parte das vezes não era - era tratado no
fim dos noticiários quase sempre laconicamente. O mesmo se passava na
televisão. Raramente uma notícia desportiva integrava o telejornal e o tempo de
transmissão dos programas desportivos num ano era seguramente inferior ao que hoje
qualquer canal generalista lhe dispensa num mês!
Em Portugal não acontecia, nem de perto nem de longe, no
plano oficial, o que no Brasil se passava com Pelé. O regime brasileiro, tanto
antes como durante a ditadura militar iniciada em 1964, fez de Pelé um símbolo
do Brasil. Pelo contrário, em Portugal,
o futebol e os seus principais intérpretes, apesar das vitórias o Benfica e dos
êxitos da selecção nacional, tiveram sempre para o regime uma importância secundária,
sendo mesmo em alguns casos uma potencial fonte de preocupações.
Pode hoje pensar-se que as duas vitórias sucessivas do
Benfica na Taça dos Campeões Europeus e a participação em mais três finais no
curto espaço de quatro anos representavam para o regime um feito de que este
não poderia deixar de se aproveitar. Mas não foi assim, nem havia motivos para
assim ser. Antes do Benfica, quem tinha ganho as cinco anteriores competições
da Taça dos Campeões Europeus fora o Real Madrid, verdadeiro símbolo do
franquismo e da mais impiedosa ditadura europeia da época. Que é que o regime
português tinha para se prevalecer perante as democracias ocidentais e do leste
que antes já não tivesse sido alcançado pela Espanha? Nada, portanto, que se
compare ao que representou para a Alemanha do pós guerra a vitória no mundial
de 1954 ou o que representaram para o Brasil as vitórias de 1958 e 1962 - a da
Alemanha para “vingar” a humilhação de 1945, as do Brasil para fazer esquecer o
“maracanazo” de 1950!