UMA QUESTÃO COMPLEXA CUJOS
CONTORNOS IMPORTA CONHECER
Antes de mais convêm dizer, a propósito da proibição da
concessão de entrevistas em prisão preventiva, que o que se está a passar com
Sócrates ou o que se passou com Carlos Cruz, poderá passar-se com qualquer
outro preso e o que se decidir relativamente a estes valerá nos mesmos termos
para qualquer outro, embora seja óbvio que a curiosidade dos meios de comunicação
social se não manifesta do mesmo modo relativamente a todos os presos. Somente
aqueles cuja notoriedade seja susceptível de interessar o grande público ou
aqueles crimes que pela sua natureza adquiram uma grande repercussão social suscitam
em regra o interesse da comunicação social. E contra isto nada há a fazer, já
que não são os juristas, nem os directores dos serviços prisionais a traçar a
linha editorial dos jornais e das televisões.
Isto para responder ao argumento muito em voga nas redes
sociais e numa certa “conversa de café” de que com o “Zé Ninguém” ninguém se
interessa.
Sobre a questão em concreto - pode ou não quem se encontre em prisão preventiva conceder entrevistas?
– entendemos que a resposta deve ser encontrada nas leis e regulamentos relevantes,
conformes à Constituição, e deve ser o menos discricionária possível. Ou seja,
deve ser uma resposta a que se chegue, a que qualquer jurista possa chegar, pela
simples aplicação da lei e não tanto uma resposta em última instância fundada
nas valorações pessoais de quem decide. Como se diz em direito, uma resposta
derivada de uma aplicação vinculada da lei e não uma resposta discricionária.
Embora não tenhamos especiais conhecimentos de processo penal
ou de direito penitenciário (se assim se pode chamar), sendo mesmo muito
escassos esses conhecimentos por da matéria estarmos afastados há mais de
quatro décadas, parece-nos que os aspectos relevantes da questão são os seguintes:
Em primeiro lugar, uma pessoa pelo facto de estar presa não
deixa de ser titular dos direitos fundamentais que a Constituição consagra,
embora fique sujeita às restrições impostas pela natureza da pena ou da medida
de coacção ou da segurança e da ordem do respectivo estabelecimento prisional.
Em segundo lugar, as restrições aos direitos fundamentais
(direitos, liberdades e garantias) têm de estar expressamente previstas na
Constituição, devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos
ou interesses constitucionalmente protegidos, devem revestir natureza geral e
abstracta e não podem afectar o conteúdo essencial dos preceitos
constitucionais.
Do exposto decorre, antes de mais, que há um princípio
constitucional norteador, incontornável, da aplicação de qualquer restrição ou
limitação de um direito fundamental – esse princípio é o da proibição do excesso. As restrições ou proibições
não devem ir além do que é estritamente necessário à salvaguarda de outros
direitos ou interesses. Devem ser proporcionais ao fim que legitimamente se
pretende salvaguardar.
No caso da prisão preventiva (a prisão fundada em sentença estará, em parte, sujeita a um regime diferente…), a primeira questão que há
a equacionar é a de saber se a proibição de concessão de entrevistas se
enquadra na medida de coacção decretada e se por ela é exigida. E essa decisão (é de uma decisão que
se trata e não de um parecer, segundo se crê), só pode ser tomada pelo juiz de instrução
criminal que pode (ou deve?) para o efeito ouvir o ministério público.
Supondo existentes os indícios dos tipos de crime que podem
justificar a decretação da prisão preventiva, dos três fundamentos que a legitimam
(fuga ou perigo de fuga; perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da
instrução do processo, nomeadamente aquisição, conservação ou veracidade da
prova; ou perigo de que o arguido continue a actividade criminosa ou perturbe
gravemente a ordem e a tranquilidade públicas) nenhum deles parece, razoavelmente,
poder justificar a proibição. Seria manifestamente excessivo impor uma
restrição ao exercício de um direito fundamental que não é necessária ao fim
visado por qualquer dos fundamentos da prisão preventiva.
Em que medida pode a concessão de uma entrevista facilitar o
perigo de fuga, se o arguido está preso? Ou perturbar a instrução do processo,
nomeadamente a prova, se o arguido não tem qualquer tipo de acesso à dita? Ou
possibilitar a actividade criminosa ou perturbar gravemente a ordem e a
tranquilidade públicas? Não se vê que qualquer destes fins possa ficar
prejudicado por via de uma entrevista.
Claro que a entrevista pode dar da prisão do arguido uma
versão diferente da que foi veiculada pela acusação. E depois? Somente em
ditadura é que a “quebra pública” do consenso (falso) existente pode constituir
um factor de perturbação da ordem pública. Em 1958, a entrevista de Humberto
Delgado ao jornal República constituiu sem dúvida uma grave perturbação da ordem
fascista. Mas em democracia não há lugar a isso. Não pode o poder político
considerar que uma entrevista constitui uma grave perturbação da ordem pública,
como também os magistrados não podem supor que uma simples entrevista perturba o
processo ou põe em causa a ordem e a tranquilidade públicas. A magistratura tem
de se democratizar, de se habituar a conviver com o contraditório imposto pela opinião
pública e pelos próprios visados nos processos por ela julgados. Não há nisso
qualquer mal, desde que respeitadas as regras elementares da convivência
social.
A justiça não pode refugiar-se no seu casulo, como coisa dos
magistrados, de que a sociedade só conhece o resultado. Ela tem de estar preparada
para a crítica e para a fundamentação adequada ( e também convincente) das decisões que toma, tanto
mais que a maior parte delas, digamos mesmo, a esmagadora maioria delas, não
decorre de uma aplicação matemática (puramente lógica) da lei (isso somente acontece em casos
muito contados) mas de uma valoração em que muitas vezes intervêm factores
eminentemente subjectivos.
Se os fundamentos que, do ponto de vista do juiz de instrução
criminal, ditaram a prisão preventiva não são postos em causa pela concessão de
uma entrevista a um jornal, já terá de admitir-se, em tese, que da razão de ser
de outras medidas de coacção, nomeadamente a
imposição ou a proibição de certas condutas, pode resultar a proibição de
conceder entrevistas.
Assim, o juiz pode impor ao arguido (se houver indício de
crime doloso a que corresponda pena de prisão de máximo superior a três anos),
a obrigação, entre outras que para o caso não interessam, de não contactar, por
qualquer meio, com determinadas pessoas.
Só que esta proibição
de contactos – se é que existe no caso concreto – não pode assumir a
natureza de uma proibição genérica. Não se pode configurar a medida de coacção, de
proibição de contactos, de modo a abranger toda uma categoria profissional, como nalguns
casos já vimos decretado: por exemplo, a “proibição
de o arguido contactar magistrados judiciais ou do ministério público” é
manifestamente inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade.
Causas específicas do processo podem determinar que o arguido esteja proibido
de contactar certos magistrados - a, b e c - mas não todos. O mesmo se diga
relativamente à proibição de contactar jornalistas ou de conceder entrevistas.
A proibição de o arguido se explicar perante a opinião pública,
nomeadamente quando existe uma fortíssima campanha de opinião contra a sua
pessoa, com base em indícios postos a circular por quem conhece o processo,
não só deve ser permitida como se justifica plenamente à luz do que vem sendo
tornado público. Além de que nem sequer se poderá dizer que essa entrevista visa por em campo uma campanha contrária à que diariamente tem sido veiculada por meios de comunicação próximos das teses da acusação, tanto mais que o jornal em questão tem dado mais acolhimento a estas teses do que às opostas. Portanto, a proibição não pode verdadeiramente fundar-se no receio oculto, não explicitado, de que
haja uma inversão da opinião pública, susceptível de descredibilizar o processo,
não por via das palavras de quem se defende, mas por o processo não assentar em
factos suficientemente sólidos para se aguentar pelos seus méritos.
A justificação da proibição tem, pela natureza e dimensão desta, de ser compatível com o direito fundamental do arguido (liberdade de expressão) no caso sacrificado para protecção de um interesse constitucionalmente protegido. Se não for esse o caso, se o interesse constitucionalmente protegido, para se manter actuante e eficaz, não exigir o sacrifício do exercício daquele direito, então a proibição não pode ser decretada .
E não havendo, como juridicamente parece não haver, justificação
para a proibição no quadro das medidas de coacção decretadas, caberá ao
director geral dos serviços decidir, em conformidade com as leis e os
regulamentos em vigor, tendo sempre em conta os princípios e normas
constitucionais acima citados.