CRIMES DE
RESPONSABILIDADE DE TITULARES DE CARGOS POLÍTICOS
Está prestes a ser comunicada a decisão do Habeas Corpus apresentado
no Supremo Tribunal de Justiça pelos advogados de José Sócrates com fundamento
em prisão ilegal.
O Habeas Corpus é uma garantia constitucional (art.º 31.º da
Constituição) contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção
ilegal, que pode ser actuada pelo próprio (lesado) ou por qualquer cidadão no
gozo dos seus direitos políticos. O Código de Processo Penal regula os
respectivos procedimentos de detenção e de prisão ilegal e tipifica as situações
que fundamentam esta medida excepcional.
O Habeas Corpus por prisão ilegal, atenta a natureza do bem
que está em jogo – a liberdade –, é apresentado no STJ e dá lugar a um
procedimento de decisão muito rápido, embora com salvaguarda das garantias
processuais indispensáveis, nomeadamente o contraditório, dada a obrigatoriedade
de audição da entidade à ordem da qual se mantém a prisão, do MP e do defensor.
O que está em vias de se decidir no Habeas Corpus apresentado
pelos defensores de José Sócrates é se a prisão preventiva do ex-Primeiro
Ministro por indícios de crimes praticados no exercício de funções é da
competência do juiz de instrução criminal (JIC) e a instrução do processo está
sujeita às regras aplicáveis a qualquer outro cidadão ou se, pelo contrário, os
actos indiciadores daqueles crimes, segundo a avaliação que deles faz o MP,
validada pelo JIC, por terem ocorrido no tempo em que José Sócrates exercia as
funções de Primeiro Ministro estão sujeitos a um regime diferente, quer quanto
à condução do inquérito e instrução do processo, quer quanto à entidade com
competência para ordenar as medidas de coacção propostas.
A lei que regula os crimes de responsabilidade de titulares
de cargos políticos aplica-se – e este é o seu âmbito de aplicação – aos crimes praticados no exercício das suas
funções, estabelecendo as respectivas sanções e os efeitos das penas aplicáveis.
Entre os cargos políticos e altos cargos públicos previstos
na lei está o de membro do governo.
O âmbito de aplicação da lei está inequivocamente
delimitado quer quanto aos seus destinatários, quer quanto aos crimes a que se
aplica quer quanto à ligação, conexão, que tem de existir entre uns e outros.
Os crimes a que a lei se aplica são apenas e só os praticados no exercício das
funções por parte daqueles que a lei taxativamente enumera.
Um crime ou um qualquer outro acto praticado no exercício das
funções não é o mesmo que um acto praticado por ocasião do exercício das
funções. Só estão sujeitos ao regime especial da lei acima citada aqueles
crimes que tenham sido praticados no desempenho das funções, ou seja, quando o
acto tenha sido praticado por aquele que agiu no quadro das funções que
desempenha e não, como acima se disse, por ocasião delas. Se o detentor de alto
cargo político comete um crime de violência doméstica, por exemplo, obviamente
que se não trata de um crime praticado no exercício de funções.
No caso em apreço a distinção é fácil de fazer dada a
natureza dos factos que lhe são imputados, embora nem sempre seja assim tão
simples fazer a distinção entre as duas situações.
A lei que regulamenta os crimes de responsabilidade dos
titulares de cargos políticos, além de estabelecer o seu âmbito de aplicação,
enumera (tipifica) os crimes compreendidos no seu regime (o que desde logo excluiria,
em princípio, os crimes praticados por ocasião desse exercício), as penas
aplicáveis, os efeitos dessas penas, bem como as regras especiais aplicáveis ao
processo e a responsabilidade civil em que incorrem os autores desses crimes.
Dada a natureza da lei, os seus fins, as razões que a
determinam e, em última análise, a sua letra – elemento que jamais pode ser preterido
ou desvalorizado – não parece que levante dúvidas legítimas o seu âmbito da
aplicação.
A lei regula o regime a que ficam sujeitos os crimes de responsáveis
políticos praticados no exercício de funções, quer essas funções se mantenham
aquando da investigação, quer a investigação ocorra depois do exercício dessas
funções.
Este regime especial não visa proteger o presumível infractor
contrariamente ao que alguns parecem supor. Pelo contrário, o regime previsto
na lei leva a consequências mais graves do que levaria naqueles casos em que
esse mesmo acto fosse praticado por qualquer outro cidadão (nos casos em que o
pudesse ser).
Este regime visa antes de mais salvaguardar a dignidade das
instituições e é em última análise imposto pelo respeito e consideração que o
cidadão eleitor merece. O que se pretende é que perante um acto indiciador de um
crime de extrema gravidade a sua investigação se revista da máxima competência e
que as decisões que no decurso delas forem tomadas, nomeadamente as medidas de
coacção privativas de liberdade, sejam aplicadas por alguém que
hierarquicamente se encontre num plano que merece o respeito e a confiança incondicionada
dos cidadãos, tanto pela sua experiência e saber como pelo lugar que ocupa e a
independência que estatutariamente lhe está associada.
Dito de outra amaneira: como em regra estas investigações não
estão isentas de contornos políticos exacerbados tanto pelos apoiantes e como
pelos opositores dos visados, o que a lei pretende é que elas sejam tanto
quanto possível conduzidas num plano que não levante qualquer suspeição,
salvaguarde o prestígio das instituições e garanta o respeito pelo cidadão
eleitor.
O facto de a lei nos efeitos das penas se referir em alguns
casos à perda do mandato daquele que é condenado não limita nem circunscreve o
âmbito de aplicação da lei. Só por estreiteza de vistas se poderia entender
assim. De facto, limitar a aplicação da lei àqueles que ainda estão no
exercício de funções seria restringir drasticamente o seu âmbito de aplicação,
limitando-a a um círculo restrito de responsáveis políticos (principalmente a deputados),
tanto mais que a maior parte dos factos geradores de responsabilidade penal só
acabam por ser conhecidos e estão em condições de ser devidamente investigados
depois de os seus presumíveis autores terem deixado de exercer as funções em
que os praticaram.
Uma coisa é o âmbito de aplicação da lei. E esse é que tem de
ser definido e delimitado com rigor, como faz a lei sem margem para dúvidas.
Outra são os efeitos das penas aplicáveis. São dois planos distintos que não devem nem podem ser confundidos.
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