SOBRE O CONCEITO DE
ESTADO
Vitorino desculpa Rangel – foi um momento de infelicidade – e mostra-se mais compreensivo (conhece-o bem, é o argumento) do que o próprio Santana Lopes que aconselha a coligação a não enveredar pelo caminho de Rangel.
A verdade é que Rangel, ao contrário do que afirmaram estes
dois comentadores, saiu-se bem. Muito bem, até.
O que Rangel quis dizer – e disse-o com a autoridade de quem
já exerceu funções governativas na área da justiça – é que quem governa tem a
possibilidade de influenciar a justiça. Daí que a afirmação de que com o PS no
Governo Sócrates não estaria na cadeia, nem Salgado falido seja compaginável
com a constatação de que com a coligação de direita no governo e Cavaco na
presidência da República ninguém do BPN é verdadeiramente incomodado e muito
menos julgado.
Com estas consequências e não tanto com as palavras de Paulo
Rangel é que a Justiça se deveria preocupar.
A questão que Rangel levantou é muito complexa, apesar da
ligeireza com que ele a tratou. No fundo, no fundo, tem a ver com o conceito de
Estado. Durante décadas o pensamento marxista influenciou, quase diríamos
hegemonicamente, a natureza do conceito de Estado. Todavia, em consequência, por
um lado, do pensamento cristão, da doutrina social da Igreja, e, por outro, da
própria ideologia burguesa do conceito de Estado, uma e outra alicerçadas em
exemplos que não poderiam deixar de ser tidos em conta, nomeadamente nos países
desenvolvidos do mundo ocidental, o próprio pensamento marxista foi obrigado a
reconhecer que o Estado, embora determinado pelas relações sociais de produção dominantes
da sociedade em que estrava inserido, podia actuar com relativa autonomia.
E aceitava então que em alguns Estados capitalistas, em consequência
da própria da correlação de forças existente na sociedade, o Estado pudesse
actuar em determinados domínios com relativa autonomia face às forças sociais
dominantes.
Daí dizer-se que o Estado prossegue o bem comum, é imparcial
nas suas actuações, cria ou esforça-se por criar as condições destinadas a garantir a igualdade de todos os cidadãos perante aa lei, etc, etc. seja tida como uma
verdade apodítica.
E isto, depois de mil vezes repetido e durante décadas
inquestionado, tende a enraizar na consciência das pessoas como verdade indiscutível
a ideia de que o Estado é uma entidade verdadeiramente independente que está
acima e por cima dos interesses sociais em confronto, actuando, em defesa do bem
comum e do interesse público. Apesar de o Estado nunca ter sido aquilo que a
ideologia fazia dele, a verdade é que as pessoas em geral o encaravam nesta perspectiva e aceitavam estas ideias como verdades absolutas. E isto tem
muita força. Isto é o cimento das relações sociais, ou seja, a ideologia.
Pois bem, quem logo que pôde começou questionar este
entendimento das coisas foi o neoliberalismo. Para o neoliberalismo um Estado
com estas características era um Estado que manifestamente não servia os seus
interesses. O neoliberalismo exigia um Estado completamente ao serviço dos seus
interesses.
A primeira grande “machadada” na ideologia tradicional do
conceito de Estado foi retirar-lhe o direito de emitir moeda. Atribuição que
passou a ficar a cargo de uma entidade “independente”, o Banco Central.
Obviamente que esta profundíssima alteração foi antecedida de uma “eficaz
demonstração” nas universidades, nos media,
enfim, em todos os meios de constrangimento e de conformação social, dos malefícios
resultantes de esse poder continuar na titularidade dos representantes
executivos do Estado – o Governo. Depois passou-se para a ideia de que o Estado
deveria intervir nas suas relações com os interesses privados em “pé de
igualdade” com estes, ou seja, o interesse geral, o interesse público que o Estado
era suposto representar e defender deixou de ter primazia sobre o interesse particular,
e então criaram-se os “reguladores”, entidades ditas imparciais encarregadas de
dirimirem os conflitos entre o interesse público e o interesse privado.
O Estado foi sendo assim aparentemente despojado dos seus
principais atributos, cuja “ausência” determinou uma alteração substantiva da
sua natureza. Realmente o Estado não foi despojado dos seus principais
atributos. O que aconteceu foi que esses atributos passaram a ser exercidos por
quem aparentemente não pertence ao Estado para contornar a dificuldade
resultante de, em virtude de uma crença já muito enraizada sobre a sua natureza, se
colocar o Estado a defender abertamente os interesses privados.
Assim, como as coisas são agora apresentadas tudo se torna
mais simples: o Estado, aparentemente despojado de alguns dos seus atributos e realmente
das funções que por meio deles eram exercidas, representa como há muito o
não fazia, ou porventura como nunca o terá feito antes, os grandes interesses
particulares, criando-lhes ideológica, jurídica e socialmente as condições para
eles poderem ser prevalecentes no confronto com o interesse geral.
Há todavia domínios que resistem mais do que outros ainda e
sempre por força do papel desempenhado pela ideologia do conceito de Estado. Um
desses domínios é a Justiça. Está muito enraizada a ideia de que o poder
judicial é independente e que dirime os conflitos com autonomia relativamente às
forças sociais dominantes.
A separação vertical de poderes preconizada ou talvez mais correctamente
descrita por Montesquieu nunca foi garantia de imparcialidade. Ela foi quando
muito, ou para não sermos tão assertivos, prevalecentemente impeditiva do
despotismo, o que sendo importante está muito longe de garantir a
imparcialidade. Muito mais importante teria sido a consagração de uma divisão
horizontal de poderes (e era para esta que Montesquieu francamente se
inclinava, apesar de ser então contrária aos ventos da história) mediante o
reforço do papel desempenhado pelos corpos intermédios. Ideia que encontra
profundo eco no pensamento filosófico clássico do “governo misto” – um governo
representativo das formas de governo então conhecidas e simultaneamente
defensor dos diferentes interesses em presença. De que o exemplo mais
emblemático teria sido a República Romana – na qual o Senado consistiria na
expressão do poder aristocrático; os tribunos da plebe, do poder do povo; e os
cônsules, da ideia da realeza.
Voltando à actualidade: a bravata política em que Rangel se
meteu representa apenas a caricatura no plano partidário desta luta pelo que
resta do anterior conceito de Estado, não havendo porém quaisquer dúvidas de
que o neoliberalismo, se não for parado e derrotado na sua essência, atacará
abertamente o tradicional papel da função judicial para a pôr ao serviço
exclusivo dos grandes interesses privados à semelhança do que já fez com outras
funções do Estado.
2 comentários:
Excelente! cumprimentos.
Na minha opinião o Rangel quis dizer exactamente o que disse mas nunca me fiei nele para nada a par do Melo do CDS acho que dizem coisas de pouca valia e nem sei como se guindam a posições que lhes são impróprias.
JM
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