sábado, 1 de outubro de 2016

A SITUAÇÃO DO PSOE NO XADREZ POLÍTICO ESPANHOL




 A CRISE POLÍTICA EM ESPANHA E SEUS REFLEXOS NO PSOE


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A Espanha vive uma crise profunda: uma crise política, uma crise territorial e uma crise moral. Apenas a economia cresce, mais do que em qualquer outro país da Europa, apesar de o desemprego continuar a registar níveis elevadíssimos. Todavia, não é a crise económica que mais tem preocupado os espanhóis nestes últimos dois anos. Depois de anos muito duros com reflexos directos numa elevadíssima percentagem da população, como o desemprego e a perda de habitação própria, os últimos dois anos têm registado níveis de crescimento invejáveis, daí resultando expectativas favoráveis mesmo para a população que continua a sofrer os efeitos da crise. Este crescimento, o funcionamento regular do sistema financeiro e a emigração em massa de centenas de milhares de jovens quadros têm contribuído para que a crise económica não tenha em Espanha o mesmo peso que continua a ter nos demais países da Europa do sul.

A crise política que actualmente se vive em Espanha, embora não deixe de reflectir as profundas divergência existentes entre os espanhóis sobre a condução da economia, tem as suas raízes mais profundas na grave crise moral em que a classe política espanhola mergulhou o país. A corrupção reina em Espanha. Reina com Rajoy como reinou com Gonzalez e continua a reinar na maior parte das autonomias onde governa o PP e o PSOE. Face a esta degradação da classe política e dos seus corruptores, a Espanha fragilizou-se internamente e deixou de ter condições para lutar politicamente contra as forças centrífugas que ameaçam a sua integridade territorial consolidada a duras penas há cerca de quatrocentos anos.  

Curiosamente, a questão europeia tão presente nos países do sul da Europa e mesmo em largas camadas da população de outras regiões da Europa não tem em Espanha a mesma importância que tem nestes países, apesar de ela também condicionar fortemente o seu desenvolvimento económico. Creio que não tem, porque a Espanha e os espanhóis continuam a viver com o Carlos V dentro da cabeça. A Espanha nunca perdeu o seu espírito imperial, e mesmo quando está reduzida ao que hoje é continua a supor que é muito mais importante do que aquilo que realmente é. Daí que os constrangimentos impostos por Bruxelas não sejam como tal interiorizados, mas antes como ordens que eles próprios dão aos demais. Ou seja, a Espanha sempre se vê como um par, nunca como um subalterno. Até com Hitler foi assim…

Voltando à crise espanhola. Essa profunda crise moral que acima referimos, as profundas divergências sobre a condução da economia e também a crise territorial, entretanto agravada, deram lugar num contexto de crise económico-financeira generalizado ao aparecimento de dois novos partidos nacionais que vieram “destabilizar o centrão” saído da transição. É certo que o PP, por razões estratégicas bem compreendidas pelo eleitorado de direita, não surgiu imediatamente após a transição como partido de governo, mas com a rápida desagregação da UCD, acabou por se fixar como partido de poder juntamente com o PSOE. Acontece que esses dois partidos emergentes saídos da crise, um à direita (para regenerar o PP) e outro à esquerda (para fazer o que o PSOE há muito deixou de fazer), rapidamente mobilizaram cerca de 10 milhões de eleitores, um pouco menos que metade dos eleitores votantes, e, apesar das fortes distorções do sistema eleitoral espanhol, elegeram um número de deputados suficiente para inviabilizar  a formação de qualquer governo que não passasse por eles, a menos que os dois partidos mais votados, PP e PSOE, se coligassem ostensiva ou tacitamente.

E é aqui que começam as grandes dificuldades do PSOE. Vivendo na ressaca da profunda crise da social-democracia europeia, pela sua entusiástica colaboração nas políticas de direita, de cariz neoliberal, o PSOE teve nas eleições de Dezembro do ano passado de lutar para que o partido de esquerda emergente – PODEMOS -  o não relegasse para um desonroso terceiro lugar. Embora pela margem mínima, alcançou esse objectivo , que lhe permitia colocar-se em posição de se poder apresentar como alternativa a Rajoy caso o PP não conseguisse reunir nas Cortes os votos suficientes para viabilizar a investidura.

O Secretário-Geral do PSOE, Pedro Sánchez, deu indicações suficientes de que estaria disposto a formar um governo com base numa ampla coligação que integrasse as forças de “cambio”. Acontece que, mesmo antes de iniciar diligências necessárias a esse fim, os “barões do PSOE” conseguiram impor-lhe nos órgãos do partido limitações que na prática inviabilizavam a formação de um governo alternativo, todas elas relacionadas com o problema territorial que serviu como excelente pretexto para impedir que fosse posta em prática uma política de esquerda.

Limitado às alianças à direita (Ciudadanos), Sánchez não pôde contar, como seria de esperar, com a concordância de PODEMOS, nem sequer com a sua abstenção. Se é certo que o PSOE não poderia contar com a colaboração de Iglesias, que como terceiro mais votado e com quase tantos deputados como o PSOE esperava muito mais do que uma simples abstenção, também é verdade que a imaturidade política deste novo partido de esquerda e algumas incertezas programáticas não ajudaram à criação de um clima de confiança que desse força a Sanchez para lutar convictamente dentro do seu partido por soluções mais ousadas. 

O acordo que Sánchez fez com Ciudadanos era muito semelhante, na concepção, ao que permitiu a investidura do actual Governo português. Sánchez governaria, comprometendo-se a pôr em prática as medidas acordadas, e Ciudadanos apoiá-lo-ia no Parlamento. Mas a ideia não tinha condições para vingar se não contasse, no mínimo, com a abstenção de Podemos. E não contou, como, de resto, seria previsível.

A inviabilizada a investidura do Sánchez, e consequentemente do Governo PSOE, foram convocadas novas eleições. Nestas eleições, de Junho passado, o PP continuou a ser o partido mais votado, tendo inclusive aumentado o número de deputados, o PSOE conseguiu aguentar-se como segundo partido, à frente de Podemos, mas voltou a perder votos e deputados, ganhos pelo Podemos, que, apesar desta pequena vantagem relativamente às eleições de Dezembro/2015, não pôde deixar de interpretar os resultados eleitorais como decepcionantes já que todas as sondagens lhe asseguravam o segundo lugar com um considerável acréscimo de votos e de deputados, entre outras razões porque a aliança entretanto alcançada com a Izquierda Unida lhe garantia à partida, ou parecia garantir, mais de um milhão de novos votos, o que na realidade não aconteceu . Ciudadanos manteve o quarto lugar, perdeu alguns, poucos, deputados, todavia os suficientes para que os seus votos unidos ao do PP não garantissem a maioria absoluta.

Perante este quadro, Ciudadanos fez várias exigências a Rajoy para entrar num acordo, todas elas, ou a maior parte delas, relacionadas com a corrupção. Um acordo que não garantia a investidura de Rajoy mas que lhe permitia pressionar, no mínimo, a abstenção do PSOE. Só que as pressões não surtiram o efeito esperado. Obtido o acordo com Ciudadanos, Rajoy procurou chegar a acordo com Sánchez, quer mediante a negociação de uma grande coligação, quer, mais modestamente, tentando assegurar a sua abstenção.   

Tal como no “sermão da montanha”, Sánchez, apesar das múltiplas promessas que lhe eram feitas e dos lugares que lhe ofereciam, apesar também da enormíssima pressão mediática para que fizesse uma coligação ou se abstivesse para permitir a entrada em funções do “ governo de Espanha”, Sánchez não cedeu. Alinhando ao lado da restante oposição(nacionalistas de direita e de esquerda, independentistas e restante esquerda), votou contra e Rajoy não passou. Rajoy não foi capaz de juntar aos seus votos e aos dos Ciudadanos os poucos que lhe faltavam para formar governo.

Enquanto decorreram as negociações e as conversas com vista à formação do novo governo ninguém nos órgãos directivos do PSOE advogou o voto a favor de Rajoy, nem mesmo a abstenção. Fora dos órgãos do partido já o mesmo se não passou. Em artigos de opinião, em declarações em off multiplicavam-se as vozes, todas elas oriundas do mesmo sector, para que Sánchez se abstivesse. Sánchez, sempre muito próximo do que entende ser a vontade dos militantes, invocava a posição do partido para sacudir a pressão e deixar os seus opositores internos em consonância com as vozes da direita. Até que Felipe Gonzalez que, apesar dos negócios a que agora se dedica e da traficância de influências que ostensivamente pratica, parece ainda ter tempo para continuar a dirigir na sombra a direita do PSOE, saltou a terreiro e com a brutalidade de linguagem que se lhe reconhece “exigiu” que o PSOE se abstivesse em nova tentativa de investidura de Rajoy. No que logo foi seguido pela “seita de Andaluzia” e pelos “barões” de Castilla-La-Mancha, da Extremadura e de Aragão.

A partir desse momento, que aliás coincidiu com a declaração de Sánchez de que era preciso dotar a Espanha com um Governo composto pelas forças “del cambio”, a guerra surda que a direita do PSOE, aparentemente comandada por Suzana Diaz (Andaluzia), mas na realidade telecomandada por Felipe Gonzalez, já vinha fazendo a Sánchez subiu de tom e o secretário geral do PSOE passou a ser um alvo a abater.

Só que as coisas não lhes correram bem. Sánchez anunciou a convocação do Comité Federal para o próximo este sábado com vista à marcação das directas para a eleição do secretário geral e do subsequente Congresso para que o partido passasse doravante, em matéria de formação de governo, a falar a uma só voz.

Postos perante esta situação, os “barões” do PSOE jogaram abertamente no “golpe” para afastar Sánchez. Demitiram-se em bloco da “Ejecutiva” do partido, na qual contavam com 17 lugares, composta estatutariamente por 38 membros, embora actualmente apenas com 35, de modo a deixá-la sem quórum, ou seja, apenas com os 18 membros que apoiam Sánchez, para com base nesse expediente defenderem a tese de que o SG tem obrigatoriamente que se demitir, sendo a direcção do partido entregue a uma “gestora”, uma espécie de comissão administrativa, encarregada de dirigir o partido até a realização de novo congresso e a consequente escolha do Secretário geral. O objectivo era permitirem, nesse entretanto, a formação do governo de Rajoy e a realização do Congresso num tempo em que já houvesse um governo em funções, dificultando assim a reeleição de Sánchez que apareceria perante o Congresso como grande derrotado, quer internamente quer no confronto com as demais forças políticas.

Acontece que os estatutos do PSOE não autorizam a interpretação dos perpetradores do “golpe”. A “Ejecutiva” manter-se-á em funções, Sánchez também, o Comité Federal reunir-se-á hoje e logo se verá em que sentido os seus membros vão decidir.

Uma coisa, porém, é certa: se o Comité Federal decidir pela abstenção, Sánchez demitir-se-á. Mas ainda e cedo para fazer prognósticos….




1 comentário:

Anónimo disse...

Este artigo ganhava em ter sido adiado 24 horas. Esperemos que o autor lhe dê em breve continuação.

Pessoalmente, tenho cada vez mais a impressão de que, se não fosse a intervenção decisiva do PCP de incentivar e viabilizar a nova solução governativa, o PS português estaria agora com uma crise semelhante à do PSOE.