quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O PRÍNCIPE E O POVO

OU O DILEMA QUE MÁRIO SOARES NUNCA SUPEROU

Durante séculos, salvo talvez os sofistas, no específico contexto da democracia ateniense, o poder sempre foi visto, estudado e analisado pelo lado do príncipe. O que era um bom governo? Um bom governo era o que sabia conservar o poder por muito tempo sem convulsões sociais nem revoltas. E mesmo os que execravam a tirania, no sentido clássico do termo – poder sem título ou sem respeito pelas leis –, como certos pensadores católicos medievais, mais do que defender o povo da usurpação ou das arbitrariedades do soberano, o que eles verdadeiramente pretendiam era a estabilidade do poder e a sua aceitação pelos súbditos.
Foi preciso percorrer um longo, muito longo, caminho, para que os pensadores políticos passassem a pôr no primeiro plano das suas preocupações os direitos do povo. Isto aconteceu na Europa em épocas diferentes, aliás consequência das diferentes fases das lutas populares. Na Europa continental ocidental, esta forma de encarar o poder pelo lado do povo começa com o Iluminismo, mas somente ganha corpo e se impõe com a Revolução Francesa.
De então para cá, está adquirido, no plano teórico, que o poder reside no povo, mas no plano prático ele continua a ser frequentemente pensado a partir do ponto de vista de quem o exerce.
Mário Soares muitas vezes se defronta com este dilema sem sequer se dar conta de que ele existe. Aceitando sem discutir que Mário Soares se preocupa com o povo, ele sempre entende que são os grandes líderes políticos – o vanguardismo dele fica-se, todavia, pelos clássicos da social-democracia – que asseguram ao povo os direitos que ele merece. Ou é a crise financeira que ocorre, porque não houve grandes políticos que a tivessem sabido evitar; ou é que da crise financeira se não parte para a construção de um novo paradigma económico, porque não há lideranças fortes que o imponham; ou é a revolta dos jovens gregos que exprime o desencanto de uma sociedade que não pára de precarizar-se e de marginalizar-se porque não há governantes na Europa capazes de abrir novos rumos e perspectivas mobilizadoras …e por aí adiante.
O problema é que as lideranças exprimem os diferentes níveis de conflito e de poder que uma sociedade encerra. E se, pelo lado do povo, se vive um período de grande fragilidade ideológica, incapaz de superar a reacção primária do “quero viver melhor”, e uma profunda incapacidade de acreditar e lutar por um projecto alternativo de poder, tal a força do poder ideológico dominante, não há liderança que lhe valha. Por isso, acho que o Dr. Mário Soares faria melhor se começasse a ver o problema por baixo e a travar os seus combates ou estimulá-los a partir de baixo, aceitando sem reservas as consequências dessa atitude.

1 comentário:

FJCoutinhoAlmeida disse...

MÁRIO SOARES vive um drama. É mesmo o grande dramaturgo do PS, na linha, aliás, do seu antecessor no PSP da 1ª República, Ramada Curto, autor de "A Severa".
Não se deve ter memória curta...
'Socialismo na gaveta', coligação com o CDS, coligação com o PPD, crítico da maioria absoluta, adepto da maioria absoluta, aproveitando-se do MFA, marginalizando os Homens do MFA, quebra amizade com Salgado Zenha e concorre contra ele às presidenciais, não hostiliza o PPD/PSD no 1º mandato presidencial para conquistar o 2º, diz-se reformado da política, cede à vaidade e concorre pela 3ª vez às presidenciais contra o seu 'compagnon de route' Manuel Alegre.
É tido como único pai da democracia portuguesa.
Agora, no âmbito da Fundação com o seu nome, 'enche a boca' com o socialismo, coisa que teve nas mãos e 'engavetou'.
A coerência é, em si, um valor ...
É tempo de reler Rui Mateus ...