O QUE NÃO PODE SER ESQUECIDO
Cristina Ferreira, à semelhança do que havia feito há cerca de mês, quando traçou o retrato jornalístico da Ongoing, relata no Público de ontem a cronologia dos acontecimentos relevantes ocorridos nos cinco ou seis meses anteriores ao “pedido de resgate” à Troika bem como, de modo mais detalhado, dos três dias que o antecederam.
Uma cronologia, apesar ser uma simples sucessão de factos acontecida num determinado espaço temporal e narrados, em regra, dos mais antigos para os mais recentes, tem a vantagem de avivar a memória dos que neles intervieram ou de os relembrar àqueles que já os esqueceram ou de pura e simplesmente os dar a conhecer a quem deles nunca tinha ouvido falar. O quer não deixa de ser extremamente importante, porque na acção política os factos passados são facilmente esquecidos ou deturpados. Mas, atenção, uma cronologia não é uma interpretação: a narração sucessiva dos factos diz-nos o que aconteceu, mas nos faz por si só compreender o que aconteceu nem porque aconteceu.
Da cronologia apresentada resulta com meridiana clareza que o anterior primeiro-ministro era contra um pedido formal de resgate, preferindo, atentas as condições financeiras do país, um plano acordado com as autoridades de Bruxelas que lhe deixasse relativa autonomia de execução e de proposta, sem prejuízo de aceitar o acompanhamento ou até a vigilância das autoridades monetárias da União Europeia e da própria Comissão.
Este plano que acabou por ser acordado ao mais alto nível – estamos obviamente a falar daquilo que teria sido o PEC IV – não gozaria da aceitação convicta das autoridades financeiras europeias, apesar de ter o apoio inequívoco da Alemanha.
Todavia, a degradação da situação política interna, quer entre o Presidente e o Primeiro Ministro, quer entre o PSD e o Governo, além evidentemente da oposição que a esquerda sempre fez às políticas de combate à crise, bem como – é bom não esquecê-lo – a situação interna do PSD, que já tinha imposto um ponto final à colaboração de Passos Coelho com o Governo, sob pena de a sua continuação gerar uma nova crise partidária, tornou inviável o apoio necessário à aprovação daquele plano.
Do lado da direita, os factos conhecidos apontam para uma indisponibilidade para apoiar mais medidas de austeridade propostas pelo Governo, fundando-se tal recusa, ao que parece, mais na personalidade do proponente do que na natureza das medidas propostas, pois, como se viu logo a seguir, foi com indisfarçável entusiasmo que os representantes do PSD participaram na negociação do Memorandum a ponto de sobre várias matérias terem publicamente declarado que queriam ir além do proposto pela Troika.
Os factos apresentados na dita cronologia fazem crer que Sócrates não acreditava nas políticas de austeridade, estava bem ciente dos seus efeitos recessivos e tinha consciência de que a intervenção do FMI iria colocar Portugal por muitos anos numa situação de dependência; pelo contrário, continuava muito ligado à crença nas políticas desenvolvimentistas impulsionadas pelo Estado em áreas de fácil atracção do capital privado, mesmo depois de os efeitos da crise financeira terem começado a encarecer drasticamente os juros da dívida pública.
Enfim, não pondo em causa as intenções de Sócrates, não se pode escamotear a existência de uma incontornável situação económico-financeira que adesão ao euro, a crise financeira internacional, a posterior crise da dívida soberana dos países periféricos da União Europeia e as políticas postas em prática pelo PS durante os anos da sua governação ajudaram a criar a ponto de, todos estes factores, na sua sinérgica convergência, tornarem praticamente irrelevantes as vontades individuais.
Daí que Sócrates, apesar de contrário à intervenção, tenha ficado num beco sem saída, acabando por ser Teixeira dos Santos a pedir a intervenção…
O PS está hoje prisioneiro de tudo isto. Não pode afastar-se das consequências da intervenção, porque foi ele que formalmente a pediu, apesar de não a querer, e não têm coragem para a rejeitar por temer as consequências políticas dessa rejeição, apesar de saber que a direita estava ansiosa que a intervenção ocorresse por ela constituir o veículo mais simples para de uma modo descupablizante poder pôr em prática as políticas por que há muito ansiava. E que só não são de imediato mais aprofundadas, porque a recessão não deixa. Se a situação se invertesse, ainda que timidamente, logo surgiriam certamente políticas mais duras no domínio da educação e da saúde, sempre apoiadas no argumento de que são as “exorbitantes despesas públicas” que travam o crescimento.
Esta a “herança” do PS no que respeita às políticas em curso. Herança que Seguro e a sua equipa, como se tem visto, não têm tido coragem de repudiar limitando-se antes aqui ou ali a acrescentar umas “pequenas notas de rodapé” ao que vem sendo feito pelo Governo ou a discordar incidentalmente desta ou daquela medida.
Mas o PS tem outra herança que finge não existir muito mais difícil de rejeitar apesar de sobre ela não ter havido qualquer tipo de discussão interna. É a que respeita às políticas desenvolvimentistas impulsionadas pelo Estado, bem como ao modo como foram postas em prática.
Começando por estas. As parcerias público-privadas; as “rendas” pagas às empresas energéticas, nomeadamente à EDP; as consequências da nacionalização do BPN; bem como as “derrapagens” em muitas obras públicas são factos que não podem ser esquecidos, nem disfarçados no debate político como assuntos menores. São assuntos da maior importância tanto mais que na generalidade das pessoas há a profunda convicção de que em alguns casos, porventura até em muitos, houve bastante mais do que simples incompetência.
Como explicar o desequilíbrio contratual que subjaz a todas, ou a quase todas, as PPP? Como explicar os subsídios às empresas energéticas, mesmo tendo em conta que se tratava de apoiar energias alternativas, com tecnologias inovadoras, sabendo-se que eles vão para além do que seria economicamente sustentável, escapando a toda e qualquer racionalidade económica?
O PS se quer intervir na vida política com credibilidade tem de enfrentar estas questões quaisquer que sejam as consequências. Não o tem feito, nem tem dado indicações de o poder vir a fazer. O PS prefere responder a cada acusação do Governo com uma acusação da mesma natureza da responsabilidade do PSD.
Aliás, se o PS estivesse realmente interessado em restituir a esses contratos a justiça exigida pela correspectividade das prestações deveria, além de repudiar a sua prática e até mesmo o modelo em que se filiam, passar a combatê-los abertamente, deixando ao PSD a integral responsabilidade pela sua inalterabilidade.
Mas não haja ilusões: ninguém no PS tem hoje força suficiente para pôr em prática tal política sem que dela decorressem fracturas dramáticas no plano partidário. Portanto, o mais prudente é deixar andar…
Uma outra questão, de natureza diferente desta, é a da eficácia dos grandes estímulos à economia, em pequenos espaços geográficos, abertos ao comércio internacional. Ou seja, o PS não pode deixar de debater politicamente a eficácia das doutrinas neokeynesianas tal como foram aplicadas em Portugal.
Conhece-se a “matriz” desta política, embora haja algumas dúvidas quanto aos seus reais efeitos. Para salvar o capitalismo, Keynes, aquando da Primeira Grande Depressão, propôs uma política de relançamento da procura por via de um aumento considerável do investimento público.
Esta política foi nos Estados Unidos posta em prática por Roosevelt nos três primeiros anos (1933-35) do seu primeiro mandato com relativo êxito. Todavia, em 1936 a economia regrediu, sendo esta quebra imputada, por vários especialistas, à diminuição dos estímulos à economia ditada por preocupações de redução do défice orçamental.
A verdade é que, apesar de as medidas terem sido retomadas no segundo mandato, não houve até fins de 1939 resultados muito significativos. A situação só verdadeiramente se inverteu quando rebentou a guerra. Daí que no espírito de muitos subsista a dúvida sobre qual a verdadeira causa do relançamento económico.
Uma coisa é certa: em Portugal, a política de grandes investimentos públicos em infra-estruturas e outras áreas afins ao longo dos dez primeiros anos deste século não trouxe um crescimento económico proporcional ao esforço financeiro realizado – basta consultar a curva do crescimento económico (baixíssima) - independentemente da questão da sua sustentabilidade. Enquanto, por exemplo, na Espanha, um vigoroso investimento público em áreas semelhantes, acompanhado de um “bolha imobiliária” de grande dimensão, trouxe crescimento indiscutível, posto que não sustentável como se está a ver.
À primeira vista a razão parece estar no facto de Portugal ser um pequeno mercado, aberto, altamente dependente do estrangeiro em muitos produtos, escoando-se para países terceiros a maior parte das vantagens daqueles investimentos. Mas se for assim, então, a política dos estímulos, continuando a ser defendida, tem de ser revista de alto a baixo nos pressupostos da sua aplicação.
Além de que há um outro aspecto frequentemente escamoteado nos dias de hoje que tem igualmente de ser trazido à discussão. Tem ele a ver com o facto de as políticas neokeynesianas tal como foram postas em prática por Roosevelt para serem eficazes pressuporem uma redistribuição de rendimentos muito diferente da que hoje existe. O New Deal é exactamente isso. Ora, uma política de aparência neokeynesiana aplicada num contexto de forte desigualdade distributiva e de limitação ou mesmo de eliminação de direitos laborais tende a não produzir os efeitos esperados, além de não ser sustentável, já que o relançamento da procura acaba por ser feito pela via de um excessivo endividamento das famílias, que foi o que aconteceu cá, na Espanha, na Irlanda, etc.
E quando se fala em redistribuição de rendimentos não se tem somente em vista os salários e o capital, mas também a redistribuição entre o próprio capital - o grande, o pequeno e o médio – ou seja, exactamente o contrário do que cá se passa.
Concluindo: o PS para fugir às suas angústias, mesmo mantendo-se integralmente dentro do sistema, vai ter muito que dar ao pedal…
2 comentários:
Excelente, como sempre. Contudo, gostaria que desenvolvesse, caso possível, um ponto. Escreve, e eu estou de acordo, que: Tendo em conta o anunciado voto contra da oposição de direita, a aprovação do PEC IV só seria possível com o apoio de seis deputados do PCP ou do BE ou de ambos, o que nas condições da época estava obviamente fora de questão para qualquer destas duas forças parlamentares." gostaria que desenvolvesse as razões porque afirma estar fora de questão tal apoio... É que, em importantes (não sei se numerosos) sectores da esquerda, se diz que foi a falta desse apoio que levou a que a direita chegasse ao poder...
Rogério
Obrigado pelo seu comentário.
Tanto o PCP como o BE vinham fazendo oposição a Sócrates desde a legislatura anterior com base na acusação de estar a levar a cabo uma política neoliberal. Não mudaram de opinião na segunda legislatura. Pelo contrário, reforçaram as críticas.
O PSD, embora tenha feito oposição ao PS, actuou sempre com base em pressupostos completamente diferentes, como todos sabemos. Tanto assim que na segunda legislatura votou ou deixou passar o orçamento depois de o negociar e também não se opôs aos dois primeiros PEC que aliás foram negociados com Passos Coelho.
Depois de tudo isto não se poderia exigir aos partidos de esquerda que apoiassem o PEC IV só porque o PSD por mero oportunismo político tinha mudado de opinião.
É claro que não é a mesma coisa ter o PS no Governo ou ter a direita. Mas como bem se sabe os socialistas europeus é que abriram as portas a estas políticas, de cedência em cedência, embora quando são feitas por eles elas sejam diferentes das que a direita põe em prática quando está no poder.
Acho, porém, que tanto o BE como o PCP deveriam ter recusado votar as moções contra o PEC IV “despidas” dos respectivos considerandos. Não sei se do ponto de vista processual (regimental) isso era possível. Se era e não foi feito é muito criticável. A esquerda não deve juntar o seu voto ao voto da direita. Se se passar o contrário é que já não haverá nada a fazer. Creio contudo que isso não se passaria se as moções tivessem sido votadas com os considerandos.
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