O PS COMO PROBLEMA
Entre o PS e o PCP há obviamente o Bloco de Esquerda e uma enorme massa de
eleitores sem partido que vai repartindo o seu peso eleitoral pelo PS, pelo PCP
e pelo Bloco de Esquerda.
O Bloco, nascido de uma estranha simbiose – trotskistas, UDP e ex-PCP que
recusaram aderir ao PS, além de alguns independentes de esquerda –,começou por
fazer prova de vida nas legislativas de 2000 afirmando eleitoralmente a sua
existência, posto que pela margem mínima; depois, prestigiou-se no Parlamento e
cresceu principalmente na legislatura em que o PS governou com maioria
absoluta, tendo atingido o máximo do seu peso eleitoral simultaneamente com a
perda dessa maioria pelo PS; quando tratou de se consolidar, no período de
maior fragilidade política de Sócrates e de crescimento da direita, caiu e
agora ameaça baixar para níveis muito próximos do seu começo como partido
político.
As explicações para esta trajectória podem ser variadas, consoante o ponto
de vista do observador, mas a verdade é que a diminuição do peso eleitoral do
Bloco coincidiu, primeiro, com a perda da maioria relativa do PS e agora, a
confirmarem-se os presságios, com o posicionamento mais centrista de sempre do
Partido Socialista.
É perante este quadro do qual faz parte ainda como elemento relevante
incontornável o crescimento e a consolidação do peso eleitoral do PCP, depois
das muitas dificuldades por que passou posteriormente a 1989, que surgem quase
simultaneamente duas iniciativas, aparentemente posicionadas no espaço
compreendido entre o PS e o PCP, cujos objectivos, apesar de tentativamente
explicitados, não são muito fáceis de compreender. Referimo-nos, como é óbvio,
à iniciativa de Rui Tavares (Livre) e à de um grupo de cidadãos, entre os quais
emergem os nomes da Carvalho da Silva, Daniel Oliveira e José Reis, a que deram
o nome de “Convergência de Esquerda”, também conhecida por 3D.
Embora a maior parte das pessoas interessadas na interpretação da coisa
política, porventura talvez um pouco mais as de esquerda, ache que Rui Tavares
tenta desesperadamente manter o lugar de deputado ao Parlamento Europeu num
gesto e numa ansiedade muito próprios de quem já sente a nostalgia da perda do
poder, além do mais de um poder que se trata a si próprio muito bem, a verdade
é que nestas coisas da política nem tudo pode ser assim apresentado cruamente
sendo necessário, para lhes dar credibilidade, enroupá-las com aquele mínimo de
aparato que as torne credíveis.
É isso que Rui Tavares tem tentado fazer em vários meios de comunicação
social, com especial destaque no Público, no i e numa ou outra estação de
televisão. Diz, em síntese, o ainda deputado ao Parlamento Europeu, que é
necessário constituir em Portugal um novo partido que garanta, viabilize ou
facilite a aliança do PS à esquerda. Um partido ideologicamente situado no
espaço que vai da esquerda do PS à direita do Bloco, ou, como ele próprio
diz, aos moderados do Bloco. Um partido que nessa área seja capaz ainda de
congregar todos aqueles que à esquerda se não revêem na política de permanente
compromisso do PS com a direita, nem nos radicalismos irrealistas do Bloco e
muito menos nos dogmatismos arcaicos do PCP.
Este discurso, que de original nada tem, é, analisado com frieza, pouco
consistente.
Se o Partido Socialista perdesse a chamada ala esquerda e se dele se
afastassem aqueles eleitores que à esquerda, às vezes contrariados e quase
nunca convencidos, votam nele por não se reconhecerem ou não confiarem nas
demais alternativas existentes, ele deixaria de ser o que é e passaria a ser um
partido de centro direita sem outras preocupações que não fossem as de garantir
a alternância relativamente ao partido imediatamente à sua direita. Ou seja, se
agora com a ala esquerda e com um núcleo relativamente importante de votos da
esquerda, o PS é como é – não faz alianças à esquerda, nem conduz uma política
em que a esquerda se reveja – imagine-se o que seria o PS sem aquele eleitorado
e sem a militância, pelo menos retórica, dos “maus socialistas”. Querer fazer
alianças sob a égide do PS e simultaneamente pretender despojá-lo do que nele
há de genuinamente esquerda poderá ser muita coisa, mas o que certamente
não será é via mais segura para constituir um governo de esquerda. Mas
continuemos…
Rui Tavares parece desconhecer a história do Partido Socialista e a sua
verdadeira natureza. É certo que o Partido Socialista está hoje bastante
descaracterizado, à semelhança do que se passa com os demais “partidos irmãos”
europeus, sejam eles socialistas, social-democratas ou trabalhistas, muito por
força do que se passou na Europa (e no mundo) depois da Queda do Muro e da
implosão da URSS. Essa descaracterização foi em grande medida obra dos
socialistas europeus que levados pela vertigem da História não souberam ou não
quiseram compreender o que realmente se estava a passar, tendo sido inclusive
por obra sua que todas as portas foram abertas para o relançamento de um
capitalismo sem freios com as consequências que agora estão à vista e contra as
quais esses mesmos partidos socialistas se consideram impotentes para as
contrariar ou inverter.
Rui Tavares, como historiador, não deve desconhecer que nunca na
sua história o PS teve uma composição tão à esquerda como a que existia por
ocasião do 25 de Abril. Para além do núcleo duro, oriundo da ASP e de outras
organizações políticas que a antecederam, caldeado na luta anti-fascista, havia
trotskistas, obreiristas, católicos progressistas, ex-comunistas de esquerda,
enfim, um sem número de pessoas que aderiu ao Partido vindas da esquerda que se
opunham ao que entendiam ser a estratégia política do PCP e, obviamente, dos
grupúsculos “m-l”, muito activos e
com os quais o PS praticamente não mantinha relações; havia tudo isto e, não
obstante, nunca houve politicamente uma “maioria de esquerda”, apesar de ela
existir aritmeticamente, nem houve qualquer tipo de entendimento à esquerda
minimamente durável.
Porquê? Porque o PS de Mário Soares tinha uma estratégia muito clara da
qual não se afastava um milímetro: institucionalizar em Portugal uma democracia
representativa, se possível de base exclusivamente parlamentar, sem qualquer
tipo de cedências a qualquer outra forma de poder que não a resultante do voto
popular.
Mário Soares seguiu à risca esta estratégia, fazendo as alianças de ocasião
que lhe pareceram necessárias para a consolidar e recusando, sem hesitações,
qualquer tipo de entendimento à esquerda que, de perto ou de longe, pudesse
fazer crer num relançamento do PREC.
Mário Soares acreditava na solidariedade dos partidos socialistas e
social-democratas europeus, acreditava no “socialismo em liberdade” e
acreditava acima de tudo na Europa como palco ideal de concretização das suas
ideias políticas. E continuou a acreditar, nos anos imediatamente subsequentes
à Queda do Muro e à desagregação da URSS, que estavam, finalmente, reunidas as
condições ideais para pôr em prática aquele ambicioso projecto político.
Aliás, é bom que se recorde que não foi sob o comando executivo de Soares à
frente do PS que a organização económica consagrada na Constituição Portuguesa
foi revista e completamente descaracterizada, mesmo tendo em conta a Lei n.º 77/77.
Soares patrocinou e promoveu, juntamente com o PSD, a revisão de 1982, que no
essencial consagrou aquilo que fora a sua estratégia politica depois do 25 de
Abril. Mas foi com a revisão de 1989, promovida pelo cavaquismo com o apoio do
PS de Constâncio que se abriu à porta às privatizações e tudo o mais que elas
trouxeram. Cumprida a tarefa, Constâncio demitiu-se de secretário-geral do PS
por divergências insanáveis com a família Soares, na altura centradas em João
Soares.
Tudo isto para dizer que mesmo quando o PS esteve politicamente mais à
esquerda nunca a sua política favoreceu qualquer entendimento à sua esquerda. Meia
dúzia de anos depois da revisão constitucional de 89, veio o “guterrismo” que
escancarou as portas da economia à Europa, o novo Deus ex machina dos
socialistas, promoveu aqui e na Europa, com os muitos socialistas que então a
governavam, o neoliberalismo, internamente atenuado pela promoção de um certo
assistencialismo que a existência de dinheiro com fartura possibilitava.
Deixados guiar pela “conversa” da Terceira Via, a nova geração de socialistas
estava a preparar a cama para o tal capitalismo sem freios, voraz e insaciável
que jamais abrandará a sua marcha com vista à constituição de uma sociedade
inteiramente dominada pelo mercado. Ou seja, de uma verdadeira sociedade civil
no sentido marxista do conceito. De uma sociedade onde reina o poder do mais
forte, onde campeia a liberdade ilimitada bem à semelhança do que se passa na
selva. Um verdadeiro estado de natureza!
Pois bem, se este é o objectivo para que caminhamos, se o “nosso” PS e os
seus congéneres europeus não só se revelam absolutamente incapazes de se opor a
este estado de coisas como, pelo contrário, por quase toda a Europa, se aliam,
agora em minoria, aos corifeus desta política, que sentido tem estar a formar
um partido com a intenção de servir de “bengala” ao PS na futura constituição de
um governo? Nenhum. Absolutamente nenhum, salvo o de identificar a “bengala”
com aquele que dela precisa para caminhar.
É por essa mesma razão que igualmente se não compreendem bem os verdadeiros
objectivos da recém-anunciada “Convergência de esquerda” ou do chamado
Manifesto 3D. Mesmo que haja uma adulteração semântica do conceito – e há, pela
própria limitação da diversidade por cuja convergência se luta – resta sem
resposta adequada a questão fundamental: convergir com base em quê? A
convergência política para ser uma convergência verdadeira e própria tem de ser
substantiva e não meramente adjectiva. A “convergência” para evitar que o Bloco
“caia no buraco” ou para simplesmente unir sob uma nova sigla votos que de
outro modo estariam eventualmente dispersos, pode ser uma excelente ou razoável
ideia para quem é eleito, mas em si esse objectivo não acrescenta rigorosamente
nada à esquerda se os votos reunidos sob a égide de uma sigla não servirem os
objectivos de uma política de esquerda.
O que a nosso ver acrescentaria algo à esquerda seria lutar pela
convergência das forças de esquerda em torno de um projecto de mudança assente
numa política de ruptura do status quo. Uma política, por outras
palavras, que fizesse convergir para as forças da “Convergência” os votos da
esquerda sem partido, deixando o PS em minoria, pois somente com o PS em
minoria será possível conduzir em Portugal uma política de esquerda. Uma
política na qual o PS teria o seu lugar, mas não como partido hegemónico à
volta do qual se façam hipotéticas, na realidade impossíveis, alianças com
vista à condução de uma política de esquerda.
Aparentemente, a Convergência de Esquerda parece ter como objectivo
prioritário congregar todos os votos situados entre o PS e o PCP. Ou seja,
parece ter por objectivo eleitoral alcançar os resultados que o Bloco parecia
estar em condições de conseguir e que hoje manifestamente já não consegue. É
isso que se depreende das palavras de José Reis mais do que das de qualquer
outro: “Perante uma esquerda fragmentária, há vários passos a dar,
sucessivamente. O primeiro é um compromisso inicial entre quem mais
imediatamente se deve unir: o BE, o Livre, as várias plataformas, organizações,
individualidades e activistas. (…) Depois há, evidentemente, outros passos a
dar. Perante o PCP e o PS”.
Como esta convergência se alcança, em que bases se funda e fundamenta é
coisa que os promotores da iniciativa não explicam suficientemente. Mais claro
parece ser o propósito pós eleitoral desta nova força política: constituir uma
força de governo, fazer parte do “arco da governação”, como claramente se intui
das palavras de Daniel Oliveira, outro promotor da iniciativa.
Independentemente da respeitabilidade de alguns nomes que assinam o
Manifesto, como José Reis e Carvalho da Silva, entre outros, a conclusão que
parece poder retirar-se da relativa opacidade que rodeia os seus propósitos
políticos não é infelizmente muito diferente daquela que o Livre, com mais
transparência, claramente anuncia: uma bengala posta à disposição do PS para
tentar impedir que este caminhe encostado à direita.
Claro que a ser assim – e até agora nada indica que seja de outra maneira –
tudo à esquerda ficaria mais ou menos na mesma ou porventura até pior. Se é
certo que só se pode fazer uma política de esquerda governando, não é menos
certo que somente sem a hegemonia do PS e sem alianças subordinadas à
estratégia do PS, se poderá fazer essa política de esquerda. E isso só será
possível mediante a constituição de uma frente na qual convirja toda a
esquerda. Ou seja, uma frente que ponha o “arco do poder” do outro lado do
hemiciclo...