segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

MARCELO E O DIREITO


 

MARCELO TEM UM PROBLEMA COM O DIREITO QUANDO FALA DE POLÍTICA



 

Marcelo tem claramente um problema com o Direito. Se ele não fosse professor de Direito e fosse um simples comentador político, ainda se poderia dizer que ele era uma espécie de Rui Santos do comentário político. Mas ele tem outras responsabilidades e qualquer que seja a forma como entenda dever comunicar com os seus ouvintes não pode fazer de conta que o Direito é um jogo ou um espectáculo cujo desfecho resulta do modo como se movimentam as pedras ou como os actores se comportam em cena.

Embora não seja do ramo, ele tem a obrigação de analisar com seriedade o instituto da prisão preventiva e do segredo de justiça no processo penal português. Explicar aos telespectadores o que diz a lei, como ela deve ser entendida e o modo como está sendo aplicada em Portugal nos processos chamados mediáticos.

Não basta dizer: em Portugal não se prende para obter provas. Prende-se porque as provas justificam a prisão. Não é isso o que parece resultar da prisão do motorista de Sócrates, por exemplo. Se a prisão do motorista de Sócrates tivesse resultado de elementos existentes no processo ele não teria visto a sua medida de coacção modificada depois de ter falado. E se Marcelo igualmente conhecesse por experiência própria o código de honra dos combatentes anti-fascistas faria da prisão preventiva e dos delatores (os chamados “rachados”), qualquer que seja a causa ou a natureza do processo, uma avaliação radicalmente distinta da que certamente tem.

Mas não é somente por esta razão, que pode ser considerada lateral ou até descontextualizada, que Marcelo analisa mal a prática da prisão preventiva em Portugal nos processos mediáticos.

Vamos lá ver se nos entendemos: a prisão preventiva é um recurso absolutamente excepcional (ninguém deve ser preso sem primeiramente ter sido condenado) que só pode e deve ser decidida nos casos previstos na lei, tendo sempre presente da parte de quem decide a natureza excepcional da medida.

E esses casos excepcionais como já aqui referimos noutra ocasião não podem ser considerados em função de uma avaliação subjectiva de quem decide, mas de factos objectivos, inequívocos, susceptíveis de integrar a previsão normativa.

Para que se perceba: dentro da excepcionalidade referida é preciso antes de mais que haja fortes indícios da prática de certo tipo de crimes dolosos puníveis com uma determinada pena de prisão (em princípio, superior a 3 anos). Mas não basta, como supõe a sra. Judite de Sousa, que esta condição se verifique. Esta condição é uma condição necessária, mas não é, nem de perto nem de longe, suficiente. É preciso ainda que haja perigo de fuga; ou perigo ou perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo, e (este e é cumulativo) perigo para a aquisição, conservação e veracidade da prova; ou perigo, em razão da natureza ou das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

Francamente, não é preciso ser jurista, basta ser relativamente versado na língua pátria, para se perceber que nos processos acima referidos, designadamente no que respeita a Sócrates, a prisão preventiva não foi realmente decretada ao abrigo de qualquer uma das situações que a lei prevê, mas pura e simplesmente para se tentar obter prova a partir da pessoa do suspeito. É uma forma de coacção sobre os mais fracos e de humilhação dos mais fortes.

Não vale a pena analisar ponto por ponto os fundamentos da prisão preventiva para se perceber que nenhum deles está integrado pela situação concretamente existente, a ponto de se poder dizer que a invocação de alguns deles até é ridícula, como, por exemplo, a do terceiro. Como pode alguém continuar a actividade criminosa de corrupção passiva se já não reúne as condições fácticas necessárias à imputação desse tipo de crime?

Por outro lado, o “segredo de justiça”, que também é excepcional, já que o processo penal é público, tal como está regulado na lei portuguesa, ou, no mínimo, como é aplicado em Portugal por quem não tenha capacidade para fazer uma interpretação inteligente da lei, pode assumir características odiosas de tipo inquisitorial, tanto mais que os despachos do juiz de instrução criminal que o determinam são irrecorríveis. E este é mais um caso da discricionariedade em processo penal que não raro se transforma em pura arbitrariedade.

Um caso a que os professores de direito deveriam dar muita mais atenção para defesa dos direitos, liberdades e garantias. Há a convicção generalizada entre os juristas de que a discricionariedade é uma característica de actuação da Administração, digamos do poder executivo lato senso entendido. Embora a Administração goze em larga medida do poder discricionário quase se pode dizer que o cidadão está mais protegido dos resultados deste poder quando ele é exercido pela Administração do que quando é exercido pelo poder jurisdicional, ou seja, pelos juízes. Ninguém fala do poder discricionário jurisdicional ou quase ninguém fala e as faculdades de direito não lhe dedicam qualquer atenção.

 Mas voltemos ao “segredo de justiça”. A sua explicação é muito simples: se uma pessoa é suspeita da prática de certo tipo de crimes aos olhos das autoridades encarregadas da investigação criminal é natural que o processo se mantenha secreto já que o êxito das diligências que a lei permite pode depender, e muitas vezes dependerá, desse secretismo. Mas a partir do momento em que o suspeito é considerado arguido – que à luz da nossa lei não é necessariamente um acusado, podendo ser apenas aquele contra o qual é requerida instrução num processo penal -, e inclusive preso, ele deveria ter o direito de acesso ao processo. Deve poder conhecer aquilo de que é suspeito, para se poder defender, porque essa suspeição já pesa negativamente na sua esfera jurídica por via das medidas de coacção, quaisquer que elas sejam. Não estamos no tempo da Santa Inquisição em que o preso nunca sabia ao certo de que estava sendo acusado.

E isto já nem falando na perversidade do segredo de justiça que na prática não é respeitado pelas entidades com acesso a todo o processo (já que só elas podem veicular para os jornais o que consta do processo, não se sabendo nunca a troco de quê….) e acaba por recair apenas e só sobre o arguido. E como autoridade judiciária, que tem competência para repor a verdade sobre o que é publicado, o não faz, é porque é verdade o que têm vindo a público. E se é verdade é porque alguém que tinha acesso ao processo quebrou o sigilo.

Estes esclarecimentos deveriam ter sido prestados por quem tem a responsabilidade de aliar à qualidade de comentador a de professor de Direito.

 

4 comentários:

professor de quê? disse...

nã é de administrativo como o padrinho dele? isse é drêto ô torto? diga a esse juiz que ê tamém sou quase um jurista....juro per dei que já dei a essa causa beli de profes de direito qu'endireitam quande entortam....ide iscrevê um livre ide...

Francisco Clamote disse...

É um prazer lê-lo, tal a clareza da exposição. Em absoluto, de acordo.

Raimundo Narciso disse...

Têm uma agenda política. Juiz, MP e o sr. Marcelo.

Duarte disse...

Liminarmente, uma declaração de interesses:
Leio normalmente com muito apreço, atenção e consideração o que aqui deixa escrito.
Tenho muito pouca estima pela arenga semanal do Professor Marcelo.
Não sou adversário político ou pessoal de José Sócrates.
Só excepcionalmente comento um post dum blog, mas não posso deixar de o fazer desta vez.
Comentando, direi que a acusação que faz a Marcelo Rebelo de Sousa sobre o seu relacionamento com o Direito lhe deve ser inteiramente devolvida no caso em apreço.
Na verdade, como é possível que um Professor de Direto, como o Senhor também foi, ainda que, presumo, não de Direito Penal e/ou Processual Penal, se permita pronunciar – se sobre a não verificação dos pressupostos de aplicação da prisão preventiva em relação ao arguido José Sócrates, no processo em que este está envolvido, sem conhecer minimamente, tanto quanto se sabe, os factos indiciários e as provas coligidos nesse processo, maxime os factos que importa dilucidar, negar ou confirmar e as provas que interessa completar, consolidar ou desconsiderar. Não conhecendo esses factos nem essas provas, como pode o Senhor afirmar, por exemplo, que a manutenção do arguido Sócrates em liberdade não pode comprometer decisivamente a aquisição, a conservação e a veracidade dessas provas. Sem esse conhecimento, só por adivinhação ou palpite pode ser produzida tal afirmação e, com todo o respeito, tal é, no mínimo, temerário.
Acresce que tal discurso, contraria a mais elementar lógica, pois enuncia uma conclusão prescindindo duma da suas imprescindíveis premissas, qual seja, o conhecimento do conteúdo do processo em questão.
Poderá vir a mostrar-se que a decisão que impôs a prisão preventiva ao arguido Sócrates foi inadequada, desnecessária ou excessiva, mas afirmá-lo agora, como o Senhor o faz, é, repete-se, manifestamente ousado.
Abro a excepção deste comentário, porque ando um bocado farto da aparente unanimidade da classe dos “bem pensantes” deste País sobre a presente situação do arguido Sócrates, sendo que a essa unanimidade parece estar subjacente um claro propósito de deslegitimação do poder judicial que exerce as funções no quadro constitucional que temos, designadamente quando esse poder judicial entala cidadãos excelentíssimos, tudo isto no pressuposto de que o resto dos seus concidadãos são um conjunto de basbaques ou mentecaptos.
Porque, muito sinceramente, não o incluo nessa classe e continuo a ter pelo Senhor e pelo que escreve respeito, estima e consideração, me dei ao trabalho de deixar aqui este comentário.
Duarte Bontempi