AS "QUERELAS" DE MAZZA
Tal como no post acima prometi, aqui vão algumas das graves ilegalidades que constam da “querela”(queixa acusatória) que o Fiscal Geral do Estado, José Manuel Mazza, apresentou em tribunal para instrução e julgamento do processo contra os dirigentes catalães, alguns já presos, como se sabe.
Os dirigentes catalães acusados por Mazza são 20: o Presidente da Generalitat e os treze “consellers”, ou seja, o Governo da Catalunha, mais os membros da Mesa do Parlment , que são seis.
A “queixa” do Fiscal acusa estes dirigentes do crime de rebelião e de “malversación” de dinheiros públicos, pede a sua citação urgente, exige medidas cautelares que tomem na devida consideração a gravidade dos factos e dos crimes cometidos, e ainda a circunstância de terem sido praticados à vista de todos, a contumácia da ilegalidade e o risco de reiteração das condutas delitivas – ou seja, pede a prisão preventiva dos arguidos e dá um sinal claro ao juiz instrutor de qual a posição do Governo de Madrid a este respeito
Do teor das "querelas", e do que entretanto se seguiu, resulta que uma parte dos dirigentes seja julgada na Audiencia Nacional (ex consellers), e a outra, no Supremo Tribunal de Justiça (membros da Mesa do Parlamento).
A justificação para que uns e outros sejam julgados em Madrid e não em Barcelona, pelo Tribunal Superior da Catalunha (TSC), é inaceitável. Segundo a lei, o Tribunal competente seria o de Barcelona não apenas por os factos incriminadores terem sido praticados na Catalunha, mas também por os imputados, tanto os governantes da Generalitat como os membros da mesa do Parlment, terem foro próprio por crimes praticados no exercício de funções - foro esse que, nos termos da lei, é o TSC. No mínimo, teria de ser este o tribunal competente para julgar os membros da Mesa, podendo quanto aos "consellers" admitir-se, por terem perdido o foro próprio em virtude da demissão do governo, o seu julgamento por um tribunal de primeira instância na Catalunha, já que foi nesta região que igualmente foram praticados os factos por que vem acusados.
Todavia, ao abrigo da discricionariedade que lhe assiste, melhor seria chamar-lhe arbitrariedade, o Fiscal Geral do Estado apresentou as suas “querelas” em dois tribunais de Madrid. A Audiência Nacional para o processo relativo aos membros do Governo Catalão e o Tribunal Supremo para os membros da Mesa do Parlamento com base na seguinte fundamentação: apesar de os factos descritos e os crimes que eles consubstanciam terem sido praticados na Catalunha, pela repercussão que os mesmos tiveram em toda a Espanha, principalmente em Madrid, será nos tribunais da capital que o processo deve correr os seus termos e os imputados julgados.
A Audiência Nacional já é, em si, uma aberração democrática sem cabimento num Estado de Direito (como constitucionalistas espanhóis admitem), mas mais arbitrária se torna a sua acção quando nem a própria lei que a criou é respeitada. De facto, ela só pode julgar os casos expressamente previstos na lei, não podendo nos demais casos substituir-se ao juiz natural. Se alguma dúvida existir entre a competência daquela e a deste, é esta última que deve prevalecer. E se quanto a AN estas são as objecções de fundo, quanto à competência do ST o mesmo se pode dizer por outras razões: tendo os factos ocorrido na Catalunha e sendo o TSC o foro próprio dos membros da Mesa é neste tribunal e não no ST que eles devem ser julgados. Portanto, a escolha dos tribunais de Madrid é ilegal e resulta de um juízo arbitrário.
Quanto ao facto de serem julgados por dois tribunais de categoria hierárquica diferente, pessoas que, segundo o Fiscal Geral, colaboraram e são co-autores dos mesmos crimes, a justificação é seguinte: os membros do governo deixaram de ter direito a foro próprio, a partir do momento em que o governo foi demitido, logo serão julgados na Audiência Nacional; os membros da mesa, apesar da dissolução do Parlamento, porque continuam em funções (comissão permanente), mantêm foro próprio, logo serão julgados pelo Tribunal Supremo.
Já se sabe, pelo que entretanto aconteceu, que o juiz (Juíza) instrutor do processo da Audiência Nacional (Carmen Lamela) considerou esta fundamentação perfeitamente normal, tanto assim que decretou a prisão preventiva dos “imputados”. Quanto ao processo que vai correr os seus termos no Tribunal Supremo, à hora em que estou escrevendo estas linhas, apenas se sabe que aceitou ser o tribunal competente, embora tenha achado estranho que pessoas que praticaram o mesmo crime sejam julgadas em dois tribunais diferentes, tendo de certo modo aberto a porta a que o juiz instrutor do processo avoque a competência do TS para julgar todos os “imputados”. Por agora não se sabe se o fará ou não.
Esta é, portanto, a primeira grande arbitrariedade do processo que está em curso. Se os tribunais fossem realmente independentes, não teriam aceitado a tese do “Fiscal General” que, manifestamente, não quer que os dirigentes catalães sejam julgados na Catalunha como a lei ordena, sem excepções! Numa das “querelas” prévias apresentadas no TSC, Mazza pediu que os “querelados” prestassem desde logo uma fiança de 6,2 milhões de euros, pedido que o tribunal não atendeu por ter considerado prematura, naquela fase do processo, a prestação de uma caução. Este foi certamente o sinal que levou Mazza a escolher Madrid, onde, pelos vistos, a competência dos tribunais é fixada a la carte!
Quem acha isto normal, por favor, nunca mais venha falar publicamente de outros processos, usados como arma de arremesso por aqueles que pretendem lançar anátemas definitivos sobre quem busca “outras formas de organização social”!
Mas há mais. Entre os acusados está um conseller que se demitiu para não votar a Declaração Unilateral de Independência (DUI); todavia, no entender do Fiscal deve igualmente ser julgado e punido por os factos criminosos, a que a queixa se refere, remontarem a Novembro de 2015, data em que o Parlamento pôs em marcha o processo de independência! Também neste caso, a juíza instrutora da Audiência Nacional (Carmen Lamela) aceitou a tese de Mazza, acusando o dito conseller, embora permitindo a sua liberdade condicional mediante a prestação de uma caução de 50 mil euros.
Se já é um escândalo para todos os democratas qualificar criminalmente a conduta dos dirigentes catalães e prendê-los preventivamente, brada aos céus a imputação do crime de rebelião.
O crime de rebelião, introduzido no Código Penal espanhol para punir os membros da ETA, pressupõe a prática de actos violentos (é a lei que o diz). Como não há actos violentos, como nenhum dirigente catalão raticou actos violentos, tendo, pelo contrário, pautado sempre a sua conduta por processos democráticos, o Fiscal Geral utiliza como argumento, para justificar o crime de rebelião, uma sentença do Supremo Tribunal de 22 de Abril de 1983, sobre o golpe de 23 de Fevereiro de 1981, na qual se admite que a rebelião pode ser “incruenta”.
Foi no processo a que aquela sentença se refere que se julgaram os autores do “golpe de 23 F”, todos militares. A legislação então aplicável era o Código de Justiça Militar, o qual, por razões óbvias, na tipificação do crime de rebelião, não exigia como requisito indispensável a violência, pois, tratando-se de um crime praticado por militares, a violência não é necessariamente indispensável ao êxito da rebelião. Pode bastar um simples pronunciamento. A possibilidade de usar a violência está sempre presente se a ameaça é feita por quem tem a seu cargo a guarda das armas, podendo, todavia, não ser necessário usá-la se o pronunciamento for acatado. Daí que o crime praticado por militares estivesse tipificado nestes termos.
Ao buscar a analogia onde ela não existe para fundamentar uma interpretação que manifestamente alarga o âmbito incriminador do preceito, o Fiscal está a violar o princípio da legalidade. Ou seja, ao admitir que o crime de rebelião pode ser praticado de forma "incruenta" quando a própria lei exige a prática de actos violentos, o Fiscal está a violar o princípio da legalidade, está a alargar o crime de rebelião a factos que a lei não contempla na tipificação do crime. Conduta tanto mais grave quando se sabe que é a própria legislação penal espanhola que qualifica noutro tipo legal de crime o comportamento atribuído aos imputados. Perguntar-se-á: então por que razão não subsumiu o Fiscal o comportamento dos imputados nesse outro tipo legal de crime? A resposta é simples: porque a pena aplicável é bem menos pesada.
É caso para perguntar que “democracia” é esta que actua sem vergonha e até sem a arte das ditaduras que se prezam, que nunca são “apanhadas” em barbaridades deste género, já que têm previamente a cautela de redigir tipos legais de crime com grande amplitude!
Mas há mais, se a rebelião não é um crime de resultado, como se depreende da "querela", mas de mera actividade, se a rebelião é um processo que pressupõe a prática de uma série de actos, como se compreende que o Fiscal considere agora esses actos criminosos e remonte a data do crime de rebelião ao início da sua prática se nada fez para os impedir? Se eram notórios por que não apresentou o Fiscal a “querela” correspondente a tempo de impedir a continuação da prática criminosa? E se esses actos eram criminosos como se compreende que o Governo de Espanha, o Presidente do Governo de Espanha, se tenha correspondido com os criminosos? Como se compreende que lhes tenha pedido por mais de uma vez para clarificarem a natureza e significado dos seus actos? Como se compreende que o Presidente do Governo de Espanha, em vez de se dirigir aos “criminosos” mediante correspondência formal, não tenha dado uma ordem ao Fiscal para apresentar a queixa e pedir a correspondente prisão dos infractores, tanto mais que a “rebelião era inequivocamente incruenta”?
Francamente, é difícil, mesmo no mais retrógrado dos países do chamado terceiro mundo, encontrar algo que se assemelhe a isto!