quarta-feira, 8 de novembro de 2017

AS DEMOCRACIAS E OS PRESOS POLÍTICOS



AS DEMOCRACIAS NÃO SÃO TODAS IGUAIS
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O debate que nas redes sociais se tem travado sobre o que são presos políticos, releva de outras considerações, além das que têm sido invocadas, que tenho resistido em trazer à discussão para não levantar mais polémica do que aquela que por aí já vai.

A ideia muito corrente entre os que defendem a inexistência de presos políticos em Espanha assenta na convicção, porventura na certeza, de que as democracias não podem ter presos políticos, porque não há presos políticos nas democracias.

Apesar de este argumento não provar absolutamente nada, como está muito arreigado na consciência de tanta gente, pela insistência com que é difundido pelas conhecidas agências de intoxicação da opinião pública, convém “ir a jogo”, mesmo correndo o risco de o jogar inteiramente em terreno alheio.  

Então, interessa começar por dizer que nem todas as democracias são iguais, nem as pessoas são tratadas igualmente em todas as democracias. Isso tem muito a ver com a génese das democracias. Se se trata de velhas democracias, consagradas ao fim de muitas e sangrentas lutas, travadas ao longo de séculos, é natural que essas democracias no plano sobre que incidiram essas lutas sejam mais perfeitas que todas as outras – é o que acontece na Inglaterra. E é também o que se passa em certa medida em França, apesar de a democracia francesa, erigida também ela ao longo de sangrentas e penosas batalhas, ter ficado com resquícios do Ancien Regime que ainda hoje se manifestam, embora atenuadamente.

Nas demais democracias europeias, a maior parte delas consolidadas a partir do fim da segunda guerra mundial e outras instituídas depois da Queda do Muro, a situação varia de caso para caso, embora naquelas saídas de regimes fascistas, pró-nazis ou autoritários, o grau de democraticidade existente esteja muito relacionado com o modo como foram instituídas, como aliás, Tony Judt tão bem explica na sua obra. O que sempre interessa saber para as compreender adequadamente é se mantiveram ou não as estruturas do regime derrubado e como se procedeu a essa substituição dos regimes.

Na impossibilidade prática de fazer neste contexto uma longa digressão sobre a génese das democracias europeias, vejamos sucintamente o que se passou na Península Ibérica – em Portugal e em Espanha.

A comparação entre o que se passa lá e o que se passa cá, em Portugal, leva inevitavelmente à conclusão de que não há comparação possível entre as duas situações.

A democracia portuguesa nasceu de uma verdadeira Revolução que desmantelou e varreu o Estado fascista, as suas instituições e fundamentos, os seus apoiantes e defensores. Pacificamente relativamente às pessoas, radical e sem contemplações sobre as estruturas do passado e os seus fundamentos.

Em Espanha nada disto se passou. A famosa transição, mais não é do que um arranjo das grandes potências europeias e dos Estados Unidos, que de forma alguma estavam preparados para a Revolução Portuguesa, tendo sido obrigados pela força das circunstâncias a “cozinhar” à pressa uma solução para Espanha que passou por uma espécie de “casamento” entre os franquistas e uma oposição democrática muito desencorajada pela sua própria incapacidade de alterar o rumo os acontecimentos em Espanha. E deste “casamento” de conveniência nasceu a democracia espanhola. Uma democracia que deixou ficar a monarquia, recriada efectivamente por Franco uns anos antes,  resolveu com batota o problema territorial (a que bascos e catalães deram o seu assentimento com reserva mental) e introduziu um certo número de gadgets da democracia representativa, mantendo intactas a maior parte das estruturas do Estado franquista (forças armadas, forças policiais,  tribunais e sua lógica de funcionamento, etc), com eliminação das mais escandalosas, impossíveis de conciliar com a matriz do novo regime. Ora isto traz consequências, como não poderia deixar de ser. Logo que a Espanha teve de se defrontar com problemas políticos sérios no plano da questão territorial, tanto no País Basco como na Catalunha, a tentação que imediatamente dominou o modo de actuação das autoridades espanholas foi a da velha lógica franquista, típica dos regimes autoritários – negar o problema político e tratá-lo juridicamente. Depois, é só fazer as leis em consonância com os objetivos que se pretendem alcançar, encontrar os juízes certos para as aplicar, nos tribunais especialmente criados para esse efeito.

Em Portugal, tudo se passou de modo muito diferente. O caminho trilhado num e noutro lado da Península para chegar à democracia não tem nenhuma semelhança. Isto apesar de logo em 25 de Abril, ou seja, no dia do derrube do regime, ter havido quem tentasse, ainda o Salgueiro Maia estava no Carmo, enveredar por uma via semelhante à que três anos mais tarde viria a vingar em Espanha.  Ficou célebre a resposta dada na Pontinha pelo Comandante Vitor Crespo às exigências de Spínola: “Meu General, os tanques ainda estão na rua…” Spínola percebeu e concordou.

Percebeu, mas não desistiu. Nem ele nem os que aberta ou dissimuladamente o continuaram a seguir. De tal modo, que a grande clivagem da Revolução de Abril, a que verdadeiramente está na origem de todas as divergências, é a que separa os que se bastavam com um movimento que derrubasse o regime, fizesse eleições, permitisse a criação de partidos políticos e liberdade de imprensa, mantendo o essencial do que vinha de trás, com exclusão das instituições mais odiosas (PIDE, Legião, Censura) e os que pretendiam uma verdadeira Revolução que desmantelasse as estruturas do Estado fascista e destruísse os seus fundamentos. No fundo, era o choque entre os defensores do Programa para a Democratização da República e os do Rumo à Vitória.

Ganhou, como se sabe, o Rumo à Vitória. As estruturas do Estado fascista foram desmanteladas e os seus fundamentos destruídos. Essa a razão por que no plano formal a nossa democracia é sólida e sem máculas. Nada do que acontece em Espanha seria possível em Portugal. Governe Cavaco ou Passos. Infelizmente, apesar do desmantelamento dos fundamentos do Estado fascista em todos os planos, não foi possível consolidar em todos eles as conquistas decorrentes do seu desmantelamento, daí que nesses outros planos tenha havido regressão, embora em bases diferentes, já sob integração na nova ordem constitucional. Essa a razão por que nesses outros planos a nossa democracia não é tão forte como no plano formal, tendo corrido o risco, em épocas bem recentes, de se deteriorar ainda mais.  Não obstante a importância desses planos para a construção de uma verdadeira democracia, eles são menos relevantes para a determinação da existência de presos políticos numa democracia.

Como as democracias não são iguais, como nem todas garantem do mesmo modo os direitos dos cidadãos, nem tratam igualmente as pessoas, essas diferenças acabarão por ser decisivas para avaliar os seus comportamentos em momentos de crise. E essa a razão porque a Espanha actua como um Estado autoritário e Portugal como um Estado democrático


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