HÁ CINQUENTA ANOS
Na sequência da crise académica de 1969, Veiga Simão
substituiu José Hermano Saraiva como Ministro da Educação Nacional, em Janeiro
do ano seguinte. Cerca de um mês depois, o Reitor da Universidade de Coimbra,
Andrade Gouveia, foi substituído por José Gouveia Monteiro.
Não obstante a repressão exercida sobre certos estudantes das
ex-colónias (Garcia Neto e Fernando Sabrosa, presos pela PIDE) e de haver
estudantes punitivamente incorporados nas forças armadas, pode dizer-se que a
nomeação de Gouveia Monteiro, sendo embora uma escolha do Ministro, representou
uma vitória do movimento estudantil por não haver memória nas décadas
anteriores de vigência do regime salazarista da nomeação de um reitor capaz de
ouvir as reivindicações estudantis e até de se identificar com algumas delas.
Foi neste contexto, nesta nova composição do ministério e das
autoridades académicas, que germinou a ideia entre estas, alguns professores e
os estudantes mais destacados do movimento associativo o ano anterior, de uma
delegação da Universidade de Coimbra pedir uma audiência ao Presidente da
República, Almirante Américo Tomás, para explicação dos incidentes ocorridos em
17 de Abril de 69 nos quais este esteve envolvido, tanto como interlocutor
forçado quer como destinatário privilegiado dos protestos que então tiveram
lugar.
Veiga Simão, como Ministro, tomou a
seu cargo trabalhar nos bastidores para que dessa audiência saísse
satisfatoriamente reparada a figura do Presidente da República que retribuiria
o gesto satisfazendo o pedido de benevolência que lhe deveria ser formulado no
decorrer da dita audiência.
Essa audiência teve lugar no dia 11
de Abril de 1970, no Palácio de Belém, em Lisboa.
A delegação da Universidade de
Coimbra, recebida por Américo Tomaz, era constituída pelo Reitor, por 9
professores entre os quais Teixeira Ribeiro e Paulo Quintela e oito estudantes,
mais directamente envolvidos nos acontecimentos do ano anterior.
Com o Presidente da República estavam o Ministro da Justiça, Mário Júlio de Almeida Costa e o Ministro da
Educação Nacional, José Veiga Simão
.
.
Nessa audiência, começou por usar da
palavra Alberto Martins, Presidente da AAC em 1969 – o mesmo estudante que em
17 de Abril de 69 havia pedido a palavra a Américo na inauguração do Edifício
das Matemáticas – que leu o seguinte texto:
“ Os oito estudantes aqui presentes dirigem a V. Ex.ª as mais respeitosas
saudações e ratificam com esta presença expressamente tudo o que os seus
professores houverem por bem declarar sobre o seu caso”.
Seguidamente usou da palavra o Reitor Gouveia Monteiro que
entregou ao Presidente da República um documento assinado por 151 professores e
assistentes sobre os incidentes de 17 de Abril, no qual se apelava à compressão
e benevolência do Chefe de Estado..
Depois interveio o Prof. Teixeira Ribeiro que leu o seguinte
texto:
“Os professores e assistentes da Universidade de Coimbra, abaixo
assinados, afirmam a V. Ex.ª o seu alto respeito e lamentam que V. Ex.ª tenha
reflexamente sofrido incómodos morais aquando da sessão inaugural do Edifício
da Secção de Matemáticas da Faculdade de Ciências.
Permita se venha, no entanto, pedir compreensão e
benevolência para os graves factos ocorridos. Eles só podem explicar-se pelo
clima emocional criado entre os estudantes por circunstâncias que V. Ex.ª bem
conhece”
A resposta de Américo Tomás, contrariamente ao que em regra
acontecia, foi lida. São suas as seguintes palavras então proferidas:
“ Vêm V. Exas pedir compreensão e benevolência para os graves factos
ocorridos em 17 de Abril do ano passado, por ocasião da inauguração do Edifício
da Secção de Matemáticas da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra, e
fazem-no com visível sinceridade, na primeira oportunidade de que dispuseram
para concretização dessa diligência.
Sempre a verdade me norteou e repudiei a mentira, pelo que
não deverá estranhar-se a franqueza com que vos digo não poder corresponder,
totalmente, ao vosso pedido. Não é, evidentemente, a benevolência que eu nego,
pois esta audiência não a concederia se não me sentisse disposto a ela. A minha
dificuldade reside somente na impossibilidade de compreensão, para o que me não
é possível compreender. Eu explico.
Fui convidado para presidir à inauguração de um majestoso e
apropriado edifício, expressamente construído para o ensino da Matemática na
Universidade de Coimbra. Prontamente acedi ao convite, a que não foi insensível
o antigo estudante de Matemática, que fui.
Pensei ir assistir a um acontecimento que só deveria
constituir motivo de júbilo para toda a Universidade. Nessa plena convicção e
no desconhecimento completo de tudo o resto, me dirigi a pé da reitoria da
Universidade para o novo edifício. Só à chegada e a seguir a ela, me apercebi
de que qualquer coisa de insólito poderia ocorrer: os cartazes exibidos e o
esboço de sussurro verificado durante a cerimónia religiosa realizada no átrio
da entrada foram sinais bem visíveis e audíveis a chamarem a minha atenção.
É do conhecimento de todos o que se passou na sessão solene
que teve lugar no anfiteatro do novo edifício, onde consenti que entrassem
todos os estudantes que nele coubessem, mas não os cartazes de que alguns eram
portadores. Dentro do anfiteatro não se verificou qualquer sussurro, mas ele
era bastante ruidoso fora dele, mormente durante o primeiro e o ultimo discurso
da sessão.
O amor à verdade a que sou fiel, manda-me afirmar ter sentido
não ser eu o alvo directo das turbulências que mancharam um dia que apenas
deveria ter sido festivo. E o mesmo amor à verdade me manda dizer, também, que
o estudante que a meio da sessão e após o discurso do professor de Matemática,
se ergueu na parte central da sala e me pediu licença para falar, acatou
prontamente e sem qualquer palavra mais, a decisão por mim tomada e que, na
altura, e dados os antecedentes, não podia ser outra.
A característica essencialmente festiva da inauguração e a
presença do Chefe do Estado, que com ela honrava a própria Universidade, deviam
ter obstado, com indiscutível evidência, aos acontecimentos ocorridos e não há
clima emocional que o possa explicar. Daí a incompreensão que manifesto.
Estas minhas palavras deverão ser tomadas como um desabafo,
magoado e legítimo, de quem sempre teve a preocupação de ser correcto e estava
habituado a ser recebido com as maiores manifestações de civismo e de simpatia
em todos os locais de Portugal que, na sua incansável peregrinação, tem
visitado.
Termino transmitindo ao senhor Ministro da Justiça, aqui
presente, o que farei igualmente ao senhor Ministro da Defesa Nacional e do
Exército, o desejo de que seja dada satisfação ao pedido de benevolência que
acabou de me ser feito. O homem firme que me prezo de ser, nunca foi insensível
a qualquer pedido semelhante: também o não é desta vez, crente de que o seu
gesto será devidamente compreendido, em toda a sua extensão.”
A sessão não terá
terminado muito bem. O Reitor agradeceu a benevolência mas tentou também fazer
compreender a Américo Tomás que não se justificava a incompreensão por ele
manifestada, explicações que este não aceitou. O Prof. Teixeira Ribeiro terá
tentado explicar por outro modo o que o Reitor pretendia dizer, mas Américo
Tomás cortou-lhe a palavra e deu a audiência por terminada.
Deste pedido de clemência resultou, segundo a comunicação,
cerca de quinze dias mais tarde, do Ministro da Educação Nacional feita perante
os representantes do Senado Universitário e de estudantes de Coimbra, a
amnistia pelo Chefe de Estado do crime de ofensas às suas funções, no processo-crime
instaurado ao Presidente da AAC, o arquivamento de todos os processos
disciplinares instaurados na sequência do 17 de Abril e o licenciamento de os
todos os estudantes que, pela sua participação na luta académica, tinham sido
chamados a prestar serviço militar.
Do lado de largos sectores da esquerda, bem como do movimento
associativo de Lisboa, este pedido de clemência a Américo Tomás, apesar de
genericamente apoiado por uma deliberação da Assembleia Magna que autorizou a
ida a Lisboa de uma delegação académica para prestar explicações ao Presidente
da República, foi interpretado como uma cedência inadmissível do movimento
associativo de Coimbra, ou dos seus principais representantes, que manchava a
luta antifascista, mas também a tradição do movimento estudantil antifascista
que nunca durante a ditadura havia até então terminado uma luta apelando à clemência
das autoridades e à benevolência do poder por mais duras e injustas que
tivessem sido as sanções aplicadas, rompendo assim com uma tradição, anterior
ao salazarismo, muito corrente na Universidade de Coimbra de as lutas
académicas terminarem ora com o “perdão dos Lentes”, ora com o “perdão por
estes solicitado”, consoante o “destinatário da ofensa”.
Do lado do regime, os sectores salazaristas censuraram
asperamente a atitude laxista do Ministro da Educação e responsabilizaram-no
pela agitação universitária subsequente que, segundo aqueles sectores, ficou
favorecida e incentivada pela acção conjunta do Presidente do Conselho
(Marcello Caetano) e do Ministro da Educação (Veiga Simão) que levaram o Chefe
de Estado a perdoar comportamentos que deveriam ter sido severamente punidos.
Mais grave ainda, deste mesmo ponto de vista, foi ter-se permitido o adiamento
do serviço militar a agitadores estudantis que aproveitaram essa benesse do
governo para continuarem a instabilizar em Coimbra a vida universitária com
acções cada vez mais reprováveis bem como a propagação do seu exemplo a outras
universidades nos anos seguintes.
E assim se junta mais um elemento à história do “17 de Abril
de 1969”.
4 comentários:
Um texto objetivo. Os factos são apresentados tal e qual aconteceram. Não há interpretações nem juízos de valor. Os que existem são narrados como factos históricos. É deixado ao leitor o seu juízo. Pena não constar do texto o discurso do Reitor.
Sim, a preocupação foi essa. Apresentar os factos nus e crus. E de tudo o que sobre o 17 de Abril se tem escrito, depreende-se o seu contexto.
Havia estudantes com processos disciplinares, havia estudantes indiciados ou investigados pela pática de crimes, havia estudantes mobilizados para prestar serviço militar? Sim, mas o que é que isso tinha de novo relativamente às lutas anteriores de 61/62 e 64/65? Nada, absolutamente nada. A diferença está em que os dirigentes associativos daqueles anos foram severamente punidos disciplinarmente e foram julgados criminalmente. A diferença foi esta: não pediram clemência nem benevolência às autoridades, nem isso lhes passou pela cabeça. Limitaram-se a fazer a sua defesa que não lhes valeu de nada, já que as decisões estavam tomadas antes de instaurados os processos.
O brando fascismo à portuguesa ou que tem cú tem medo.
Sendo que um desses, pelo menos, se apropriou, com proveito, da "liderança" e à custa dela obteve altos cargos políticos. Se a memória me não trai é um tal de … Martins …
Acertei, JM Correia Pinto ?
João Pedro
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