A COMPRA DO DVD ROUBADO
O BND (Bundesnachrichtendienst), serviço secreto alemão, pediu autorização ao governo federal para comprar por 4,2 milhões de euros um DVD contendo dados bancários de empresas alemãs, clientes do banco LGT (Liechtenstein Global Trust), propriedade da família real do Liechtenstein, sabendo-se que tais dados tinham sido obtidos ilegalmente pelo seu detentor. Recebeu luz verde e o negócio realizou-se. As dúvidas sobre a sua legalidade, foram dissipadas em quatro palavras pelo Ministro das Finanças social-democrata, Peer Steinbrück, que, esperando receber centenas de milhões de euros com a operação, disse: “É dinheiro bem empregue”.
Esta história exemplar merece ser contada com mais pormenor. Como os mais avisados certamente saberão, a República Federal de Alemanha ressurgiu da II Guerra Mundial como grande potência económica graças a um pacto entre a classe empresarial e os trabalhadores, baseado, como diz Ignacio Sotelo, professor da Universidade Livre de Berlim,”na honradez empresarial protestante, segundo a qual o muito dinheiro ganho pelas empresas também tinha de ser repartido pelos trabalhadores”. Ultimamente, depois da queda do Muro, mas mais acentuadamente a partir do século XXI, tudo se alterou. Os trabalhadores perderam peso no sistema produtivo e a classe empresarial foi-se gradualmente libertando dos valores com respeito pelos quais pautou durante décadas a sua conduta (ler "Os Buddenbrook", de Thomas Mann), a ponto de hoje viver paredes meias com práticas que raiam a ilicitude ou que são em alguns casos mesmo criminosas. O fenómeno não é especificamente alemão, mas na Alemanha sente-se mais do que em qualquer outro lugar por o país ser tido durante muito tempo como um modelo.
Pois bem, o que o dito DVD prova é que centenas de empresários alemães vêm desde há anos fraudando o fisco em mais de 4000 mil milhões de euros, segundo o Ministério Público de Bochum, encarregado das investigações, através do desvio de milhares de milhões de euros para aquele banco do Liechtenstein, que, como todos os bancos de “paraísos fiscais”, é especialista em pôr a salvo dinheiro sujo, qualquer que seja a sua proveniência: a fuga ao fisco ou outra.
A primeira vítima desta investigação, que só agora está a começar e que ameaça alastrar ao próprio sistema financeiro, é uma das mais poderosas figuras do empresariado alemão, Klaus Zumwinkel, o homem que converteu os correios alemães, Deutsche Post, na primeira empresa de logística do mundo. Já deixou o cargo, depois de ter admitido a evasão de um milhão de euros do seu património familiar para o Liechtenstein.
Num país onde desde há anos se vinha dizendo aos trabalhadores que era preciso conter os salários e reduzir os serviços sociais para reactivar a economia, mas no qual simultaneamente se assistia a lucros cada vez maiores de largos sectores empresariais e onde os proventos dos gestores cresciam exponencialmente, o escândalo fiscal do DVD caiu como uma bomba! Também por isso, governo alemão actuou com firmeza, a ponto de Angela Merkel ter dito ao Primeiro Ministro do Liechtenstein, Otmar Hasler, “Desejamos manter boas relações convosco, mas é imprescindível que o Liechtenstein se comprometa com a EU a avançar contra a fraude e aceite as recomendações da OCDE contra a opacidade fiscal”. Isto publicamente, porque em privado a conversa que se fez chegar ao principado foi muito mais dura: “Se o Liechtenstein não aceitar cooperar, teremos de falar com a UE e impor-lhe sanções com vista ao seu isolamento”.
Reacções contra houve do Príncipe do Liechtenstein, que obviamente também vive deste dinheiro sujo, e de certos sectores liberais alemães.
Para concluir apenas mais duas palavras.
A primeira: não basta na Europa (e falando apenas da Europa) tomar medidas contra o Liechtenstein. É preciso tomá-las igualmente na UE contra a Áustria e o Luxemburgo; e, fora da EU, contra a Suíça, Andorra, Mónaco e Gibraltar, entre outros.
A segunda: é tão difícil fazer previsões sobre o que se passará no futuro, como fazer conjecturas sobre o que se teria passado noutro país se o seu governo soubesse, com provas, que havia uma fuga generalizada ao fisco do grande empresariado (financeiro, industrial, comercial, dos serviços, etc.). É difícil, mas no caso em apreço, a probabilidade errar, para quem arriscasse a conjectura, seria mínima!
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