O QUE REALMENTE SE ESTÁ
A PASSAR
Depois da propaganda da semana passada sobre o “regresso aos
mercados” mantém-se para o português comum a triste realidade em que o Governo
o mergulhou com uma política exclusivamente orientada para satisfazer o
interesse dos credores e a voracidade dos banqueiros.
E a triste realidade é esta: aumenta todos os dias o número
de desempregados, cresce continuamente o número de falências, subsiste a
recessão económica ou pode mesmo agravar-se se o Governo levar à prática apenas
algumas das várias medidas que se propõe concretizar no quadro da pretensa
reforma do Estado e, finalmente, aumenta para números insustentáveis a dívida
pública.
A dívida pública já ultrapassa os duzentos mil milhões de
euros e o próprio PIB em mais de vinte por cento. Esta situação, que nunca
seria confortável, e em caso algum dispensaria a análise das causas que lhe
deram origem, não seria tão grave quanto está sendo nas suas consequências
imediatas nem nos seus desenvolvimentos futuros se o país estivesse a crescer,
se houvesse alguma inflação (moderada) e se os juros fossem idênticos aos
praticados até à crise financeira de 2008.
Mas nenhuma destas condições se verifica, nem está em vias de
se verificar por mais optimistas que sejam as previsões daqueles que vêem
sinais de mudança no panorama europeu.
De facto, a imposição de políticas altamente restritivas da
procura interna, a deflação salarial e a forte restrição do crédito, o controlo
da inflação pelo BCE como primeira prioridade em detrimento do crescimento e do
emprego bem como a ausência de uma política monetária e de crédito
verdadeiramente virada para as necessidades dos cidadãos e das empresas
produtivas impedem que o país cresça agora e nos tempos mais próximos.
Diz a propaganda do Governo que a situação mudou
positivamente nos últimos meses e que a partir de agora estão criadas as
condições para relançamento de um crescimento “sustentado”. Nada na política do
Governo aponta nesse sentido, podendo apenas dizer-se que a única diferença
relativamente à situação vivida há uns meses atrás consiste numa certa
estabilização dos “mercados financeiros”, não por terem voltado a ser o que
foram nos anos subsequentes ao nascimento do euro, mas por ter sido estancada a
espiral especulativa que assolou os mercados a partir da crise grega e da
indisponibilidade da Alemanha para, no quadro da zona euro, colaborar
eficazmente na adopção de medidas que rapidamente a solucionassem.
Portanto, a mudança que existe é apenas esta e nenhuma outra.
Nada no panorama da política europeia e da política monetária e creditícia do
BCE aponta para o regresso a uma situação anterior à crise. Pelo contrário,
consolida-se cada vez mais a ideia de que o Euro deixou de ser uma moeda comum
para se tornar uma moeda a “várias velocidades” num jogo de resto zero. O que
uns ganham contraindo empréstimos a juros baixíssimos ou até negativos é o que
outros perdem no seu famoso regresso aos mercados com juros várias vezes
superiores às possibilidades das suas economias.
E se esta situação que
agora existe pode parecer aceitável, por ocorrer na sequência de uma escalada
especulativa absolutamente insustentável, aparentemente ou transitoriamente
estancada, ela revelar-se-á a igualmente a breve trecho incomportável pelas
diferenças que potencia e pelas desigualdades que gera.
Dito de uma forma mais clara: uma união monetária entre territórios
economicamente muito desiguais, deixados na sua actividade económica ao puro
jogo do mercado, não integra com equidade as respectivas economias, antes as
afasta aprofundando diferenças de competitividade e de riqueza quer entre as
partes que a compõem quer dentro de cada uma das unidades individualmente
consideradas. Estas desigualdades tendem a consolidar-se e a profundar-se tanto
mais depressa quanto mais distante era o ponto de partida entre as partes
integrantes dessa união monetária.
E ainda sobre a cessação (ver-se-á dentro de pouco tempo se
temporária ou com alguma consistência) da escalada especulativa convém dizer que
ela abrandou por duas razões: primeiro porque o BCE deu a entender que agiria
como garante de última instância se os países que estavam a ser vítimas dessa
escalada especulativa continuassem a tomar as medidas necessárias ao cumprimento
dos programas de ajustamento e em segundo lugar porque a Troika tem velado e
continuará a velar para que por via daqueles programas se transfiram regularmente
para os credores as somas em dívida.
Ou seja, a Troika e as instâncias com responsabilidades na
condução da política europeia têm todas as razões para se sentirem satisfeitas
com o Governo português porque o Governo tem sabido pôr os interesses dos
credores e do capital financeiro acima, muito acima, dos interesses dos
portugueses. E é isso o que realmente está a acontecer: os bancos estão a
regressar aos grandes lucros com ajudas quase gratuitas do Estado e do BCE e os
credores vão tendo a garantia da Troika de que o Estado português se propõe
cortar nas despesas sociais, nos salários e nas pensões para lhes continuar a
assegurar o pagamento da dívida.
Esse tem sido o “mérito” do Governo português. Mas não haja
ilusões, esta política de progressivo empobrecimento não tornará a dívida
sustentável. A espiral recessiva em que está mergulhada a economia portuguesa agrava
progressivamente a dívida cujo peso se vai tornando mais insustentável a cada
dia que passa. Basta olhar para o seu crescimento exponencial em termos
absolutos e em relação ao PIB bem como atentar no seu serviço nos próximos oito
anos para imediatamente se perceber como são falaciosas e completamente
destituídas de fundamento as “vitórias” do Governo.
Nem mesmo a crença do Governo no surgimento de um novo modelo
económico gerado pelas políticas que estão sendo levadas a cabo alteraria minimamente
a actual situação dos portugueses em geral. Esse modelo, a implantar-se, assente
em baixos salários, desregulamentação laboral e ausência de direitos sociais
universais, pontualmente substituídos por um assistencialismo de circunstância,
geraria uma distribuição de rendimentos muito mais desigual do que aquela que
hoje já existe e somente mediante uma super exploração do trabalho permitiria
continuar a pagar nos prazos previstos o serviço da dívida. Ou seja, a situação
dos portugueses degradar-se-ia ainda mais em benefício dos mesmos de sempre –
credores e capital financeiro.
Esta via não tem qualquer hipótese de concretização nem pode
ter qualquer sucesso, apesar do banqueiro Ulrich admitir com toda a franqueza que
se os sem-abrigo aguentam a situação em que estão também o português comum
aguentará a austeridade mesmo que reduzido a um ordenado de miséria. Ulrich
tem o mérito de dizer com clareza o que Passos e Gaspar escondem. Mas a sua
bestialidade é também ilustrativa da situação a que já se chegou a Portugal.
Uma situação na qual o capital financeiro arrogante e poderoso já se permite
tratar os portugueses com um desprezo de tipo colonial certo de que nada
impedirá no futuro a sua marcha ascensional com vista ao completo domínio da
economia.
Mas para contrariar
esse futuro que os “Ulrichs” deste país e da Europa têm por certo é preciso que
se saiba que também não terão sucesso aqueles que propõem uma via pretensamente
alternativa, assente na base matricial da política do Governo, muito centrada
na esperança de que os desenvolvimentos subsequentes das “palavras de Draghi”
acabarão por levar o BCE, e por via dele da própria União Europeia, ao
desempenho de um papel salvífico das economias em crise. Esta ideia que às
vezes parece estar subjacente a certas propostas políticas, aparentemente alternativas
à política do governo, não tem fundamento nem resiste à análise dos factos. A
actuação do BCE na crise da dívida e do euro, mesmo quando aparentemente se
afastou do seu papel estatutário de controlador do nível geral dos preços, nunca
se orientou, quer sob a direcção de Jean-Claude Trichet, quer sob a direcção de
Draghi, no sentido de defender o crescimento e do emprego. A sua exclusiva
preocupação foi a de salvar os bancos e o sistema financeiro sem prejuízo de as
medidas tomadas para este efeito acabarem, reflexamente, por ter efeitos na
escalada especulativa sobre a dívida pública.
O comportamento dos principais bancos centrais dos países
desenvolvidos na crise financeira de 2008 e nos seus desenvolvimentos
posteriores, principalmente na Europa, sejam eles a Reserva Federal americana,
o Banco de Inglaterra ou o Banco Central Europeu, orientou-se prioritariamente
para a defesa dos bancos e do capital financeiro. A famosa independência dos
bancos centrais apenas é verdadeira no sentido de que eles são cada vez mais
independentes da democracia e do escrutínio dos eleitores, apesar de as medidas
que diariamente tomam condicionarem a vida dos cidadãos tanto ou mais do que as
medidas dos governos. Mas de forma alguma é verdade que eles sejam
independentes do capital financeiro já que a sua própria composição e acção,
como, aliás, a dos restantes reguladores, é impensável sem o prévio assentimento
ou uma actuação consonante com a defesa dos grandes interesses que,
teoricamente, têm por missão regular.
É isso o que demonstra por toda a parte, e não apenas na
Europa, a história da escolha das equipas que constituem as direcções das
entidades reguladoras bem como a enumeração e análise das medidas que vão
tomando no desempenho das suas funções. E é isso que igualmente se passa,
porventura com mais zelo ainda, nos bancos centrais cuja missão fundamental é
defender o capital financeiro.
Hoje no moderno capitalismo financeiro globalizado podem
garantir-se lucros fabulosos sem qualquer preocupação de democraticidade na
distribuição dos rendimentos. A evolução da situação americana que desembocou
na crise financeira de 2008, bem como a crise europeia demonstram isso mesmo. E
a situação portuguesa já é um bom exemplo do que se caba de afirmar. Maior desigualdade
do país relativamente aos mais ricos, maior desigualdade internamente na
distribuição dos rendimentos, mais pobreza, perda acentuada de rendimentos das
classes médias e lucros muito maiores do capital financeiro.