AS COISAS COMEÇAM A FICAR CLARAS
Com o passar dos dias tudo começa a ficar mais claro. Motivações várias contribuiram para a formulação da proposta de Cavaco. Só que nem todas estão no mesmo plano. Algumas delas, embora importantes, são meramente secundárias. Outras, pelo contrário, foram decisivas para a formulação da proposta, melhor dizendo, do programa de acção que apresentou aos portugueses.
A vingança servida a frio sobre as pretensões de Portas e a continuação da humilhação a que o está sujeitando é sem dúvida um motivo de grande regozijo para Cavaco, mas não foi decisivo. A subalternização do PSD face ao CDS como condição da manutenção da coligação e da continuidade de Portas no Governo incomoda, desagrada, mas num assunto de tão grande relevância também não constituiu um factor determinante da posição assumida por Cavaco.
O que fez Cavaco assumir as rédeas da governação foi o "discurso" que o Governador do Banco de Portugal lhe vendeu e com o qual ele no essencial concorda.
Como toda a gente sabe, Carlos Costa é um agente do capital financeiro internacional e é nessa qualidade que as suas intervenções devem ser compreendidas.
O capital financeiro internacional tem hegemonizado (não no sentido grasmciano do conceito, mas no sentido fascista-imperialista) a política internacional, nomeadamente a política económica e financeira, nestas últimas três décadas. Em consequência desse poder desmedido todos os excessos foram cometidos. O diagnóstico está feito e é do conhecimento público. A desregulamentação levada à quase total irresponsabilidade pela ganância de angariar lucros vultosos, fáceis e rápidos levou à crise financeira de 2008 e às suas consequências na Europa, consideravelmente agravadas pela existência de uma moeda única criada sem outras preocupações que não fossem as de retirar aos Estados (mais fracos mais que aos mais fortes) o controlo da política monetária e de crédito.
Apesar do relativo controlo que o capital financeiro vai mantendo da situação, conseguindo, até ao presente, que as vultosíssimas perdas em que incorreu fossem integralmente assumidas pelos contribuintes, apesar de continuar a ditar as regras do jogo contra a vontade da esmagadora maioria da população e de continuar a impor políticas contrárias aos seus interesses, a verdade é que a situação está longe de se encontrar controlada e normalizada. Qualquer passo em falso, qualquer falência soberana ocorrida neste quadro ainda tão instável e de consequências tão desastrosas, nomeadamente os efeitos em cadeia que tal ocorrência acarretaria, exigem um controlo férreo da situação e a garantia de que os países mais problemáticos não descambem numa situação financeiramente incontrolável.
Para conseguir isso o capital financeiro, os famosos "mercados", está disposto a liquidar o Estado social lá onde a sua permanência ameaçar pôr em risco a sua hegemonia e, se necessário for, também a própria democracia mesmo sob a forma de farsa que a democracia representativa de tipo Ocidental tende hoje cada vez mais a ser.
Pois bem, a remodelação governamental que Passos Coelho apresentou a Cavaco, atribuindo extensos poderes ao partido da coligação, nomeadamente ao seu chefe, que o ex-ministro Gaspar (outro agente do capital financeiro) considerou responsável pelo fracasso da sua política, não garantia a tranquilidade suficiente aos "mercados". Mesmo que Passos Coelho a tivesse aceitado de má fé, como muito provavelmente aconteceu, ela iria sempre criar turbulência na área decisiva para a condução de uma política conforme aos interesses do capital financeiro - as Finanças!
Perante este quadro de previsível agravamento das condições financeiras do país por incoerência da política do Governo e chantagem dos "mercados financeiros", Cavaco, acossado pelos agentes nacionais do capital financeiro internacional e seus aliados, entendeu exigir, sem margem para dúvidas, que o programa que Passos e Gaspar haviam acordado com a Troika, de cortes de quatro mil e setencentos milhões de euros no Orçamento de Estado, fosse posto em prática dentro dos prazos acordados.
Mais: a chantagem que está em curso é esta: Portugal não vai conseguir regressar aos mercados depois de executado o programa da Troika e em 2014 há empréstimos que se vencem da odem dos quinze mil milhões de euros. Se Portugal quer garantir empréstimos em condições mais suaves (uma espécie de segundo resgate) tem de cumprir à risca o Memorandum da Troika nos prazos acordados.
É isto que Carlos Costa e Cavaco andam a dizer na linguagem cifrada em que se exprimem.
Quem executará o programa é o que se vai ver. O ideal para Cavaco, Carlos Costa e agentes do capital financeiro internacional seria que ele fosse executado com a concordância dos três partidos. Se não puder ser, sê-lá pela coligação ou por um governo de iniciativa presidencial.
A grande incógnita - se é que há incógnita - é a posição do PS. A questão não está em saber se o PS vai participar directamente na "reforma do Estado" . Isso o PS não tem condições para fazer e toda a gente sabe isso, Cavaco inclusive. Também não será razoável afirmar que o PS quer que isso se faça...mas por outras mãos. A grande questão está em saber se o PS considera a "reforma do Estado", tal como a Troika a entende, uma inevitabilidade ou se, pelo contrário, está disposto a lutar contra ela,garantindo desde já que não lhe dará o seu apoio quando for governo. E aí é que as dúvidas começam a escassear. Nada do que até hoje foi dito pelo PS poderá levar alguém a pensar que aquele partido se oporá à "reforma do Estado" depois de feita.
O modo como o PS entrou nesta discussão, os critérios metodológicos que enunciou, o comunicado que publicou, levam à conclusão que o PS se não vai opor à "reforma do Estado" depois de feita. Se outra fosse a intenção do PS ele deveria ter entrado no "jogo" de outro modo. Bastava-lhe ter dito: "Aceitámos as condições formais impostas ou propostas pelo PR e vamos tentar alcançar nestas negociações o acordo necessário dos partidos que assinaram o Memorandum para, com a força conjunta dos três, defender a sua renegociação no sentido que nós próprios temos defendido, mas também no sentido que tem sido defendido por tanta gente do PSD e, obviamente, do CDS que publicamente já afirmou discordar da política até aqui seguida".
Com esta posição do PS ficaria desmascarado Cavaco, Passos Coelho e e todos os que estão coagindo os portugueses a aceitar o "inevitável". Se o PS não o fizer, se continuar a insistir em questões metodológicas despidas de conteúdo, os portugueses não podem deixar de o responsabilizar pelo que vier a acontecer.
Há aqui um "pormenor" que seguramente vai fazer toda a diferença: os lacaios do capital financeiro não estão a contar com a oposição que essa famigerada "reforma" vai suscitar nas mais diversas camadas do povo português. Essa mesma oposição que está na origem da crise do governo, da demissão de Gaspar, de Portas, da proposta salva-vidas de Cavaco, etc....