quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

SÓCRATES – A PROIBIÇÃO DE ENTREVISTAS


 

UMA QUESTÃO COMPLEXA CUJOS CONTORNOS IMPORTA CONHECER

Antes de mais convêm dizer, a propósito da proibição da concessão de entrevistas em prisão preventiva, que o que se está a passar com Sócrates ou o que se passou com Carlos Cruz, poderá passar-se com qualquer outro preso e o que se decidir relativamente a estes valerá nos mesmos termos para qualquer outro, embora seja óbvio que a curiosidade dos meios de comunicação social se não manifesta do mesmo modo relativamente a todos os presos. Somente aqueles cuja notoriedade seja susceptível de interessar o grande público ou aqueles crimes que pela sua natureza adquiram uma grande repercussão social suscitam em regra o interesse da comunicação social. E contra isto nada há a fazer, já que não são os juristas, nem os directores dos serviços prisionais a traçar a linha editorial dos jornais e das televisões.

Isto para responder ao argumento muito em voga nas redes sociais e numa certa “conversa de café” de que com o “Zé Ninguém” ninguém se interessa.

Sobre a questão em concreto - pode ou não quem se encontre em prisão preventiva conceder entrevistas? – entendemos que a resposta deve ser encontrada nas leis e regulamentos relevantes, conformes à Constituição, e deve ser o menos discricionária possível. Ou seja, deve ser uma resposta a que se chegue, a que qualquer jurista possa chegar, pela simples aplicação da lei e não tanto uma resposta em última instância fundada nas valorações pessoais de quem decide. Como se diz em direito, uma resposta derivada de uma aplicação vinculada da lei e não uma resposta discricionária.

Embora não tenhamos especiais conhecimentos de processo penal ou de direito penitenciário (se assim se pode chamar), sendo mesmo muito escassos esses conhecimentos por da matéria estarmos afastados há mais de quatro décadas, parece-nos que os aspectos relevantes da questão são os seguintes:

Em primeiro lugar, uma pessoa pelo facto de estar presa não deixa de ser titular dos direitos fundamentais que a Constituição consagra, embora fique sujeita às restrições impostas pela natureza da pena ou da medida de coacção ou da segurança e da ordem do respectivo estabelecimento prisional.

Em segundo lugar, as restrições aos direitos fundamentais (direitos, liberdades e garantias) têm de estar expressamente previstas na Constituição, devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, devem revestir natureza geral e abstracta e não podem afectar o conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.

Do exposto decorre, antes de mais, que há um princípio constitucional norteador, incontornável, da aplicação de qualquer restrição ou limitação de um direito fundamental – esse princípio é o da proibição do excesso. As restrições ou proibições não devem ir além do que é estritamente necessário à salvaguarda de outros direitos ou interesses. Devem ser proporcionais ao fim que legitimamente se pretende salvaguardar.

No caso da prisão preventiva (a prisão fundada em sentença estará, em parte, sujeita a um regime diferente…), a primeira questão que há a equacionar é a de saber se a proibição de concessão de entrevistas se enquadra na medida de coacção decretada e se por ela é exigida. E essa decisão (é de uma decisão que se trata e não de um parecer, segundo se crê), só pode ser tomada pelo juiz de instrução criminal que pode (ou deve?) para o efeito ouvir o ministério público.

Supondo existentes os indícios dos tipos de crime que podem justificar a decretação da prisão preventiva, dos três fundamentos que a legitimam (fuga ou perigo de fuga; perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo, nomeadamente aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou perigo de que o arguido continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas) nenhum deles parece, razoavelmente, poder justificar a proibição. Seria manifestamente excessivo impor uma restrição ao exercício de um direito fundamental que não é necessária ao fim visado por qualquer dos fundamentos da prisão preventiva.

Em que medida pode a concessão de uma entrevista facilitar o perigo de fuga, se o arguido está preso? Ou perturbar a instrução do processo, nomeadamente a prova, se o arguido não tem qualquer tipo de acesso à dita? Ou possibilitar a actividade criminosa ou perturbar gravemente a ordem e a tranquilidade públicas? Não se vê que qualquer destes fins possa ficar prejudicado por via de uma entrevista.

Claro que a entrevista pode dar da prisão do arguido uma versão diferente da que foi veiculada pela acusação. E depois? Somente em ditadura é que a “quebra pública” do consenso (falso) existente pode constituir um factor de perturbação da ordem pública. Em 1958, a entrevista de Humberto Delgado ao jornal República constituiu sem dúvida uma grave perturbação da ordem fascista. Mas em democracia não há lugar a isso. Não pode o poder político considerar que uma entrevista constitui uma grave perturbação da ordem pública, como também os magistrados não podem supor que uma simples entrevista perturba o processo ou põe em causa a ordem e a tranquilidade públicas. A magistratura tem de se democratizar, de se habituar a conviver com o contraditório imposto pela opinião pública e pelos próprios visados nos processos por ela julgados. Não há nisso qualquer mal, desde que respeitadas as regras elementares da convivência social.

A justiça não pode refugiar-se no seu casulo, como coisa dos magistrados, de que a sociedade só conhece o resultado. Ela tem de estar preparada para a crítica e para a fundamentação adequada ( e também convincente) das decisões que toma, tanto mais que a maior parte delas, digamos mesmo, a esmagadora maioria delas, não decorre de uma aplicação matemática (puramente lógica) da lei (isso somente acontece em casos muito contados) mas de uma valoração em que muitas vezes intervêm factores eminentemente subjectivos.

Se os fundamentos que, do ponto de vista do juiz de instrução criminal, ditaram a prisão preventiva não são postos em causa pela concessão de uma entrevista a um jornal, já terá de admitir-se, em tese, que da razão de ser de outras medidas de coacção, nomeadamente a imposição ou a proibição de certas condutas, pode resultar a proibição de conceder entrevistas.

Assim, o juiz pode impor ao arguido (se houver indício de crime doloso a que corresponda pena de prisão de máximo superior a três anos), a obrigação, entre outras que para o caso não interessam, de não contactar, por qualquer meio, com determinadas pessoas.

Só que esta proibição de contactos – se é que existe no caso concreto – não pode assumir a natureza de uma proibição genérica. Não se pode configurar a medida de coacção, de proibição de contactos, de modo a abranger toda uma categoria profissional, como nalguns casos já vimos decretado: por exemplo, a “proibição de o arguido contactar magistrados judiciais ou do ministério público” é manifestamente inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade. Causas específicas do processo podem determinar que o arguido esteja proibido de contactar certos magistrados - a, b e c - mas não todos. O mesmo se diga relativamente à proibição de contactar jornalistas ou de conceder entrevistas.

A proibição de o arguido se explicar perante a opinião pública, nomeadamente quando existe uma fortíssima campanha de opinião contra a sua pessoa, com base em indícios postos a circular por quem conhece o processo, não só deve ser permitida como se justifica plenamente à luz do que vem sendo tornado público. Além de que nem sequer se poderá dizer que essa entrevista visa por em campo uma campanha contrária à que diariamente tem sido veiculada por meios de comunicação próximos das teses da acusação, tanto mais que o jornal em questão tem dado mais acolhimento a estas teses do que às opostas. Portanto, a proibição não pode verdadeiramente fundar-se no receio oculto, não explicitado, de que haja uma inversão da opinião pública, susceptível de descredibilizar o processo, não por via das palavras de quem se defende, mas por o processo não assentar em factos suficientemente sólidos para se aguentar pelos seus méritos.

A justificação da proibição tem, pela natureza e dimensão desta, de ser compatível com o direito fundamental do arguido (liberdade de expressão)  no caso sacrificado para protecção de um interesse constitucionalmente protegido. Se não for esse o caso, se o interesse constitucionalmente protegido, para se manter actuante e eficaz, não exigir o sacrifício do exercício daquele direito, então a proibição não pode ser decretada .

E não havendo, como juridicamente parece não haver, justificação para a proibição no quadro das medidas de coacção decretadas, caberá ao director geral dos serviços decidir, em conformidade com as leis e os regulamentos em vigor, tendo sempre em conta os princípios e normas constitucionais acima citados.

1 comentário:

Francisco Clamote disse...

Para quem não tem, alegadamente, "especiais conhecimentos de processo penal ou de direito penitenciário", não está nada mal. Eu até suporia o contrário.