CATALUNHA
UMA CONVERSA LIGEIRA E DESCONTRAÍDA
Os meus primeiros contactos com a Catalunha e os catalães remontam ao
século passado.
Em 1968, em Exeter, no sul de Inglaterra (Devon), conheci
pela primeira vez catalães. Frequentávamos um curso de Direito Comparado, promovido
pela Faculdade Internacional de Direito Comparado, com sede em Estrasburgo, uma
faculdade criada em 1961 sob a égide da Associação Internacional de Direito
Comparado.
Esta faculdade, animada pela forte convicção de que a
formação de um jurista nacional não seria completa se não conhecesse o direito
estrangeiro e as suas particularidades, recebia alunos de toda a Europa, do
Leste e do Ocidente (então, em plena Guerra Fria) e também de fora da Europa,
do continente americano, do Médio Oriente e um ou outro da África. Tinha professores
de renome internacional das principais universidades europeias do Ocidente e do
Leste e um ou outro americano.
Um dos grandes animadores destes cursos de Direito Comparado
era o catalão Sola Cañizares, Director do Instituto de Direito Comparado de
Barcelona, subitamente falecido em1965, depois substituído nas funções
administrativas correntes pela viúva, Madame Solá, como era vulgarmente
conhecida.
Nesse curso de 68, no Sul de Inglaterra, havia cerca de dez
espanhóis – de Madrid, quase todos ligados à Opus Dei e às correntes
desenvolvimentistas que por essa época dominavam a política franquista; de León,
franquistas, muito ligados ao regime; de Andaluzia, Málaga, muito interessados
no desenvolvimento turístico do Sul de Espanha; e da Catalunha, quase todos “catalanistas”,
muito ressentidos com o franquismo, clamando a toda a hora (nas nossas
conversas) pela autonomia da Catalunha e pela divulgação (estudo e ensino) da
língua, apenas falada em ambientes domésticos, e reprimida pelo regime com mais
ou menos intensidade consoante as épocas e os lugares.
Desse convívio de cerca de um mês e meio, fiquei com a
impressão de que os espanhóis em geral conheciam pouco ou quase nada de
Portugal, nessa altura ainda governado pelo velho ditador.
Como é que aquele rectângulo Ocidental da Península era
independente, como conseguiu resistir e impor-se a Castela e depois ao império
Espanhol era assunto que eles não abordavam, nem mesmo os catalães.
Dez anos mais tarde, em Julho de 1978, fui a Moscovo, via Madrid e Budapeste,
para participar durante cerca de uma semana numa reunião do Conselho Mundial
para a Paz e Cooperação, integrado na delegação portuguesa do CPPC. Esta organização
era animada por comunistas, socialistas e independentes de vários matizes e promovia, nos tempos da Guerra Fria, reuniões em várias partes do mundo de apoio
ao desarmamento ou limitação do armamento nuclear e também de apoio à luta
contra o apartheid e ao desenvolvimento dos povos autodeterminados e
independentes recentemente saídos de situações coloniais.
Pois bem, a caminho de Moscovo, durante a nossa estadia em
Budapeste, onde pernoitámos, nas instalações do aeroporto, tive oportunidade de
conversar longamente com a delegação catalã, que, pelos vistos, vinha desde
Madrid fazendo o mesmo percurso que nós.
Em Espanha viviam-se então os primeiros tempos da “Transição”.
Tinha havido eleições em meados de 1976, a Constituição havia sido aprovada
pelas Cortes e submetida a referendo em Dezembro daquele ano. Adolfo Suarez,
ainda longe das dificuldades que viria a conhecer três anos depois, governava
como grande senhor de Espanha.
Claro que as nossas primeiras conversas incidiram, como não
poderia deixar de ser, tanto sobre o papel pioneiro de Portugal na “libertação”
dos regimes fascistas que governavam a
Península (situação com que os espanhóis de todos os matizes conviviam muito
mal, pois “estava escrito” que o derrube do fascismo na Península seria obra
dos espanhóis, ficando Portugal para segunda
núpcias – uma espécie de Haiti, da Europa ocidental), como sobre as
substanciais diferenças que de um e do outro lado conduziram à democracia.
Embora os catalães compreendessem que em Espanha se poderia
ter ido um pouco mais longe, achavam que seria arriscado exagerar na “limpeza
do passado”, dado o poder quase intocado do franquismo e da direita em geral. E
apontavam o caso de Portugal, como exemplo do que não se deveria fazer.
É claro que esta argumentação sofria da nossa parte a maior
contestação, já que o essencial da discussão tinha a ver com a organização do
pós fascismo. Transição ou Revolução? Continuação das estruturas do Estado
fascista, com eleições e liberdade de imprensa, ou destruição e desmantelamento
do Estado fascista? Lá lhes explicámos que esse foi um longo e importante
debate da esquerda portuguesa durante o fascismo, acabando o 25 de Abril por
consagrar esta última via, bem diferente da veio a ser seguida em Espanha. Entre outras consequências, não havia comparação
(como ainda hoje não há) entre a Constituição portuguesa e a espanhola, não
sendo por isso correcto afirmar-se que em 1978 a via seguida por Portugal tinha
colocado o nosso país, do ponto de vista democrático, numa posição pior que a
da Espanha. Bem pelo contrário.
A conversa azedou depois um pouco quendo eles quiseram
comparar a Catalunha a Portugal, a propósito da autonomia que a nova
Constituição consagrava e do reconhecimento da Catalunha (ao tempo sem conteúdo
prático diferenciador) como comunidade histórica.
Disseram eles, Portugal só foi verdadeiramente independente a
partir de 1640, antes disso não havia independência, era um reino submetido ao
Império “espanhol”, e essa independência do século XVII deve-nos muito; sem nós
Portugal não seria hoje um país independente. E, para nosso espanto, concluíram:
o que nos faltou a nós foi um Brasil, se tivéssemos tido um Brasil, também
seríamos independentes.
Fiquei logo com a impressão de que estava a discutir com alguém
que usava uma lógica muito próxima da do adepto de futebol, apesar de todos serem universitários.
Por isso contra-ataquei na justa medida:
Essa de só sermos independentes a partir de 1640 nunca tinha
ouvido. Vocês conhecem Fernão Lopes? Não conhecem, é pena, e é empobrecedor não
conhecer um dos maiores escritores europeus, porventura o maior, do século XV.
Se conhecessem não diriam essas coisas.
Quanto ao papel desempenhado pela Catalunha na restauração da
nossa independência, devo francamente dizer-vos que o que se passou só atesta a
vossa pouca importância. Além de a Catalunha se ter colocado logo sob a
protecção da França, e de para todos os efeitos não passar de um protectorado,
a Espanha não podendo responder em simultâneo aos dois lados opostos da
Península, escolheu o que era mais fácil e mais rápido de derrotar, para depois
ajustar contas connosco, supondo que então disporia de mais meios. Só que mais uma vez se
enganou, nós não éramos a Catalunha, éramos uma nação com um sentimento de
autonomia e independência fortemente enraizados, tanto assim que a Espanha
tentou, em, pelo menos, oito batalhas, durante 28 anos derrotar-nos e não
conseguiu.
Até chegarmos ao Tratado de Lisboa de 1668 foi preciso lutar
muito. Os espanhóis não tiveram em Portugal a vida fácil que encontraram na Catalunha.
Quanto a vocês não terem um Brasil, como poderiam tê-lo se
nunca fizeram nada por isso? Se fosse um basco ou um galego a dizer isso ainda
poderia compreender dado o grande papel que uma e outra região desempenhou na
expansão espanhola. Agora, a Catalunha, francamente, que sempre deu muita mais
atenção ao Mediterâneo do que ao Atlântico, como poderia ter um Brasil? Têm uma
estátua do Colombo no fim das Ramblas, como poderiam ter do Fernão de Magalhães
ou do Cabrillho, e já é muito!
E assim a acabou a conversa…
A partir de 1988, vêm as viagens à Catalunha, sempre
de lazer. Várias.
Enfim, não desgostei de Barcelona, achei piada a Figueres, mas
gosto mais de Madrid. Da cidade, dos museus, das livrarias, da gastronomia. Não
“torço” pelo Barça nem pelo Madrid. O Benfica já ganhou a ambos o que mais lhes
doeu perder.
Assisto um pouco indiferente aos acontecimentos da Catalunha,
curioso por saber no que vão dar. Entre a tradicional brutalidade castelhana e
a “insustentável leveza” dos independentistas, espero sentado para ver no que
dá.