O ARIZONA
Na América, Barack Obama finalmente teve a coragem de avançar com a decisão de contestar judicialmente uma lei xenófoba aprovada no Arizona contra os imigrantes ilegais, mesmo sabendo que a maioria dos americanos, não apenas os daquele Estado, mas os de toda a América, a aprovavam ou encaravam a sua vigência com relativa benevolência.
Exactamente no mesmo dia em que a lei iria entra em vigor, a juíza Susan Bolton inviabilizou, por inconstitucionalidade, a vigência dos artigos mais contestados, nomeadamente aquele que obrigava a polícia a comprovar o estatuto migratório de uma pessoa retida pela prática de qualquer falta ou delito, como, por exemplo, a violação de uma lei de trânsito ou de um regulamento municipal, sempre que a dita pessoa, na avaliação da polícia, tenha aspecto ou lhe pareça suspeita de haver entrado ilegalmente no país, ficando a polícia com o direito de manter essa pessoa sob custódia pelo tempo suficiente para fazer a respectiva comprovação.
Esta lei permitia, no fundo, que uma pessoa, que se tivesse esquecido dos seus documentos em casa ou no hotel, fosse presa, desde que suspeita de haver entrado ilegalmente no país. E como um branco “caucasiano” com aspecto normal nunca é suspeito de coisa nenhuma, obviamente que a lei se aplicaria principalmente aos hispânicos mestiços, aos árabes, eventualmente a alguns orientais.
Tal lei, analisada do ponto de vista dos sistemas normativos europeus continentais, não tem nada de muito especial, já que a identificação de uma pessoa pode ser exigida sem qualquer pretexto, mas do ponto de vista do direito anglo-saxónico, onde as questões relacionadas com a identificação estão sujeitas a regras muito estritas ditadas pelas concepções liberais e individualistas que norteiam aqueles regimes jurídicos, a lei do Arizona constituía uma enormidade jurídico-política. Tanto mais que ela “prejudica os estrangeiros legalmente residentes nos EUA, inclusive os próprios cidadãos norte-americanos, na medida em que afecta a sua liberdade enquanto se comprova o seu estatuto”, argumentação que o tribunal utilizou para a considerar inconstitucional.
Certamente que uma longa batalha jurídica (e política) se vai seguir até que o Supremo Tribunal Federal decida em última instância. E até lá o sheriff Arpaio vai ter que conter os seus ímpetos mais chauvinistas…
Enfim, o que este triste episódio tem de mais importante não é tanto o facto de ele demonstrar quão difícil é ainda nos Estados Unidos a convivência racial, mesmo quando a conflitualidade se disfarça sob outros pretextos, mas antes por ser esta a primeira vez que Obama, desde o início do seu mandato, toma uma decisão conforme às suas convicções, sem atender a compromissos. Em todos os anteriores combates em que participou (sistema de saúde, regulação do sector financeiro, guerra do Afeganistão, etc.), Obama procurou sempre o compromisso, tendo, de cedência em cedência, alienado grande parte dos apoios com que contava à partida sem ter conseguido angariar nenhuma simpatia por parte dos que sempre o hostilizaram. E não há nada pior num país como a América do que as promessas incumpridas, nomeadamente quando havia à sua volta uma enorme expectativa.
A história americana destes últimos oitenta anos, ou seja, desde Roosevelt, demonstra que somente os Presidentes que foram capazes de impor o seu programa, qualquer que fosse a correlação de forças no Congresso, foram verdadeiramente apoiados e respeitados, independentemente das ferozes oposições que suscitaram.
O caso de Roosevelt é paradigmático. Pelo menos até que a sorte das armas lhe tenha criado a aura de grande vencedor, Roosevelt deparou-se sempre com uma oposição que o flagelou sem contemplações. Mas nem por isso deixou de adoptar as medidas mais fraccionantes para largos sectores da mentalidade americana. Algumas delas foram tão importantes que se mantiveram eficazes durante várias décadas e foram inclusive ampliadas pelas presidências subsequentes.
Pois bem: por muito estranho que pareça, Obama nunca teve Roosevelt por paradigma, mas Reagan! A ideia de que Reagan “uniu” a América pelo compromisso sempre o fascinou. Explicando melhor: Obama não ficou fascinado pela política de Reagan. Mas pelo modo como Reagan fazia política. Para sermos mais claros: o que fascinou Obama não foi o conteúdo da política de Reagan, mas a forma.
É claro que a tentativa de “copiar” Reagan pela esquerda estaria inevitavelmente votada ao fracasso. A esquerda americana nem actualmente nenhuma esquerda em qualquer país realmente importante dispõem dos meios que a direita tem ao seu alcance para fazer passar as suas mensagens. A hegemonia, no sentido gramsciano do termo, pertence à direita…
Reagan foi o menos compromissório de todos os presidentes americanos dos tempos modernos. O mérito de Reagan esteve em ter tido a capacidade de traduzir em ideias muito simples, apreensíveis por milhões de americanos incultos, as teses veiculadas pelas correntes politico-filosóficas mais reaccionárias que mais se aproximavam com certos aspectos da ideologia fundadora dos próprios Estados Unidos. Reagan fê-los acreditar que o Estado é em si uma coisa má, que gasta mal o dinheiro dos contribuintes, que as ajudas concedidas a quem precisa só servem para fomentar o ociosidade, se não mesmo a malandragem…e por aí fora. E o seu grande mérito foi, sem dúvida, o de ter feito acreditar nisto mesmo aqueles que mais beneficiados tinham sido até então com as políticas rooseveltianas do New Deal. Portanto, Reagan não uniu a América. Reagan enganou uma parte da América.
Provavelmente, já é tarde para Obama tirar as consequências devidas destes quase dois anos de mandato…