UM PERCURSO E UM OBJECTIVO
Este conceito de “ajustamento estrutural” de importação anglo-saxónica começou a vulgarizar-se, via FMI, a partir de finais da década de oitenta e princípios da década de noventa.
Iniciava-se então em grande escala o domínio das ideias neoliberais, politicamente impulsionadas por Thatcher e Reagan, baseadas nas doutrinas neoconservadoras que desde a década de trinta fervilhavam em certos meios académicos americanos sem contudo conseguirem impor-se, e nas doutrinas económicos liberais importadas de intelectuais judeus, oriundos de Viena, via Inglaterra, onde também começaram por não ter êxito, para depois se instalarem na América, na Escola de Chicago, com grande sucesso.
O ascenso destas doutrinas coincidiu como não podia deixar de ser com a profunda crise do “socialismo real”, politicamente muito debilitado desde que deixou de ter capacidade para competir económica, socialmente e ideologicamente com o Ocidente, e também, é bom não esquecê-lo, com o desenvolvimento da aliança táctica entre a China e os Estados Unidos, promovida com assinalável êxito por Mao e Nixon.
À medida que o “socialismo real” se aproximava do seu fim, primeiro com a desagregação dos regimes socialistas nas “democracias populares” e depois na própria “União Soviética”, cresciam de importância nos meios capitalistas ocidentais as doutrinas neoliberais destinadas a pôr um ponto final na intervenção do Estado na vida económica e acabar com qualquer tipo de “engenharia social”, de modo a deixar ao capital via livre para poder actuar com total liberdade nos quatro cantos do mundo em todos os domínios, sem excepção, evidentemente, daqueles que desde o fim da Segunda Guerra Mundial estavam vedados à iniciativa privada.
Para isso era necessário assegurar a disciplina fiscal, reduzir os gastos públicos, fixar as taxas de juro e de câmbio pelo mercado, abrir sem restrições os países ao investimento estrangeiro, assegurar a plena liberdade comercial, desregulamentar as actividades económicas e financeiras, sem esquecer, obviamente, a actividade laboral e privatizar as empresas públicas. E foi o que se foi fazendo por toda a parte, da África à Ásia, passando pela América Latina.
A primeira vítima desta liberalização em larga escala foi a África subsahariana. Muito endividada nos finais da década de oitenta por força da contracção de múltiplos empréstimos que o dinheiro barato favorecia para financiamento de projectos, por vezes sem qualquer racionalidade económica, sugeridos ou apadrinhados pelo Norte (e sempre executados por empresas europeias ou americanas), a África quando a maior parte das matérias-primas baixou de preço, petróleo inclusive, e os juros subiram, ficou sem possibilidade de pagar as dívidas. E então lá veio o “ajustamento estrutural” limitar drasticamente a já de si incipiente despesa pública, abrir o mercado aos produtos estrangeiros, deixando as indústrias locais sem protecção aduaneira, privatizar as empresas públicas, ficando a actividade económica dos respectivos países entregue, no essencial, à exportação de matérias-primas, com cuja receita se ia pagando a dívida.
Depois seguiu-se a América Latina que, por ter outra capacidade produtiva, resistiu melhor do que a África, salvo no que respeita à liberalização de capitais, área onde a devastação foi total (basta recordar o que se passou na Argentina, no Equador e mesmo no Brasil, no segundo mandato de FHC).
Nos Estados Unidos, apesar da força da propaganda neoliberal e neoconservadora de que Reagan foi, no plano político, o principal arauto, levou algum tempo a desmantelar as conquistas do New Deal de Roosevelt e da Grande Sociedade de Lyndon Johnson. Mas como sempre houve uma tradição mais liberal do que na Europa, o neoliberalismo acabou por impor-se em larga escala. No entanto, há áreas onde não conseguiu penetrar tanto quanto pretendia, como é o caso da segurança social, e certos domínios da saúde, não apenas em consequência da tímida reforma de Obama, mas também do que vinha de trás e se manteve (Medicare e Medicaid).
É bom não esquecer que na presente campanha eleitoral americana é ainda esta questão que está no centro do debate: o papel do Estado na economia e até na sociedade. E como a pressão para que o Estado se “encolha” é muitíssimo forte, a eventual vitória democrática não vai ficar imune às consequências deste debate.
Na Europa, como se sabe, este combate do capital pela sua total liberdade começou na Inglaterra com Thatcher e teve, no começo, como seu principal alvo os sindicatos. Atingidos estes em pontos fundamentais da sua actividade e perdida grande parte da força proletária que os animava muito por via da deslocalização industrial que entretanto se ia fazendo, estavam criadas as condições para que uma mudança em larga escala do panorama económico inglês tivesse lugar. Ocorreram as privatizações em praticamente todos os domínios, flexibilizou-se o mercado laboral e reforçou-se incomensuravelmente o poder do capital financeiro por força de múltiplas desregulamentações que foram sendo feitas.
No resto da Europa o movimento processou-se gradualmente em duas fases distintas correspondentes a outras tantas áreas geográficas.
No leste, depois da Queda do Muro e da desagregação da URSS, implantou-se por todo o lado aquilo a que com toda a propriedade se chamou o capitalismo selvagem. Selvagem pela total liberdade dada ao capital, mas selvagem também pelo saque operado sobre os bens públicos, até então colectivos, fenómeno que está na origem dos famosos oligarcas. O saque foi mais evidente na Rússia de Yeltsin, embora tenha existido por todo o lado, posto que com menor amplitude.
No oeste, a implantação do neoliberalismo ficou a cargo de Bruxelas e como passou a ser regra no nosso tempo as doutrinas económicas, para que pudessem ser aplicadas à risca, foram impostas por lei. Foi o que aconteceu com a ratificação do Tratado de Maastricht e com os demais que se lhe seguiram, nomeadamente o de Lisboa.
Como o Ocidente é profundamente hipócrita, assistiu-se a número bem interessante: à medida que o neoliberalismo se ia implantando em todos os domínios da actividade económica, desregulando e liberalizando, ia-se simultaneamente assistindo a uma falsa exaltação do Estado social como especificidade tipicamente europeia. À medida que o Estado social ia cedendo, de modo muito mais notório nos países em dificuldades, ia-se fazendo a propaganda de que essa era a grande matriz europeia.
Em alguns países da Europa comunitária não existe Estado social, noutros vai cedendo lugar a um Estado meramente assistencial e por todo lado, mesmo nos mais ricos, o trabalho e os direitos a ele ligados tem sido alvo de um ataque em grande escala que se nota mais nos países periféricos, mas que existe por todo o lado.
Ajustamento estrutural, portanto, não significa ajustar os rendimentos de todos às necessidades colectivas, significa antes ajustar os rendimentos dos economicamente mais fracos às “necessidades” insaciáveis de lucro de um pequeno número.
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