sábado, 19 de janeiro de 2013

O DEBATE SOBRE A REFORMA DO ESTADO

 "REFUNDAR O ESTADO" OU RENEGOCIAR A DÍVIDA?
 
Com as esperadas participações de conhecidos representantes do “Bloco Central” e de outros que no Outono da vida se têm aproximado das posições de direita numa trajectória que acima de tudo os envergonha e lhes deixa uma mácula que o tempo já não está em condições de limpar, a direita encenou um simulacro de debate sobre a “Refundação do Estado” no seio da sociedade civil, representada pelos “Bentos” e pelos “Nabos” do costume, mais os tais que agora se acolheram na trincheira do colaboracionismo, supondo que assim asseguraria a legitimidade para as conclusões que o Moedas já trazia debaixo do braço quando abriu a conferência.
 
Puro engano. Ninguém de boa-fé poderá aceitar as conclusões de um falso debate fundado num Relatório elaborado pelo FMI com a colaboração do Governo, representado por Portas e Gaspar, mais os seus jovens turcos, em que o Fundo para além dos muitos epítetos com que tem sido mimoseado no seu papel de impulsionador e depois guardião do neoliberalismo desempenhou agora o de barriga de aluguer, apondo, a troco de dinheiro, a sua chancela num documento cujas grandes linhas o Governo havia previamente definido.
 
Se esta actuação do Governo – a tal tentativa de adesão da “sociedade civil” ao Relatório e a sua pretensa elaboração por uma entidade internacional - serve para ilustrar a falta de legitimidade que os factos demonstram o Governo já não ter, ela serve também, ou acima de tudo, para pôr a claro até onde o Governo está disposto a ir no louco fundamentalismo que anima a sua actuação. Desemprego de milhares de pessoas a juntar ao quase um milhão de desempregados, cortes brutais nos salários e nas pensões, aumento desmedido das taxas moderadoras na saúde, propinas mais caras são apenas alguns exemplos de medidas que o Governo se propõe de ânimo leve pôr em prática sem a menor preocupação pelos efeitos socialmente devastadores resultantes da sua aplicação.
 
Dizem os representantes bem-pensantes da direita plutocrática que o facto de Governo revelar falta de jeito para tratar destes assuntos nos não deve impedir de discutir um problema sério que existe na nossa sociedade, a saber: a existência de um Estado exagerado incomportável pela nossa economia que urge reajustar ao tamanho das nossas possibilidades.
 
Esta é como se sabe a conversa sobre o “vivermos acima das nossas possibilidades”. Primeiro, começou por aplicar-se a nós, aos cidadãos, impondo-nos cortes nos salários e nas pensões, desemprego em massa e aumento de impostos, para justificar a recapitalização dos bancos, mas também para pagar as rendas escandalosas concedidas às empresas energéticas, bem como as não menos escandalosas prestações das parcerias público-privadas tanto no domínio das obras públicas como no da saúde, além de todos os escandalosos negócios que o capital financeiro e as grandes empresas de construção civil pressionaram o Estado a fazer, para já não falar na vigarice dos banqueiros do BPN e nas múltiplas asneiras de política económica que os diversos governos foram cometendo depois da adesão à “Europa” quase sempre a troco de vantagens oportunistas que em regra se esvaziavam mal se produzia o efeito eleitoral que tinham em vista alcançar.
 
Agora é essa mesma conversa aplicada ao Estado. Também o “Estado vive acima das suas possibilidades”, gastando mais do que aquilo que recebe. Sem esquecer que, nesta conversa, somente os lucros das grandes empresas, os salários e os prémios dos executivos e os honorários dos grandes escritórios de advogados “amigos do Relvas”, como outrora já foram amigos de outros, “vivem dentro das nossas possibilidades” e convivem bem com centenas de milhares de desempregados, pensionistas de miséria e o empobrecimento imparável de uma frágil classe média, é bom que se perceba que não se pode participar num debate falseado à partida por assentar em pressupostos criados, ou fortemente amplificados, por uma política que visa exactamente a situação a que se chegou para assim ter uma base material pretensamente objectiva que lhe permita completar a execução do programa que o PSD e o CDS esconderam dos portugueses durante a campanha eleitoral, ludibriando-os com falsas promessas.
 
 
A recusa de participar discussão da “Refundação do Estado” nas bases e no contexto fixados pelo Governo não resulta tanto da falência técnica do Relatório manifestamente assente em alguns dados de facto errados ou de uma errada e tendenciosa interpretação dos factos que lhe servem de base, nem sequer de as suas conclusões terem sido previamente encomendadas pelo Governo. Resulta fundamentalmente do facto de não se poder participar numa discussão que já tirou as conclusões antes da discussão se iniciar e que assenta num contexto propositadamente criado para propiciar e favorecer as conclusões cuja execução o Governo encara como única saída possível para a superação da crise em que o país está mergulhado.
 
Trata-se, portanto, de uma discussão assente em pressupostos tidos por inalteráveis quando o que está em causa é exactamente o questionamento desses pressupostos e a necessidade urgente da sua alteração. Ou seja, o que interessa ao país é antes de mais inverter a actual política, fomentando uma política de crescimento que rapidamente o permita regressar a um patamar de riqueza, no mínimo, equivalente àquele que existia antes da imposição das políticas de austeridade. E em segundo lugar, o que interessa a Portugal e aos portugueses não é o aprofundamento das desigualdades que desde há uns anos a esta parte se tem acentuado na sociedade portuguesa quer por via da deflação salarial e do desemprego quer em consequência da redução ou mesmo da eliminação dos direitos sociais. O que interessa aos portugueses é exactamente o contrário. E é nesse sentido que tem de ser orientada qualquer discussão que tenha por objecto a saída da crise. Essa saída terá de passar não com uma diminuição das despesas com o Estado social mas por um substancial embaratecimento do serviço da dívida. A dívida e o seu custo, que tiveram uma subida exponencial com a crise e, principalmente, com as políticas recessivas impostas pela Troika, serão a curto prazo insustentáveis. E a única forma de tornar a dívida sustentável sustentável no interesse de todos, dos portugueses e dos credores, é renegociá-la, cancelando-a parcialmente e indexando o pagamento da parte restante ao crescimento da procura externa.
 
Ora este relatório como tantos outras acções da Troika e do Governo visa exactamente o contrário e insere-se numa ofensiva contra o Estado social, deixando em sua substituição um Estado assistencial com o cortejo de misérias, de desigualdades e da ausência de direitos que lhe andam associados, bem como contra os direitos do trabalho e contra partes significativas da procura interna com vista a criar um Estado neoliberal “bacteriologicamente puro”.
 
A “Refundação do Estado” que o Governo e o FMI têm em vista consiste, portanto, na substituição do actual Estado por um Estado mínimo que deixe ao capital privado campo livre no plano económico e social de modo a que as funções antes exercidas pelo Estado nestes domínios se transformem agora numa fonte de lucro, quer sob a forma de apropriação dos respectivos meios de produção, quer sob a forma, porventura mais grave, de contratos de gestão ou concessão por via dos quais o Estado se obrigue a pagar ao capital as funções que este passará a desempenhar em sua substituição.
E isto os portugueses não podem aceitar.

3 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rogério G.V. Pereira disse...

Excelente post. Não podemos aceitar, de facto. Mas gostaria de deixar a sugestão de que desenvolvesse o tema "...a única forma de tornar a dívida sustentável no interesse de todos, dos portugueses e dos credores, é renegociá-la, cancelando-a parcialmente e indexando o pagamento da parte restante ao crescimento da procura externa." Porquê indexa-la ao crescimento da procura interna? Porque não ao crescimento do produto ou das exportações?

JM Correia Pinto disse...

Eu disse da procura externa, fundamentalmente constituída pelas exportações. Tentarei num outro post desenvolver o assunto. Não se deve tratar da mesma forma a dívida interna e a dívida externa. São realidades distintas e tem consequências diversas. Mas também nem toda a dívida interna merece o mesmo tratamento. Tentaremos voltar ao assunto.