O QUE SE ESTÁ A PASSAR…
Já toda a gente disse o que havia e o que não havia a dizer a
propósito da praxe. Da minha experiência de docência universitária durante
várias décadas tenho por certo que o alargamento da praxe para além das “fronteiras
de Coimbra” tem a ver com a criação de novas universidades, principalmente
universidades privadas, a partir de 1980.
Sem tradições universitárias que obviamente não poderiam ter
mas das quais necessitavam para se credibilizar, as praxes e outras
manifestações académicas, como os conhecidos agrupamentos de saltimbancos a que
pomposamente chamam “tunas”, foram incentivadas e financiadas pelas próprias
escolas que tudo faziam para que os seus estudantes se parecessem com o
“estudante de Coimbra”. Uma figura mítica de contornos mal definidos, salvo os
que resultam de durante muitos séculos, para o bem e para o mal, Coimbra ter sido a
única escola de ensino superior existente no país, colónias incluídas,
nomeadamente o Brasil.
Enquanto a Universidade do Porto e a Clássica de Lisboa
criadas pelo Governo Provisório em 1911 se demarcavam da de Coimbra pela
rejeição dos arcaísmos praxistas, as novas, muitas delas sem nada que
particularmente as recomende, e sem tradições que obviamente não poderiam ter,
salvo os tristes exemplos das “licenciaturas à Relvas”, copiaram, deturpando e degradando o original, o que de mais arcaico Coimbra tinha para oferecer.
A minha vivência como estudante e docente em Coimbra durante
quase toda a década de sessenta – de 1962 a 1969 – diz-me que a geração à qual
pertenci, ou melhor na qual me integrei (já que havia “outras gerações da mesma idade” nessa época), encarou a praxe numa
dupla perspectiva: como algo de arcaico a banir logo que possível mas
simultaneamente algo que, enquanto existia, poderia ser aproveitado como
instrumento de luta contra a ditadura naquilo que eram as suas manifestações
mais comunitárias (as Repúblicas, mas não só).
E foi assim que naquela década o Dux Veteranorum sempre foi, como então se dizia, “Um gajo da malta”. O saudoso Ciniro
comprometido com a luta antifascista dos estudantes e, mais tarde, Carvalho
Santos, que sem hesitações decretavam a abolição da praxe sempre que um
“acontecimento político” o exigia, como por exemplo o Dia do Estudante e em
tantos e tantos outros casos, além do “luto académico” decretado na crise de
69.
Por outro lado, as grandes manifestações colectivas da praxe
académica, como as “latadas” e a “tomada da Bastilha”, eram aproveitadas por
muitos estudantes como momentos de crítica irónica ao regime, as primeiras, ou
como grandes manifestações silenciosas de milhares de estudantes contra o
fascismo como aconteceu com as “trupes” de 25 de Novembro de 1964 e 1968
comemorativas da “Tomada da Bastilha” – manifestações a que a PIDE teoricamente
se não poderia opor nem proibir…por se tratar de uma “praxe académica” embora subvertida.
As Repúblicas eram verdadeiros centros comunitários de vida
democrática, de boémia e cultura, sem hierarquias estúpidas, onde desde o mór
até ao mais recente caloiro se forjavam sãs camaradagens e amizades que duravam
pela vida fora. Foi o Conselho das Repúblicas que durante toda a década de
sessenta propôs e patrocinou a lista unitária de esquerda à “Associação
Académica” tendo ganho todas as eleições contra os fascistas de então, hoje
“respeitabilíssimos democratas”.
E os praxistas, os verdadeiros praxistas, onde estavam e o
que faziam? Havia um núcleo relativamente restrito, politicamente indiferente,
que fazia trupes para praxar os caloiros “desprotegidos” que encontrava na rua
fora de horas, cuja sanção máxima consistia, como se sabe, no “rapanço” e havia
também os “julgamentos” numa ou noutra república (poucas) que poderiam terminar
numa condenação, sendo a mais grave o dito “rapanço”. Não se metiam com as
caloiras, nem as estudantes eram minimamente incomodadas, salvo uma ou outra
chamada de atenção provocada por alguma irregularidade de traje.
Lembro-me de dois famosos praxistas com quem às vezes nos
cruzávamos nas noites de Coimbra, um deles tinha um problema com os gatos e o
outro estava casado com a estudante mais escultural de toda a Universidade. Ela
passava e todo o mundo parava a contemplar aquelas mamas fantásticas como nem
em Hollywood havia. E como na época não havia “truques”, tudo era como “Deus
deu”, nós olhávamos uns para os outros e dizíamos “como é possível que este
tipo ande nas trupes e deixe aquela mulher sozinha…”
Claro que a direita cultivava a praxe e a tradição, mas com
excepção do Orfeão Académico, por ela maioritariamente dominado, tinha poucas
ou nenhumas possibilidades de pública e colectivamente a exibir nos grandes
acontecimentos académicos, dominados por um vida cultural relativamente intensa
da qual a direita estava manifestamente arredada. A direita não tinha voz
executiva na Associação Académica, nem suas secções artísticas e culturais, não
tinha voz no Teatro académico (TEUC E CITAC), estava em franca minoria nos
órgãos emblemáticos da praxe, como o Conselho de Veteranos e o Conselho das
Republicas, não escolhia o Dux Veteranorum, enfim, defendia a praxe…mas a
hegemonia era da esquerda. Desde a linguagem à arte, passando pelos costumes
quem estava na defensiva eram eles e quem marcava o ritmo e agenda, como hoje se
diz, éramos nós.
Apesar desta vantagem relativa, muito importante no contexto
da época, a praxe, “usada e aproveitada”, estava sob o ponto de mira dos
estudantes progressistas que, por táctica, tiveram que transigir com algumas
das suas mais típicas manifestações e simultaneamente aproveitar-se delas para
aquilo que na época era o mais importante: a luta política. E foi por isso que
a praxe foi suspensa, por luto académico, durante a crise de 1969 e, logo
que as condições o permitiram, abolida com o 25 de Abril tal como já havia
acontecido com a Implantação da República, em 5 de Outubro de 1910.
Como a reacção aos grandes movimentos progressistas tem sido
muito forte no Portugal Contemporâneo - é assim desde 1820 – a praxe voltou a
ressurgir, desprotegida e com mais força, como acontece com a erva daninha que
não é cortada pela raiz. Ressurgiu em 1919 logo depois do sidonismo e ressurgiu
igualmente nos começos da década de 80 quando a direita reaccionária da Aliança
Democrática governava o país.
Hoje, mais de três décadas depois da revoada de novas escolas
superiores surgidas quase todas do nada – isto é da ausência de um suporte
científico que as justificasse – e apenas apoiadas numa procura para a qual não
havia a oferta adequada e conveniente, criadas num clima político onde
gradualmente se foi consolidando o culto do privado e da liberdade numa
caminhada imparável rumo ao estado de natureza, legitimadores de todos os
atropelos e violações à dignidade humana, a começar pela degradação da situação
económica dos milhões de desprotegidos em nome da liberdade dos mais ricos,
tudo isto acompanhado pela expulsão do público da vida pública por acção de
sucessivos governos que aqui e em todo o chamado “mundo ocidental” se têm
empenhado na exaltação do privado e na desvalorização do papel do Estado em
tudo o que pejorativamente denominam “engenharia social”, só poderia dar lugar
a isto – ao uso de práticas indiciadoras e potenciadoras do aviltamento da
dignidade humana como expressão caricatural e trágica das práticas legalizadas da sociedade em que vivemos.
Por isso é que, como noutro lugar já dissemos, não há nada
mais grave do que afirmar que o que se passou no Meco é um “caso de polícia”.
Foi exactamente isso o que se disse do BPN - “um caso de polícia”.
Um caso de polícia significa que no exercício de uma
actividade normal, corrente e aceitável alguém cometeu uma infracção devendo
por isso ser punido. Sendo o BPN um caso de polícia isso quer dizer que o
capitalismo financeiro pode e deve continuar a dominar o mundo com as suas
actividades “normais”, “correntes” e “aceitáveis”.
Com a praxe, guardadas as devidas proporções, passa-se
exactamente o mesmo…
5 comentários:
Camarada Correia Pinto dos tempos do Liceu de Viana
Sigo o teu blog em França que me permite ter uma visāo lúcida sobre o meu triste Portugal de hoje. E o teu post sobre as praxes confirma bem o estado de mediocridade a que por aí se chegou!
Desde Nancy, com amizade
Grande abraço, Camarada.
A luta continua!
Boa Malha
(e bom texto)
Boa! É dar-lhes!
Desde Praga.
Já me manifestei em idêntico sentido, num pequeno comentário. Mas este magnífico post retrata com rigor o que apenas esbocei. Bravo, uma vez mais, meu caro Correia Pinto!
Enviar um comentário