A PROPÓSITO DE UMA OCORRÊNCIA
NA BANCA PORTUGUESA OU A HISTÓRIA DO “pide BOM E DO pide MAU”
Depois do Outono de 2007 e da crise aberta pelo capitalismo
financeiro, primeiramente na América e depois propagada à Europa quer como
consequência dos activos tóxicos adquiridos na banca americana ou cá fabricados
quer como consequência da já famosa “arquitectura político-monetária do euro”,
falsamente denominada “crise da dívida soberana”, a América e depois a Europa
reagiram ao colapso do sistema financeiro e suas associadas a dois tempos. Numa
primeira fase, que durou pouco, a América optou, ainda no tempo de Bush, por
uma solução à Hoover (1929) – deixar falir o que está podre, de que o exemplo
mais emblemático foi o Lehman Brothers – mas cedo arrepiou caminho e, ainda no
estertor de Bush, e depois inequivocamente sob a gestão Obama, optou claramente pela solução
que ficou mundialmente conhecida pela máxima “too big to fail”.
Em poucas palavras: a Reserva Federal emprestava, a custo
zero, aos bancos falidos biliões de dólares para garantir, como então se dizia,
a sua “liquidez” (o que na verdade se estava a garantir era a sua solvabilidade
– activos que pudessem fazer face ao passivo) e assim impedir o colapso do
sistema financeiro no seu conjunto por força da existência de “ratios”
baixíssimos na totalidade dos bancos, em consequência da desregulamentação
permitida por Clinton e da existência generalizada da não mesmo famosa “alavancagem”,
que mais não é do que uma forma legalmente admitida de fabricar dinheiro falso.
Em pouco tempo, numa economia como a americana, primeiramente em crise e depois com uma
recuperação titubeante, embora constante, os bancos assistidos, cujo negócio
como se sabe consiste em fazer dinheiro com dinheiro, não tiveram dificuldade
em ir pagando o que lhes havia sido emprestado a custo zero. Não só pagaram como
ainda fizeram grandes lucros.
Na Europa Comunitária (é mais adequado este termo que o de
União Europeia), os primeiros a sofrer as consequências da crise americana
foram os anglo-saxónicos (Reino Unido e Irlanda) e depois a Holanda e mais
tarde, já como consequência da “crise do euro”, os países da zona euro –
primeiro os do centro, ainda contaminados pela crise americana, e seguidamente
os da periferia, claramente “contaminados” pela avalanche de crédito barato concedido
a partir do centro em consequência dos extraordinários superávides comerciais
(Alemanha) que o a introdução do euro lhe tinha permitido acumular.
Nos países que não pertenciam à zona euro, a solução adoptada
para fazer face à crise oscilou entre a nacionalização com vista à futura venda
do banco depois de relativamente saneado ou a entrada de capital do Estado nos bancos,
quer sob a forma de empréstimos a baixíssimo custo, quer sob a forma de
participação no capital social, embora numa posição diferente e mais
desvantajosa que a dos restantes accionistas. Fosse qual fosse a solução, o que
importava era assegurar a entrada de “dinheiro fresco” no banco que garantisse a
sua solvabilidade. Obviamente, esta actuação dos Estados tinha como
consequência o aumento correspondente da dívida pública e do seu serviço. Ou
seja, eram os contribuintes que em primeira linha eram chamados a responder
pela falência do sistema financeiro não para o reformar e alterar a sua lógica de
funcionamento, mas pura e simplesmente para o salvar e restaurar de modo a que, o mais rapidamente possível,
os bancos afectados pudessem regressar em plenitude ao mercado para continuarem a
fazer o que faziam antes. Durante este processo foi inevitável também
assistir-se a uma maior concentração do capital financeiro, já que o mais “saudável”
ou que mais depressa recuperou aproveitou a onda para absorver o mais fraco,
entretanto parcialmente recuperado à custa do contribuinte ou pura e simplesmente
vendido sem qualquer passivo, que ficava a cargo do Estado.
Neste processo muito complexo quanto às explicações que iam
sendo dadas ao grande público, mas muito fácil de compreender nos seus
objectivos, assume particular relevância a situação dos bancos da zona euro cuja
crise se desencadeou juntamente com a chamada crise da dívida. Aqui é preciso
encarar a situação numa dupla perspectiva: primeiro, a dos bancos dos países
excedentários ou daqueles que, não o sendo, mas cuja dívida era financeiramente
sustentável, e que estavam, uns e outros, muito expostos à dívida dos países
periféricos (pública e privada). Depois de múltiplas hesitações iniciais, aqueles
países acabaram por aceitar no quadro da zona euro uma solução que permitisse
resgatar os países endividados à custa de pesadíssimos programas de austeridade,
mediante a concessão de verbas, da responsabilidade dos Estados, devidamente remuneradas, no essencial
destinadas a assegurar o regular cumprimento do serviço da dívida e a
recapitalizar o respectivo sistema financeiro. Através desta dupla via se
impedia o que mais preocupava os Estados do centro – a bancarrota dos Estados periféricos e a falência dos seus
bancos com as inevitáveis consequências para os credores, que entretanto, por
força deste mesmo processo, através de vários expedientes que não vem agora ao
caso pormenorizar, foram diminuindo a sua exposição à dívida dos países
periféricos e dos seus bancos.
Sem fazer qualquer juízo de valor, que de resto está ao
alcance de todos, sobre as consequências deste processo quanto aos Estados que
a ele ficaram submetidos, as soluções inicialmente encontradas para acudir à
falência dos bancos dos Estados periféricos revelaram-se insuficientes e
incapazes de resolver o assunto. Por outro lado, estas soluções eram
exageradamente onerosas para os respectivos Estados já que eram eles que, em
primeira linha, respondiam pelo reembolso do dinheiro emprestado. Também a este
respeito a zona euro foi hesitando, seguindo um caminho aos zigzagues, acabando
por adoptar uma solução que verdadeiramente ainda não foi posta em prática em
consequência dos múltiplos equívocos que acompanharam a sua criação – a União
Bancária. Esta solução permitia que fossem os próprios bancos a endividar-se
junto de um fundo expressamente criado para o efeito, mediante a aceitação de
um conjunto de imposições.
Nesse caminho aos zigzagues a União Europeia chegou mesmo a
fazer pagar aos grandes depositantes a recuperação dos bancos falidos, embora
esta via só tivesse sido seguida relativamente a um dos países com menor
peso na zona euro (Chipre)m, o que aliás também demonstra bem o nível de covardia e de
perversidade com que a dita organização é capaz de actuar sempre que não encontra
opositor à altura.
Antes do Chipre, a Irlanda teve de assumir a dívida dos
bancos para os salvar, subindo para números elevadíssimos o montante do défice
e a Espanha teve de recorrer a um empréstimo de 30 mil milhões de euros para salvar
La Bankia, com os consequentes aumentos da dívida e do défice.
É neste contexto confuso, caótico, do salve-se o mais forte e
afunde-se o mais fraco, que foi encontrada a solução para a falência do BES –
Banco Espírito Santo. É uma solução original, completamente arbitrária nos seus
contornos e efeitos, de cuja concepção e execução o Governo se alheou, como se
o Estado que ele tem por missão governar pudesse à revelia de tudo e de todos
delegar as suas consequências nos representantes internacionais e nacionais do capital
financeiro, aqui protagonizados pelo BCE, Comissão Europeia e Banco de
Portugal. Tudo isto aconteceu não apenas com a demissão do Governo mas também
com a proverbial covardia do Presidente da República que nunca intervém contra
os poderosos nem contra os poderes fácticos ou institucionais estrangeiros numa
estranha submissão que empequenece o país e desprestigia mortalmente a função. Todavia,
tanto um como outro estão na primeira linha da responsabilização do Estado
português pelo cumprimento do dinheiro que foi necessário, cerca de quatro mil
e quinhentos milhões de euros, para salvar o banco falido.
Sim, porque o que se trata é de, com base numa gigantesca
arbitrariedade em que se descrimina o que é igual, em que se obscurecem
dolosamente os efeitos do procedimento adoptado, restituir ao capital financeiro
e à sua prática desregrada um banco salvo com o dinheiro dos contribuintes. É falso,
é completamente falso, afirmar que cabe, em última instância, aos bancos que
fazem parte do Fundo de Recuperação a responsabilidade pelo reembolso do dinheiro
que o Estado lá pôs. Como é igualmente falso (por flagrante ilegalidade) que os representares do capital
financeiro, com a passividade cúmplice do Governo e do Presidente da República,
possam arbitrariamente distribuir pelas duas instituições criadas – o “Banco
Bom” e o “Banco Mau”- os respectivos activos e passivos do BES.
O que realmente está em curso é uma gigantesca mistificação tendente
a fazer crer que o Governo não onera os contribuintes nem o erário público com
os desmandos da gestão privada e simultaneamente é capaz de se erigir em
justiceiro feroz dos culpados, aliados siameses de véspera.
Não, as coisas não vão ser como o Governo as pinta. O Governo
cedeu a custo zero, isto é sem qualquer oneração, o dinheiro que os portugueses
estão a pagar à Troika com as suas reformas, com os despedimentos na função
pública, com os cortes de vencimento, com o aumento colossal de impostos e com as
constantes restrições de todas as despesas sociais. Os bancos que não foram
ouvidos nem chamados para participar no resgate do BES não vão ser responsáveis
por uma dívida que não contraíram, se a coisa der para o torto.
E quanto ao outro lado da questão, ao “Banco Mau”, ainda é cedo
para se saber o que realmente vai acontecer, para além daquilo que já se conhece:
a gigantesca arbitrariedade que presidiu à sua formação, cuja composição
realmente se desconhece, salvo a que em linhas gerais consta da
propaganda governamental.
Em conclusão, esta história tem dois lados. Um lado mau, que
faz lembrar a história do “pide bom” e do “pide mau”, que necessariamente vai
terminar com uma solução onerosa de ambos os lados para os portugueses. E um
outro lado que encerra algumas virtualidades: todos aqueles – e são muitos –
que advogam uma radical mudança de política em Portugal, nomeadamente, mas não
só, um verdadeiro domínio do capital financeiro pelo Estado, como sangue
arterial indispensável à vida saudável de qualquer economia, estão dispensados,
a partir da noite do último domingo, de responder à pergunta que insidiosamente lhe
faziam os opositores dessa solução e que era a seguinte: “Onde vão vocês
arranjar o dinheiro para pagar as nacionalizações e os encargos das
instituições nacionalizadas?” ….É muito simples, é só copiar…