domingo, 3 de abril de 2011

PORTUGAL E A AUSÊNCIA DE PERSPECTIVAS - I


“A CONSTRUÇÃO EUROPEIA”


O que mais confrange na actual situação portuguesa é a completa ausência de perspectivas.

A “Europa connosco” com que Mário Soares no rescaldo da derrota salazarista quis mobilizar os portugueses para uma nova aventura, em terras nunca antes pisadas, dificilmente poderia ter tido um desfecho mais decepcionante.

Não está em causa a opção que então se tomou nem os sonhos, os generosos sonhos, que tanto entusiasmaram os artífices da adesão à então Comunidade Económica Europeia. Eles acreditaram sinceramente que a “Europa” - então assim chamada numa manifestação arrogante de quem se sente no direito de tomar a parte pelo todo -, era um espaço solidário norteado pela liberdade e pela coesão económico-social.

Desde as ajudas de pré-adesão aos famosos “pacotes Delors” tudo apontava nesse sentido. Pela primeira vez, diriam os mais versados na história da humanidade, estávamos a viver uma época em que os mais ricos pareciam ter como única ambição tornar os pobres tão ricos como eles.

À parte um ou outro protesto, às vezes a raiar a grosseria, da “merceeira” Margaret Thatcher, e esquecidas que estavam as reservas, melhor dizendo, a oposição de Jacques Chirac, como Primeiro-Ministro, que “notre ami” Mitterrand tratou de deitar por terra logo que a correlação de forças em França voltou a mudar, tudo apontava para uma grande coesão económico-social de que a construção das infra-estruturas antes inexistentes ou muito deficientes eram agora o símbolo mais do que evidente do que viria a seguir.

E esta ideia da coesão de um grande bloco económico teve tanta força que até os mais ricos dos mais ricos, que durante tantos anos optaram por ficar de fora para não ter que partilhar com os mais pobres as suas riquezas, resolveram entrar convencidos de que o essencial da coesão estava alcançado, sendo agora tempo de colher as vantagens e os frutos que outros antes haviam semeado.

Perante tantas facilidades, poucos foram aqueles que trataram de interpretar e compreender a “construção europeia”, melhor dizendo, a “Europa”, a tal Europa da parte pelo todo, à luz das causas determinantes da sua formação e das consequências resultantes da passagem do tempo sobre elas.

Se sobre as causas poderá haver algum consenso entre aqueles que mais se preocuparam com a sua identificação, já o mesmo se não poderá dizer da antecipação das consequência que fatalmente adviriam à medida que a passagem do tempo as fosse esbatendo ou mesmo eliminando algumas delas. Com isso ninguém se importou, nem os que actuavam politicamente nem os que estudam a sua actuação ou simplesmente a comentam.

As causas da construção europeia são inequivocamente duas: a primeira é a guerra e a segunda, o comunismo.

Duas guerras à escala mundial desencadeadas no continente europeu, separadas pelo curto espaço de vinte e um anos, é algo que não pode deixar ninguém indiferente, principalmente quando de um e do outro lado da barricada estão praticamente os mesmos contendores. Havia que fazer algo que fosse muito para além dos habituais tratados de paz, algo que materializasse a própria ideia de paz, tornando-a mais do que um simples compromisso. E lá se começou pela Comunidade do Carvão e do Aço, pela liberdade de comércio e depois tudo o que até hoje se sabe.

Tão ou mais importante do que evitar a guerra era a necessidade de impedir eficazmente a expansão do comunismo na Europa ocidental, ponto nevrálgico do capitalismo mundial. E aí o capitalismo percebeu muito rapidamente que a marcha ascensional do comunismo não poderia ser travada apenas com as famosas liberdades de que tanto fazia uso na sua propaganda para o combater. De que valeria ao trabalhador ter a liberdade de injuriar o patrão ou vociferar sobre os malefícios do capitalismo se continuasse condenado a um salário de simples subsistência ou sujeito a ciclos sazonais de desemprego? Era preciso assegurar-lhe muito mais: algo que não só o acomodasse e integrasse na sociedade capitalista, mas que igualmente constituísse um motivo de inveja para os que tinham optado ou foram forçados a optar por um regime diferente.

O que nunca ninguém verdadeiramente pensou foi no efeito que o tempo poderia ter sobre estas duas causas e, em consequência, no futuro da própria “construção europeia”.

A memória da guerra esbateu-se, como seria normal. Nem de um lado nem do outro dos anteriores inimigos há hoje no governo desses países gente que tenha sofrido directamente as incidências da guerra. E depois há cada vez mais a convicção de que não pode haver guerra entre países com elevado nível de desenvolvimento por os seus efeitos serem devastadores que ninguém se atreve a desencadeá-la. Hoje, entre eles, como já se percebeu, a guerra é outra.

E o espectro do comunismo desapareceu. E desse desaparecimento o capitalismo tira imediatamente partido, mostrando a sua verdadeira face, implacável, na busca insaciável do lucro. Todos os demónios que alberga no seu ventre ai estão, novamente, vorazes e despertos para pela sua acção atingirem os mais altos níveis de exploração, insensíveis aos efeitos devastadores que a sua acção possa ter sobre largas camadas da população contanto que a taxa de lucro cresça (a título de exemplo, pode citar-se, na actual situação portuguesa, os lucros das empresas do PSI 20: em 2010 obtiveram uma taxa de lucro 154,4% superior à de 2009).

Quer isto então dizer que o moderno capitalismo pode prescindir da “construção europeia”? É evidente que não. O novo capitalismo da era da globalização necessita de amplos espaços económicos libertos de regras e de constrangimentos, onde a liberdade de circulação de capitais e de mercadorias (bens e serviços) seja a regra, e a própria circulação de mão-de-obra também exista, contanto que restrita às suas necessidades.

O que o actual capitalismo não precisa é da tal “coesão europeia”, da coesão económico-social, já que essa bandeira de que a então CEE tanto se orgulhava afinal mais não era do que um importante factor de propaganda política, porém descartável na medida em que deixasse de ser uma necessidade.

Essa Europa de que o Dr. Mário Soares e tantos outros nos falavam não existe mais. Verdadeiramente nunca existiu, apesar do aparato de aparências que a sustentava. Há na Europa, porventura como em nenhum outro continente, e seguramente num espaço territorial tão restrito, uma tal divergência de identidades, de sentimentos de pertença, de línguas, de culturas, de egoísmos nacionalistas, de desconfianças recíprocas, de indeléveis ressentimentos históricos que só por ingenuidade se poderia supor que o homem do século XX estava em condições de criar sobre este abismo de diferenças uma entidade unificada orientada para a formação de algo que num futuro não muito longínquo se pudesse assemelhar a um Estado.


Digamos que, em termos filosóficos, ainda estamos muito mais próximo da unificação através da ideia de império do que da república federativa universal. Aliás, o próprio processo de formação da “construção europeia”, o seu inapagável “pecado original”, sempre apontou muito mais para uma “construção” feita de cima para baixo do que de baixo para cima, exactamente por os seus “construtores” terem perfeita consciência de que não havia na base suporte político-emocional suficiente para alicerçar a ideia a que eles meteram ombros (Cont.).

5 comentários:

Anónimo disse...

O texto é, a meu ver, exemplar na análise/síntese, passe a expressão, que consegue sobre o essencial da dita construção. Penso que poderia até servir como texto didático sobre o assunto.
Mas não foi só o projeto ocidental de integração que falhou, como sabe. O falhanço do COMECON foi ainda mais rotundo! (sobre isto,era interessante ler agora dois pequenos livros editados no início doa anos setenta (de cujo autor agora naõ recordo o nome, Sérgio Ribeiro?)sobre a CEE e o CAME).
Nem sei se se poderá dizer que o projeto capitalista falhou! O processo da CEE é que deixou de precisar (como o autor diz) de ter preocupações de coesão económica e social!!
Sobre a falta de suporte para o processo seguir uma via mais "democrática" também sempre me pareceu evidente. O que já nunca entendi é como havia quem achasse que um tratado, supostamente decisivo para o conjunto, poderia ser bloqueado pela oposição de um qualquer pequeno ou exíguo Estado. Seria genuinamente democrático que Malta, que tem a população de uma média cidade continental, pudesse condicionar uma eventual vontade dos restantes?
NG

Ana Paula Fitas disse...

Caro Amigo JMCorreia-Pinto,
Faço link... deste e do outro (ainda mais gratificante por ter sido escrito por quem foi!) post que já deixara anunciado :)
Obrigado.
Um abraço.

Anónimo disse...

Fantastico comemtario A+

Anónimo disse...

Bom comentario A+

Anónimo disse...

Fantastico comentario. A+
Um abraco, ate dias
Horacio