O DEBATE QUE ESTÁ POR FAZER
Muito se tem falado ultimamente sobre a constitucionalização do défice nos países da zona euro. Não porque o défice seja uma coisa nova, na maior parte dos países ele sempre existiu, mas porque a adopção de uma moeda única na União Europeia tornou mais evidente, e até acentuou, as diferenças de competitividade entre os diversos países que a integram.
Depois de institucionalizada pelo Tratado de Maastricht a criação de uma moeda única para os países que satisfizessem os critérios do Pacto de Estabilidade e Crescimento e a ela quisessem aderir, e, posteriormente, da sua entrada em circulação, começou a verificar-se que tais critérios, existentes à partida, por uma razão ou por outra começaram a ser desrespeitados pelos mais diversos Estados.
Primeiro foram os alemães e os franceses, em consequência dos efeitos da reunificação alemã; depois alguns outros que, bem cedo, não conseguiram disfarçar a falta de competitividade das suas economias; finalmente, vários outros que, por força da crise financeira internacional, acabaram por expor à luz do dia a fragilidade do seu tecido económico, durante anos dissimulada pelo refúgio em actividades de tipo especulativo levadas a cabo ao abrigo da concorrência internacional.
É neste contexto, de grandes diferenças de competitividade e da imensa liquidez por elas geradas, que os Estados menos competitivos se endividam muito para além dos limites estabelecidos no PEC e os défices orçamentais se agravam na razão directa da extensão da crise, também muito para além do limite máximo permitido.
Onde antes havia liquidez passou, em consequência da crise, a haver escassez de dinheiro e onde antes havia juros baixos passaram a ser exigidos juros correspondentes à taxa de desconfiança que os países endividados inspiram aos seus credores quanto à possibilidade de solvência dos compromissos assumidos. A tal ponto que alguns deles tiveram que recorrer à ajuda externa para assegurar o regular financiamento das suas economias.
E é assim que a Grécia, com um défice de 10,8%, paga juros a dez anos de 19,913%; que a Irlanda com um défice de 32,4% paga juros de 8,757%; que Portugal com um défice de 9,1%, paga 10,735%; que a Espanha com um défice de 9,2%, paga 5,261%; a Itália com 4,6”%, paga 5,557%; a França com 7%, paga um juro superior ao da Alemanha, mas muito abaixo da Espanha e da Itália; e a Alemanha com 3,3%, paga ligeiramente abaixo dos 2% .
Perante este quadro, a política seguida na Europa para combater a crise e a “desconfiança” dos mercados foi a de reforçar as políticas de austeridade, impondo aos países deficitários a obrigação de num curto espaço de tempo eliminar o défice.
Como se tem visto e como seguramente se continuará a ver, tal política, além dos sacrifícios imensos infligidos a uma grande parte da população e do desemprego por ela gerado, não “acalmou” os mercados, antes pelo contrário os “excitou” ainda mais, por verem nela o caminho mais curto para a falência dos Estados endividados.
Não sendo tal política imposta com base em qualquer princípio de racionalidade económica, mas antes ditada pelos mais férreos preconceitos ideológicos, não será de estranhar que o passo seguinte que a União Europeia, por inspiração (imposição) da Alemanha, se prepara para dar seja a constitucionalização dos limites do déficite, isto é, a inexistência de défice por imperativo constitucional.
A Alemanha já adoptou esta medida o ano passado e a Espanha, à beira de ser intervencionada pelo FEEF, inscreveu-a também na Constituição como princípio, por iniciativa de Zapatero e com o apoio do PP.
Considerando o papel que a Constituição desempenha em Espanha, atentas as condições em que foi aprovada e o compromisso que ela representa como ápice de um processo de transição muito particular, o menos que se poderá dizer desta emenda constitucional é que ela quebrou o consenso alargado das várias forças políticas que a votaram. Zapatero, que tanto prometeu, sairá do Governo completamente desprestigiado pelas múltiplas cedências que foi fazendo à direita, desde a Igreja aos “mercados”, numa clara demonstração de quando as dificuldades apertam é sobre os mais fracos que sempre acabam por incidir os sacrifícios exigidos.
O objectivo de Zapatero – impedir a “intervenção” da Espanha e “acalmar” os mercados – está longe de, pela via escolhida, poder ser alcançado. De facto, o que está assustando os mercados é a falta de crescimento. E sem crescimento não há dívida que possa ser paga.
Em Portugal, o Primeiro Ministro, na recente viagem que fez à Alemanha, contra aquilo que parecia ser a orientação do Governo, numa das suas típicas demonstrações de “aluno obediente”que procura pelo servilismo captar as boas graças dos mestres, logo se prontificou a afirmar que via com muito bons olhos, também em Portugal, a constitucionalização dos limites do défice.
Na ausência de qualquer debate sério sobre o assunto, sem que sequer a maior parte das pessoas saiba do que se está a falar, o Primeiro Ministro do alto da sua conhecida experiência governativa manifestou uma vontade que não se percebe bem se é a do seu partido, a do Governo ou a sua simples opinião pessoal num assunto que ultrapassa em muito qualquer uma destas três dimensões.
Antes de mais é preciso compreender-se– e em Portugal não há sinais de que isso tenha sido compreendido – que o défice de que se está a falar é o estrutural e não o conjuntural, ditado por uma má conjuntura económica. De modo que, qualquer constitucionalização dos limites do défice, a concretizar-se, sempre teria que estabelecer-se sem prejuízo das situações de catástrofe, de recessão económica ou de outras que escapem ao controlo do Estado.
Por outro lado, a eliminação do défice estrutural não é meta que possa alcançar-se, sem quebra das mais elementares regras de razoabilidade, em menos de dez anos. A própria Alemanha, que tanto se orgulha da disciplina das suas finanças públicas, estabeleceu um prazo alargado para a eliminação do défice federal e outro para o dos länder.
E se tal meta passar a ser o objectivo político de qualquer força política, é preciso que essa força política, antes de eleições, diga muito claramente como a vai alcançar: se à custa do aumento de impostos e, nesse caso, quais; se à custa da redução da despesa e qual; se à custa de das receitas e das despesas, quais, e em que proporção.
Mas há mais: a eliminação do défice estrutural implica, depois de alcançada essa meta, opções muito claras de política orçamental que os cidadãos têm o direito de conhecer previamente. E a razão é muito simples: se passa a haver menos dinheiro, uma vez que só se contará com aquele que não implique um compromisso que pese estruturalmente sobre os anos futuros, tem de se saber a que fins passam a estar consignadas as receitas cobradas.
Ou seja, como medida meramente cosmética a constitucionalização do défice não serve para nada, pois já se percebeu que os ditos mercados estão muito mais preocupados com a falta de crescimento do que com a ausência de défice; se, pelo contrário, se trata do estabelecimento de um princípio ou de uma regra quantificada destinada a eliminar o défice estrutural, a questão é bem complexa e exige posições muito claras sobre o assunto. Posições que não se compadecem com as costumadas profissões de fé, de que os economistas do sistema se tornaram hoje os principais arautos, quando se limitam a anunciar que o simples facto de a meta proposta ser alcançada logo engendrará um clima de crescimento e prosperidade que torna dispensáveis e inúteis quaisquer exercícios prévios relativos à aplicação das receitas.
E por aqui também se vê quão irresponsável, antidemocrática e pérfida é a política que o Governo tem em curso relativamente à redução do défice. Como num dos posts anteriores deste blogue se disse, tal política apenas se compreende no quadro de uma pretendida transformação estrutural da sociedade portuguesa, visando a construção de um modelo económico ferreamente neoliberal com as consequências sociais por demais conhecidas.
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