terça-feira, 20 de março de 2012

A VIGARICE DO "AJUSTAMENTO" ANTES DO PREVISTO



O QUE INTERESSA PERCEBER



Já aqui abordámos jocosamente este tema por duas ou três vezes, mas como ninguém foi a jogo nem aqui nem nos jornais, talvez seja esta a ocasião de voltar ao assunto, agora de outra maneira.

O primeiro a manifestar-se foi Moedas, depois, claro, veio Gaspar, a seguir Passos Coelho e, por fim, o inevitável Relvas. Todos eles estão muito contentes por o “ajustamento” estar a fazer-se mais rapidamente do que o previsto e com eles todos aqueles que no estrangeiro têm muito a ganhar com isso.

O que eles querem dizer na linguagem cifrada que propositadamente usam é que a as contas públicas tem registado ou estão em vias de registar um superávide primário e que as exportações tendem a cobrir as importações ou, pelo menos, a limitar o fosso que havia entre umas e outras.

O superávide primário é, em palavras simples, a diferença positiva entre as receitas e as despesas do Estado, fora os juros. Se as receitas do Estado forem superiores às despesas, com essa diferença pagam-se os juros e se pagos estes ainda sobrar dinheiro, amortiza-se a dívida. Se a situação for a inversa haverá défice que tem que ser coberto ou com a emissão de moeda (fora de questão no nosso caso) ou com a contracção de novos empréstimos, aumentando correspondentemente a dívida pública.

Relativamente à balança comercial passa-se algo idêntico: se houver superávide, o país armazena divisas; se houver défice, terá de recorrer às reservas cambiais que tem em caixa ou a empréstimos, que obviamente aumentam a dívida.

O grande problema português, como de resto da maior parte dos países da zona euro, fora dois ou três, entre os quais está a Alemanha, é haver défices por todo o lado, não apenas nas contas do Estado, mas também nas actividades privadas.

Tal situação não é sustentável indefinidamente, mesmo quando os juros são baixos, quanto mais quando os juros são altos como passaram a ser para os países da zona euro já intervencionados e também para aqueles que, embora não estejam, estão a viver à custa das emissões de moeda do Banco Central, como é o caso da Espanha e da Itália e também, em menor escala, da França.

Mas o que é que significa o nosso “ajustamento” e por que vias foi ele alcançado? O nosso “ajustamento” foi alcançado à custa de uma brutal redução da despesa pública, a qual teve como consequência inevitável uma queda dramática da procura e do investimento, ambos geradores de recessão, e com ela o cortejo de misérias que necessariamente a acompanha, no qual é figurante de primeiro plano o crescimento exponencial do desemprego.

Por outro lado, o ataque aos salários, ou dito mais correctamente, aos custos salariais directos e indirectos, tem em vista o relançamento da actividade económica em novos moldes, procurando pela via da sua redução ganhar competitividade e diminuir ou mesmo eliminar o tal défice das transacções correntes, das quais a balança comercial faz parte.   

E o que é que aconteceu? O que é que está acontecer? O que está a acontecer é de facto uma redução das importações não por efeito dos ganhos de competitividade da economia, mas como consequência natural da recessão económica, ou seja, de uma quebra drástica da procura.

Portugal não importa menos por ter passado a haver no mercado produtos portugueses que concorram vantajosamente com produtos estrangeiros, mas por ter havido uma quebra brutal da actividade económica. Por palavras simples: deixou de se importar tanto quanto se importava antes por não haver dinheiro para manter os anteriores níveis de procura.

O ajustamento seria excelente se esta quebra das importações fosse uma consequência directa dos ganhos de competitividade da economia portuguesa, que teria passado a produzir cá dentro o que antes se comprava lá fora ou parte significativa do que se comprava lá fora. Mas não é nada disso o que se está a passar como toda a gente sabe.

Este contentamento governamental pela rapidez com que o “ajustamento” está a ser feito explica-se, por um lado, pela completa insensibilidade social de quem dirige a economia, e, por outro, pela crença, melhor dizendo, pela fé de que deste “ajustamento” resultará o crescimento futuro.

 O futuro tratado da chamada “regra de ouro”, que constitucionalmente proíbe e penaliza os défices, tem exactamente em vista transformar esta doutrina em lei e ilegalizar as doutrinas económicas que propõem outras soluções para a crise. Já há muito que no mundo ocidental se não assistia a uma tão evidente manifestação de intolerância que tem passado relativamente despercebida na opinião pública tão forte é o domínio ideológico das forças dominantes e tão poderosas são hoje as doutrinas económicas neoliberais que até conseguem criar na cabeça da generalidade das pessoas um estado de espírito semelhante ao que na Idade Média existia relativamente ao catolicismo. Quem pusesse em causa os dogmas da Igreja de Roma era um herege. Hoje quem puser em causa os dogmas neoliberais é votado ao ostracismo ficando sem qualquer possibilidade de participar nos negócios da grei. É afastado dos media e corrido dos centros de decisão. Quando uma vez por outra lhe conferem voz é sempre num contexto de generalizada unanimidade de sentido contrário, assim ao jeito de quem apresenta no circo um animal exótico.

Se esta situação é grave para a generalidade dos países, em países como Portugal ela é de uma gravidade extrema. Não apenas porque esta doutrina, que despreza a procura para relançar a economia em tempos de crise, está condenada ao fracasso – a menos que se aceite manter por tempo indeterminado uma legião cada vez mais numerosa de desempregados e de precários que, aos milhões, pagam com o seu sofrimento a segurança e a estabilidade de uns poucos – mas também por o contexto económico-financeiro e monetário em que Portugal se insere lhe não permitir encontrar uma verdadeira saída, tendendo aquela regra a afunilar ainda mais as já quase nulas perspectivas de relançamento económico.
Aditamento: Na foto um quadro de Malangatana sobre a dívida e o ajustamento estrutural

2 comentários:

Anónimo disse...

Claro que o "ajustamento" não tem a virtude que a rapaziada quer transmitir. Mas também, em abono da verdade, nos anteriores ajustamentos (nós vivemos de ajustamento em ajustamento)o resultado foi sempre conseguido através de uma violenta redução do consumo e do investimento, simplesmente não era tão sentida porque o patamar de que se descia era muito baixo; Como podia então o investimento público cair muito se se passavam 5 anos para fazer 5km da auto-estrada Lx-Porto? (lembram-se , com certeza do tempo que demorou a construção Carregado-Aveiras!) Isto parece ser esquecido pelos que acham que, sem o Euro, para tudo haveria uma solução sem grandes sofrimentos! O maior mal do euro foi ter permitido o dramático endividamento face ao exterior. Na base de tudo está a nossa incapacidade em vender no exterior o equivalente ao que compramos. Para Cavaco Silva tínhamos entrado no pelotão da frente!!! e muita gente acreditou! Bastava uma olhadela aos dados básicos da BTC para ver que era conversa eleitoral! Mas é assim! É a vida!

JM Correia Pinto disse...

Atenção: não precisamos apenas de vender mais ao estrangeiro. As exportações têm limites, sob pena de criarem um profundo desequilíbrio. Que é aliás o que está a acontecer na Europa (Alemanha) e também no mundo (China). O que nós precisamos é de vender mais para dentro em substituição do que vem de fora. Mas para isso há que ser mais competitivo, embora esta segunda faceta seja muito mais importante do que a primeira, porque passada que foi a fase do provincianismo do comprar estrangeiro não falta agora quem queira comprar português.
Mas para isso é preciso ser mais competitivo, como se disse, e apertar, mas apertar a valer, os Belmiros e os "Pingos Doce" deste país que são, juntamente com os bancos, os grandes responsáveis pelos desequilíbrios existentes!