TEMOS DE OS PÔR NA RUA
Começa a ser fastidioso, às vezes quase penoso, escrever com
regularidade sobre a situação política portuguesa. Há muito se sabia o que ia
acontecer, apesar de raras vezes, em tudo quanto se conhece da intervenção nos
países devedores das instituições internacionais representantes dos credores,
ter havido da parte dos governantes daqueles países uma tão profunda sintonia com
as exigências dos credores como aquela que se verifica em Portugal entre o
Governo português e a Troika. Pode mesmo dizer-se que a experiência
internacional decorrente da acção das Instituições de Bretton Woods,
nomeadamente do FMI e agora, na Europa, além deste, do BCE e da Comissão
Europeia, não regista nenhum caso, nem sequer no mais remoto e mísero país
africano, de subserviência e de sintonia ideológica tão completa como a que a
Passos e Gaspar, com a cumplicidade activa de Portas, têm dado provas ao longo
deste quase ano e meio que já levam de governo.
Mas, em boa verdade, nem isto constituiu uma novidade. Apesar
de Gaspar não ser conhecido do grande público, o que se foi ouvindo de Passos
Coelho antes da eleição, nomeadamente a propósito da revisão constitucional, e
principalmente o que foi sendo repetidamente dito pelos que em representação do
PSD negociaram com a Troika o famigerado “Memorando de Entendimento”, deixava antecipar
tudo o que depois tem sido concretizado e que na realidade só esperava um bom
pretexto para poder ser posto em prática.
E aqui começa o primeiro grande equívoco daqueles que
continuam a afirmar e a fazer a sua campanha de oposição com base na ideia de
que o “Governo falhou e o Povo cumpriu”.
Em primeiro lugar, o Povo não cumpriu nem deixou de cumprir:
o Povo foi obrigado a agir conformemente às directrizes do Governo, porque,
detendo o Poder o monopólio exclusivo da força, ele pode assegurar com base na
coacção ou na ameaça do seu exercício a eficácia das medidas adoptadas.
Por outro lado, o Governo não falhou: o Governo está a fazer e
a alcançar gradualmente os objectivos que pretendia atingir.
Também já aqui foi dito vezes sem conta que o Governo promove
o desemprego para deflacionar os salários e prossegue uma política altamente
restritiva, com profundas consequências na limitação da procura interna, para
levar à falência milhares de empresas, expurgando assim a "má oferta", exatamente para diminuir as importações
e reduzir drasticamente o défice externo ou até eliminá-lo, com a vista a
transferir os excedentes para os credores, nomeadamente externos.
Esta política, que representa uma mudança profunda de
paradigma e tem a seu favor o facto de ter sido posta em prática em pouquíssimo
tempo, com um grau de brutalidade sem paralelo em nenhum outro país no mundo, só
pode eficazmente combater-se com base numa acção que, desmascarando-a e denunciando-a,
aponte para caminhos completamente diferentes.
Todavia, para ficar completa, aquela política terá de ser acompanhada
por reduções efectivas e vultuosas do défice orçamental, o que dada a situação depressionária
da economia portuguesa só se conseguirá com cortes substanciais na despesa
pública. E esse será o próximo passo do Governo, reduzindo drasticamente a
despesa do Estado em dois planos: despedindo dezenas de milhares de
funcionários públicos e diminuindo o montante das pensões de todos os
aposentados bem como cortando substancialmente as despesas sociais (saúde,
educação e prestações sociais).
Ora bem: isto não são medidas conjunturais e muito menos de
duração limitada. São medidas definitivas tendentes a criar e a consolidar um
quadro institucional, político, económico e social completamente diferente
daquele que hoje temos e que está consagrado na Constituição.
Continuar a insistir na ideia de que o Governo falhou é, mais
do que um equívoco, uma cumplicidade. A cumplicidade de quem acredita que será
com base nestas políticas, aplicadas, aqui ou além, com outra moderação, que
Portugal sairá da profunda crise em que se encontra.
A nossa resposta, a resposta do Povo português – e estamos
certo que ela será dada muito brevemente – tem de consistir numa verdadeira
alternativa ao que está sendo feito. E esta alternativa, por muito que se
discuta ou até se afirme a sua inexistência, só poderá consistir num corte
radical da despesa pública incidente sobre o serviço da dívida pública.
Esta tem de ser a nossa contribuição para nos mantermos no
euro e na União Europeia. Uma contribuição que, embora possa ser negociada, tem
de assegurar aquele resultado. Esperar ou ter fé em que a Europa mude,
acreditar que será por força de pressões externas, nomeadamente americanas, mas
também de países emergentes, que as mudanças vão ocorrer, ou admitir que haverá
uma alteração da correlação de forças na Europa, ou, mais ingenuamente ainda, supor
que depois das eleições alemãs estarão criadas as condições para se iniciar a
mudança, é uma ilusão que se pagará muito caro e mergulhará o país num caminho
sem regresso.
Todos estes factores, a existirem, poderão e deverão ser
aproveitados negocialmente, sem, porém, nunca esquecer que a verdadeira
alternativa é que admite, sem hesitações, “começar de novo” e escolher outros rumos.
Rumos que certamente nos farão passar por alguns momentos difíceis, mas que nos
permitirão num prazo razoável (e suportável) recuperar a nossa independência, a
nossa dignidade e o nosso bem-estar.
Para terminar, os mais velhos que viveram o Portugal
salazarista e aqueles que, sendo mais novos, o estudaram ou dele têm
conhecimento por tradição familiar, não terão grande dificuldade em compreender
que, embora num contexto politicamente muito diferente, há na actual situação
política portuguesa sintomas que perigosamente a aproximam do país pobrezinho e coitadinho, iletrado e sem saúde, da miséria digna, de onde a muito custo saímos numa
vitória não consolidada.
Aliás, não deixa de ser sintomático que certos episódios
tenham ocorrido agora, neste tempo, e nunca verdadeiramente tivessem ocorrido
antes por maior que então parecesse o domínio da direita.
Basta citar, a título de exemplo as declarações da “tia Jonet”
e a “homilias” de Marcelo Rebelo de Sousa ao domingo à noite. Não obstante a
senhora se dedicar àquele tipo de actividades há cerca de vinte anos e de
Marcelo fazer comentário político, sempre muito interventivamente, desde o 25
de Abril, nunca, nem um nem outro, se sentiram tão soltos, tão á vontade, para
deixar vir ao de cima tudo o que realmente são como actualmente. Porque,
obviamente, tanto um como outro perceberam ou acreditaram que haverá uma “maré
nova” que os aproxima do passado…
(Este post é a minha homenagem ao Zé Rui
Faria de Abreu, na esperança, sempre falível, de que gostaria de o ter lido).